Crônica dominigal de Luis Fernando Verissímo


Quando eu era garoto, louco por futebol, tinha time em vários lugares do mundo. Só os conhecia pelo noticiário nos jornais, muitas vezes nem sabia a cor das suas camisetas. Eu era River na Argentina, Tottenham Hotspur na Inglaterra, Racing (que depois virou Paris Saint-Germain) na França, Internazionale (claro) na Itália, e tinha time até, não duvido, na Cochinchina.

É engraçado isso, viver a realidade alheia como se fosse a nossa. No caso dos times de futebol, a escolha se baseava em simpatias fortuitas, nada racionais. Por que Tottenham Hotspur e não Arsenal? Que possível identificação eu poderia ter com meu time na Ucrânia?
Já as outras escolhas de lados para os quais torcer, que faríamos ao longo da vida, seriam mais lógicas, ou mais explicáveis. Viveríamos vicariamente as histórias dos outros porque projetaríamos nelas as nossas convicções, ou a nossa própria história irresolvida.
Exemplo prototípico disso é a Guerra Civil Espanhola, na qual muita gente foi lutar contra ou a favor da insurreição de Franco, mas que teve torcida calorosa em todo o mundo.
Você se definia com sua escolha de lado na Espanha. Nunca tinha sido tão fácil identificar o inimigo — ou o amigo, para quem via na Espanha insurrecta um bastião contra o bolchevismo.
De Mussolini ainda não se sabia se era um bufão inconsequente ou uma ameaça, Hitler estava recém-começando a fazer das suas. Franco era, portanto, a primeira personificação nítida do assomo fascista na Europa. “No pasarán!”, o grito de guerra dos legalistas espanhóis, foi, mesmo à distância, o grito de guerra de uma geração. Passaram, mas isso é outra história.
No Brasil vivemos vicariamente a história de outras países americanos como se fosse a nossa, ou como se decidisse a nossa. Cuba, por exemplo, está no centro do debate esquerda/direita no país há anos.
É um exemplo admirável de resistência à prepotência americana e de sociedade solidária em que saúde e educação públicas são prioritárias ou um exemplo lamentável de país totalitário que prende seus críticos e cujos benefícios sociais não compensam a falta de liberdade, dependendo do seu lado.
A polarização das opiniões não permite que se torça pelo meio-termo, também conhecido como a visão de cima do muro: admirar o admirável e lamentar o lamentável, sem esquecer que o que se vê de longe são as versões e não os fatos.
Muitos vibraram com a ascensão de Allende ao poder no Chile como se ele tivesse chegado ao Palácio do Planalto, e vê-se que, hoje, muitos acham que o que o Brasil precisa é de um bom pinochetaço. Também vivemos vicariamente na Venezuela, onde a história acontece em extremos tais que tornam difícil sequer identificar os lados em conflito, quanto mais escolher um para torcer.
Quando eu era garoto não havia essas hesitações. O River era o time da elite argentina? Aquilo não me interessava. Era o meu time e pronto.