O Carnaval do cocoruto

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Dali, dava pra ver o cocuruto de todo mundo. Beleza. Era só esperar e mirar direitinho, no momento certo. Eu manjava do negócio. A manha era calcular a velocidade do escarro, atrasar a queda do cuspe segurando com aquela parte da baba que é mais grossa e fica presa na boca enquanto a gente quer. Daí era soltar meu míssil bem no topo da cabeça dos otários que passassem lá embaixo. Lance de mestre.
Sou o ninja do cuspe, o Messi da escarrada. E o cororuto dos meus colegas é a goleira.
Meu campo de ataque é aquela sacada pra dentro do salão do clube, que adulto chama de mezanino. Eles têm cada palavra difícil…
Pena que os nerds, fantasiados de super-heróis, tavam bem longe, juntos num grupinho, fingindo que não se importavam com o bailinho de carnaval da escola. Eles faziam de conta que era mais divertido ficar encostados na parede, contando piadas sem graça. Se estivessem mais perto, levavam cusparada também. Inclusive o Bucho, aquele traíra. Eram todos losers, não tinham coragem de chegar nas minas.
Uma coisa necessária de falar é que eu não tenho medo de chegar em mina, ok? O problema é que a única menina que eu planejava pegar naquela festinha tava de mãos dadas outro. A Nêssa é a mulher da minha vida, cara. Só tá faltando ela saber disso. Por enquanto, ela prefere o otário do Josias, que tava fantasiado de Naruto.
O bosta do Josias era meu alvo principal. Uma hora ou outra, ele ia chegar perto de mim, só que lá embaixo, porque o casalzinho pulava por todo lado no salão.
Aí ele ia ver. Bem no cocuruto.
Pera! Lá vinha o Tavinho, fantasiado de vampiro, dançando com aquela namorada dele da sétima série, fantasiada de princesa. Se tinha algum culpado por aquela festa de panaca, era o Tavinho.
Foi o pai dele quem convenceu os outros velhos a fazerem aquele baile de carnaval no fim de semana antes do feriadão, aproveitando que as aulas tinham começado no meio de fevereiro. Já notaram que as aulas tão começando cada vez mais cedo? Daqui uns anos, vão começar dia 25 de dezembro. Saco.
O pai do Tavinho era um psicólogo famoso, aparecia na TV às vezes e gostava de posar de importantão. Ele levou na conversa os outros pais durante uma reunião na escola, disse que era “para promover a integração” dos colegas “por meio de um festejo da cultura brasileira”. Papo furado. Sei o que ele falou porque minha tia, que cuida de mim, chegou em casa reclamando e arremedando o pai do Tavinho.
“Não vou comprar fantasia nenhuma, viu? Se vira!”, minha tia gritou pra mim, irritada com aquela cara de que ia me bater, como se eu tivesse culpa do baile. Uma escrota.
E aí eu me fantasiei de ninja. Ou de black bloque. Era barato, só colocar roupa preta e uma touca de motoqueiro que achei na mala que guarda as roupas do meu pai. Minha tia não tem coragem de colocar aquelas roupas fora. Esquisito isso. Afinal, ele já morreu né?
Mas o Tavinho ia ver só. Ele e a namoradinha tavam se aproximando. Primeiro cuspe, preparar e apontar! Um fiozinho de nada segurando um bolotão de um troço meio catarrento, coisa que eu sei fazer puxando um pouco de ranho do nariz. Fiozinho que se arrebenta e o bolotão fica na mira do cocuruto do Tavinho.
Merda. Não foi dessa vez. Passou raspando. Mas pelo menos pegou no sapato da namoradinha dele.
No fundo, quando minha tia chegou em casa reclamando da festa de carnaval, fiquei empolgado. Sorri pra dentro. Achei que a Nêssa ia dançar comigo. Que eu ia me aproximar dela disfarçado. Aí a gente pularia a noite inteira o carnaval com aquelas músicas bobas, olho no olho. Aí ela veria nos olhos de um ninja misterioso a sua alma-gêmea. Aí, depois da dança, eu ia tirar o capuz e falar pra Vanessa tudo o que sinto. Aí ela ia me responder “eu também sempre te amei, mas achei que você nem notava que eu existia”.
E aí eu teria o primeiro beijo da minha vida. De língua não, porque acho nojento.
Dei umas duas ou três cusparadas quando não tinha ninguém na mira, só pra testar. Não queria errar quando fosse pra valer. Mirei num tapete amarelo lá embaixo. Na segunda vez, eu acertei bem no meio do tapete. Nossa como sou muito bom nisso.
Foi na entrada da festa que vi a Nêssa de mãos dadas com o Josias. Ela tava linda, com uma máscara pontuda no rosto e um vestido branco cheio de quadradinho preto. Mas o Josias estragava tudo. Aquele bailinho de carnaval ia ser uma merda se eu não tivesse visto o mezanino.
A escada tava bloqueada por uma cordinha e plaquinha proibindo subir, mas pulei por cima dela quando ninguém tava olhando. Lá do alto, podia ver o cocoruto de todo mundo.
E lá vinha o Betoneira, fantasiado de Chapolim, como sempre, correndo atrás da Saúva. A gente deu esse apelido pra Miriam por causa do tamanho do bumbum dela.
O Betoneira dividia o tempo dele entre assediar a Miriam e perseguir os colegas menores no recreio. E todos eram menores que ele. O Betoneira andava me perseguindo desde que viu que o Bucho não ficava mais conversando comigo no recreio e fez amizade com os nerds.
Briguei com o Bucho porque ele falou mal do Ben 10 pra mim. Disse que o Ironman era mais foda. Só rindo. O Ironman só tem os poderes da sua armadura, mas o Omnitrix dá pro Ben os poderes de DEZ espécies alienígenas! Dez! Imaginou?
Mas o Bucha é otário, fica pagando pau pra Marvel. Desde essa briga com ele, eu tenho ficado sozinho no recreio. Às vezes fico um tempo sentado na privada, fingindo que tô lá largando um marinheiro, mas lendo uma revista em quadrinhos até tocar a campainha. Assim, todo mundo me deixa em paz, aquele bando de otários.

Não pense que sou um loser. Na verdade, eu sou é foda demais praquele bando de babacas da escola. Vivo desenhando capeta e monstro medonhão no caderno durante as aulas. Isso dá moral. Todo mundo passou a me tratar com mais respeito quando comecei a escutar metal e postar video do Slipknot e Slayer na timeline do Facebook. Sou sinistro, meu!
E justo eu, lá, naquela festa de carnaval, ouvindo aquela música alegrinha, com babacas se mexendo na pista feito umas lesmas malucas. Tudo culpa do Tavinho, culpa dele eu estar escutando alguém cantar “brincadeira de criança como é bom como é bom” ao invés de ouvir Butcher’s Hook em casa.
O Betoneira chegou a me encurralar duas vezes no recreio, mas dei um chute no saco dele. Da outra vez, eu não consegui fugir e ele me deu um soco fodido na barriga. Ele chamou o Josias e esse panaca me deu uns vinte cascudos, por aí.

Agora era a hora da vingança. Puxei todo o ranho que podia lá do fundo do nariz. A coisa pesava na minha boca. Sério. Eu ia dar uma cusparada bem no meio da cabeça do otário.

Feito!

Ele até olhou pra cima quando sentiu o geladinho no cocuruto, mas eu consegui me jogar pra trás na hora, até deitei no chão pra garantir.
O problema é que esse meu movimento chamou a atenção duma professora que tava numa posição em que me enxergaria se eu me mexesse muito. Como eu estava quietinho no escuro, esperava que ela não me percebesse, mas quando me joguei, acho que a Professora Lombriga notou algo.
Não demorou para eu escutar alguém subindo as escadas. Saco. Pelo passos, era um adulto. Logo vi o pai do Tavinho. Pensei que ele ia me dar uma bronca.
“O que tá fazendo aí?”, me perguntou. “Nada”, respondi. Mas eu sabia que ele sabia o que eu tava fazendo ali.
“Vem, vamos descer meu pierrot negro, vamos lá tomar um refri”, ele disse. Velho babaca. Me chamou do quê?
“Não to com sede”, falei e mostrei o dedo pra ele.
Ele não ficou com raiva, acho. Ele me olhou com uma cara tão triste que na hora me senti culpado. E de um jeito estranho, fiquei muito mal. A cara dele não era de triste por eu ter mandando ele tomar no cu. Eu sabia disso porque ele já me olhou desde o início com aquele olhar, como se estivesse muito triste mesmo com outra coisa sobre mim. Panaca. Cuzão. Um velho otário.
Depois disso, eu desci as escadas correndo. Eu ia embora, sair daquela bosta de festa e voltar pra casa.
Minha casa ficava uns quatro quarteirões do clube, então podia voltar a pé e sozinho. O porteiro nem me perguntou onde eu ia quando saí. Era muito bom aquele lance de ninguém perceber minha presença, porque isso podia me dar um emprego a mais no futuro, de espião ou detetive. Ou de ninja. Os Black bloque ganham salário pra quebrar vidraça?
“Ô cucagado”, alguém gritou atrás de mim quando eu já tinha atravessado a rua, e na hora eu reconheci a voz. Era o Betoneira. E o Josias estava com ele. O Betoneira tava muito puto porque eu tinha cuspido na cabeça dele. Eu ia levar o maior pau.
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Foi muito rápido. O Betoneira me empurrou assim que chegou perto de mim e aí eu caí com tudo na calçada. Aí bati a cabeça. Aí ele se atirou em cima de mim, não sei se pra me dar um soco ou o quê, e aí eu tive a ideia de usar as pernas pra jogar ele longe. Deitado, usei todo meu impulso e meus pés bateram bem no peito dele.
Me senti forte como um pretosapien! Aí aí ele caiu pra trás! Aí, antes que o Josias pudesse me atacar, a gente ouviu uma voz de adulto gritando. Era o pai do Tavinho, na porta do clube, chamando a gente, dessa vez muito brabo e com um jeito de quem sabe provocar medo.
O tempo de o Josias olhar pra trás e o Betoneira se levantar foi o suficiente pra eu sair correndo. Mas nem precisava correr, porque sabia que eles não iam deixar um adulto falando sozinho, que iam voltar para a festa feito dois capachos obedecendo um velho. Cuzões.
Cheguei em casa meio ofegante, com uma dor onde tinha batido a cabeça na calçada. Minha tia, quando me ouviu entrar, nem tirou os olhos da TV, só comentou que eu tinha voltado cedo demais. Odeio gente adulta, velho é tudo igual. Pra mim, quando a gente fica adulto vira zumbi.
Fui pro meu quarto direto. Nem acendi a luz quando entrei.
Eu tava com muita raiva. Raiva de todo o mundo. Raiva da minha tia, do Josias, do Betoneira, do pai do Tavinho, do Bucha, da Nêssa e até do porteiro do clube, não sei porque do porteiro. Sentei na cama e fiquei parado lá um tempão, olhando pro escuro, curtindo minha raiva. Tentei brincar com meu bilau, mas ele não tava muito animado, não queria festa.
E aí comecei a chorar. Não de tristeza, mas de raiva de estar cercado de gente otária. E então imaginei, não sei porque, que o Ben e toda a turma dele, o vô Max, o Kevin, a Julie e até o Tretax, estavam ali dentro do meu quarto, teletransportados com o feitiço Albeo Exorior feito pela Gwen, pra me dar uma força num momento tenso.
Eles vieram porque tinham assistido tudo o que passei na festa. E cada um deles me abraçou, todos eles diziam que estava tudo bem, que as coisas iam melhorar com o tempo, que era só um lance passageiro.
Aí sim comecei a chorar forte.
Aí sim, da raiva, passei pra alguma coisa que nem sei explicar. Quando imaginei eles no meu quarto, me visitando, aquele pessoal bacana que sempre estava ajudando o Ben nas tretas dele, todos eles dizendo que gostavam de mim e que sabiam como era difícil viver no meio de tanta gente otária, aí eu comecei a chorar pra valer. Eu soluçava. Enfiei a cara no travesseiro pra minha tia não escutar nada.
Eles me entendiam, o Ben e os outros eram meus amigos, e eu queria ficar com eles do meu lado pra sempre. Longe dali. Por teletransporte.
Victor Lisboa

Não escrevo por achar que tenho talento, sequer para dizer algo importante, e sim por autocomplacência e descaramento: de todos os vícios e extravagâncias tolerados socialmente, escrever é o mais inofensivo. Logo, deixe-me abusar, aqui e no blog Minha Distopia.


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