O trabalho não é, por definição, aprisionante e terrível. Somos seres construtores, produtivos. Idealmente, o trabalho nos permite dar vazão ao nosso afã criador e, ao mesmo tempo, ganhasr o dinheiro que precisamos para viver nossa vida e realizar nossos projetos pessoais. Muitas vezes, entretanto, o trabalho custa caro: ele suga quase toda nossa energia vital e nos dá somente uns míseros tostões em troca. Nesses casos, sim, o trabalho é uma prisão.
A segunda-feira é inocente
Se eu detesto a maldita segunda-feira…
A culpa não é desse período de tempo em que a Terra demora para girar em torno de si mesma que convencionamos chamar de segunda-feira, mas que também poderia se chamar paralelepípedo, clitóris ou Carlos Arthur.
Mas das escolhas erradas que fiz ao longo da vida e me levaram ao ponto de detestar o dia em que volto à vida profissional que criei como o fruto cumulativo das minhas escolhas.
E quem diz que essas decisões foram erradas não é nem mesmo o meu cérebro consciente, mas sim o meu desespero durante a semana, o meu porre de sexta à noite, minha ressaca de sábado, minha melancolia de domingo e meu mau-humor de segunda.
Enquanto isso, a segunda-feira, coitada, fica lá paradona no calendário e nunca fez mal a ninguém.
O que foi que EU fiz com a minha própria vida?
Quem são meus ídolos
Há muitos anos, odiava sair de casa todo dia de manhã, de barba feita e fantasiado de executivo, para trabalhar o dia inteiro vendendo minha energia vital para realizar os projetos de outras pessoas.
Mas pensava:
“O errado deve ser eu. Afinal, todo mundo faz isso. Se essas pessoas conseguem, também consigo.”
E lá ia eu me torturar mais um pouco.
Um dia, uma pequena mudança de foco fez toda a diferença.
Em vez de olhar para as pessoas que já tinham se acostumado a tolerar as torturas que ainda me atormentavam, desviei minha mirada para as pessoas que viviam vidas diferentes, mais livres, mais abertas, mais bonitas, e pensei:
“Se elas conseguem, eu também consigo!”
Do que temos medo?
Muitas vezes, jovens pessoas pré-universitárias me fazem uma variação do comentário:
“Ah, eu queria muito fazer ABC mas vou fazer XYZ, sabe como é, ABC não dá dinheiro…”
Morando com o pai e a mãe, vivendo de mesada, ainda nem sabendo quanto custa a vida… e já abdicando de fazer o que gosta por medo desse custo!
E pergunto:
“Você tem medo exatamente do quê?”
Gosto muito de fazer essa pergunta. Quando pensamos concretamente sobre nossos medos, acabamos percebendo que o bicho-papão dentro do armário era só um ursinho de pelúcia caolho.
E elas respondem algo como:
“Ah, sei lá, de não conseguir me sustentar, né?”
Mas se sustentar é fácil. Todo mundo que fez artes cênicas e oceanografia se sustenta. Quem não fez, de um jeito ou de outro, também.
Talvez não dê pra comprar todas as porcarias que são anunciadas na televisão, carro do ano ou o novo iTralha, mas dá pra se sustentar sim. E ser uma pessoa plena e satisfeita.
Então, exatamente do quê você tem medo? De não conseguir sobreviver ou de não conseguir consumir? De não conseguir pagar suas contas ou de ser a única pessoa da turma sem carro ou sem iPorra?
Vale mesmo a pena abdicar da possível carreira dos sonhos pra poder comprar roupa de grife?
O custo do trabalho
Bruno, como tantos homens no começo dos trinta, vive pra sua carreira, trabalha demais e está sempre cansado. Chega em casa com o corpo tão moído e o cérebro tão entorpecido que não consegue fazer nada de útil ou produtivo a não ser se embatatar diante da TV e zapear entre seriados.
Quando fui visitá-lo, tinha acabado de comprar o DVD da primeira temporada da Super-Máquina, uma das séries mais idiotas da década de oitenta. Para assistir as aventuras de um agente secreto cabeludo que viaja pelos EUA resolvendo crimes com seu carro falante inteligente, Bruno pagou duzentos reais.
Entre confidências de fim de noite, confessou admirar minha vida. Disse querer muito ver a vida como vejo, não dar tanta importância às coisas bobas, saber relaxar mais, viver de forma simples e serena.
Respondi que viver a minha vida era muito fácil. Trabalhar menos, gastar menos, nada poderia ser mais simples. Mas tinha um preço: era preciso sair do circo de consumo. Abdicar de ser consumidor.
O DVD da Super-Máquina tinha sido comprado com duzentos reais que ele ganhara trabalhando quinze horas por dia, às vezes seis dias por semana. “Eu mereço uma diversãozinha leve!”, ele disse para si mesmo. Afinal, o DVD custara somente meia hora do seu trabalho, um sacrifício ínfimo.
Para fins de comparação, nessa época, ganhava sete reais a hora num cursinho de inglês do subúrbio. Eu teria tido que trabalhar trinta horas para comprar esse DVD.
Então, se ele trabalhasse menos e ganhasse menos, se não tivesse um trabalho com tanta pressão e com tantas responsabilidades, não teria duzentos reais dando sopa assim para gastar em besteira. Provavelmente, teria que investir esses duzentos reais em arroz, feijão, leite, batata.
Mas, por outro lado, se não trabalhasse quinze horas por dia, às vezes seis dias por semana, em um emprego massacrante que lhe sugava a alma e lhe cuspia de volta em casa completamente incapaz de qualquer atividade remotamente produtiva, ele não estaria sempre exausto e não precisaria anestesiar sua consciência assistindo DVDs de seriados idiotas.
É tudo uma coisa só, una, indivisível, duas partes inextricáveis do mesmo mecanismo: o mesmo mercado que te possibilita os meios de consumir é o que faz você precisar consumir.
De um modo bem real, Bruno não tem “tempo livre”. Quando não está trabalhando, está descansando o cérebro de tanto trabalho e se preparando para poder trabalhar mais. Mesmo quando está longe do trabalho, seu tempo é sempre definido em função do trabalho.
O tempo livre não é livre
O rabugento Theodor Adorno, um dos principais expoentes da assim chamada Escola de Frankfurt, é um dos meus pensadores preferidos do século XX. Ao lado de Max Horkheimer, ele expôs uma das verdades mais incômodas da nossa civilização: como o projeto iluminista, tão secular e racional, desembocou (fatalmente?) no nazismo. Depois de sair de sua Alemanha natal, morou nos Estados Unidos pelo resto da vida, onde foi um dos principais observadores e teóricos da indústria de entretenimento em massa que começava a se consolidar.
Adorno é daqueles poucos pensadores que é tão lúcido e interessante que se lê por prazer. Seu curto ensaio, “Tempo livre”, é dos mais acessíveis de sua obra.
Segundo Adorno, antes de mais nada, o “tempo livre” não é livre, mas está acorrentado ao seu oposto. É uma paródia de si mesmo. A ética de trabalho capitalista teria contribuído para tornar o “tempo livre” cada vez mais vazio e irrelevante:
“Por um lado, durante o trabalho, devemos estar sempre atentos e não fazer gracinhas. Essa é a base do trabalho assalariado e já internalizamos essas leis. Por outro, nosso tempo livre não deve ter nada a ver com nosso trabalho, presumivelmente para que possamos trabalhar de forma ainda mais eficiente depois. Por isso, a maior parte das atividades de lazer são vazias e inócuas.”
Lendo os jornais, Adorno repara que os repórteres sempre perguntam às celebridades por seus hobbies e começa a refletir sobre a existência ou não de seus próprios hobbies:
“Levo muito a sério todas as atividades que exerço fora dos limites da minha profissão. Ficaria horrorizado de imaginar que são hobbies — um passatempo, uma distração. Na minha vida, produzir música, ouvir música, ler com toda a minha atenção, são atividades fundamentais. Chamá-las de hobbies seria uma ofensa.”
A própria onipresença da pergunta “qual é o seu hobby” indicaria uma presunção de que todas as pessoas têm um hobby e, consequentemente, que você seria uma excêntrica se não tivesse.
Existiria até uma “ideologia do hobby”, provavelmente criada pelo capitalismo para lucrar em cima do tempo livre, essa nossa “liberdade organizada e compulsória”.
Por exemplo, continua ele, acampar costumava ser uma atitude anti-establishment, de quem não aguentava mais ser sufocado por regras sociais e queria somente ir para o meio do mato dormir sob as estrelas. Em breve, entretanto, essa necessidade começou a ser canalizada, estimulada e institucionalizada pela indústria do camping:
“A indústria do camping, por si só, não teria como forçar ninguém a comprar tendas e trailers, e nem gigantescas quantidades de equipamento, se essa necessidade já não existisse nas próprias pessoas.Mas o que a indústria faz é pegar essa ‘necessidade de liberdade’ e funcionalizá-la, estendê-la e transformá-la em um negócio. Aquilo que as pessoas queriam é agora jogado de volta na cara delas. O tempo livre é tão facilmente cooptado porque as pessoas já internalizaram sua não-liberdade.Mesmo nos momentos em que se sentem mais livres, não têm noção de como são completamente não-livres.”
Para Adorno, a educação infantil efetivamente bloquearia o desenvolvimento da imaginação. E essa falta de imaginação, cultivada e inculcada pela sociedade, deixaria as pessoas inertes e indefesas em seu tempo livre.
A própria pergunta “o que fazer com o tempo livre”, como se fosse uma questão de esmolas e não de direitos humanos, como se estivéssemos decidindo o que fazer com as sobras do jantar e não pensando uma questão humana fundamental, seria fruto dessa falta de imaginação.
“As pessoas hoje em dia fazem tão pouco com seu tempo livre porque sua falta de imaginação as tornou incapazes de apreciar a liberdade. Tanto lhes negaram a liberdade, seu valor foi tão depreciado por tanto tempo, que elas não a querem mais.O que precisam agora é de diversão inócua, sempre fornecida com condescendência e desprezo pelo conservadorismo cultural, para que possam recuperar suas forças para trabalhar ainda mais. Afinal, de acordo com a organização social que o conservadorismo cultural defende, é só isso que se espera delas.Essa é a razão pela qual as pessoas continuam acorrentadas aos seus trabalhos, e ao sistema que as treina para sempre trabalhar, mesmo quando esse sistema já não precisa nem exige a sua força de trabalho.”
O esporte, para Adorno, seria uma das principais arenas onde as pessoas treinariam, inculcariam e sublimariam muitos dos comportamentos exigidos e valorizados pelo mercado de trabalho, como raça, dedicação, competitividade, disciplina, etc:
“Frequentemente é no esporte que as pessoas pela primeira vez inflingem em si mesmas (ao mesmo tempo em que que celebram isso como um triunfo de sua liberdade) precisamente aquilo que a sociedade irá inflingir neles depois e que eles precisam aprender a gostar.”
Portanto, conclui ele, o tempo livre não é o oposto de trabalho. Em um sistema que idealiza o emprego em tempo integral, o tempo livre nada mais é do que uma continuação sub-reptícia do trabalho.
O tempo (realmente) livre não é lucrativo
As atividades mais incríveis e prazerosas da vida são completamente (ou quase) gratuitas: estar com as pessoas que amamos, dormir, transar, se exercitar, passear, caminhar pela natureza, nadar no mar ou em uma lagoa, ler, escrever. Mas todas exigem que estejamos inteiras, atentas, capazes, aptas.
E é justamente isso que a maioria dos empregos rouba de nós, em troca de uma compensação inadequada, em troca de uma compensação que não compensa tudo o que nos foi tirado.
Quem trabalha menos, ganha menos e tem mais tempo livre, pode se dedicar mais a essas atividades (semi) gratuitas e naturalmente refratárias ao circo do consumo.
Quem trabalha muito, ganha muito dinheiro e não tem mais quase nenhum tempo livre, acaba naturalmente resolvendo todas suas questões com dinheiro. Afinal, na falta de tempo e de energia, a única ferramenta que lhe sobrou em abundância é o dinheiro.
David Cain ficou nove meses mochilando pelo mundo e, depois, voltou ao mercado de trabalho. Em seu artigo “Seu estilo de vida foi projetado”, ele compartilha algumas coisas que percebeu:
“Faz poucos dias que voltei ao trabalho, e já percebi que as atividades mais integrais estão rapidamente sumindo da minha vida: caminhar, me exercitar, ler, meditar e escrever. A similaridade evidente entre estas atividades é que elas custam muito pouco ou nenhum dinheiro, mas exigem tempo.(…) Enquanto estava fora, eu não pensaria duas vezes antes de decidir passar o dia explorando um parque nacional ou parar por algumas horas para ler um livro na praia. Agora esse tipo de coisa está fora de questão. Fazer qualquer uma dessas coisas me tomaria um dia inteirinho do meu precioso fim de semana!(…) [O] dia de trabalho de oito horas é muito lucrativo para grandes empresas, não graças à quantidade de trabalho realizada nessas oito horas (o trabalhador médio de escritório trabalha de fato por menos de três dessas oito horas), mas porque faz com as pessoas se tornem mais propensas a comprar.Fazer com que as pessoas tenham pouco tempo livre significa que elas vão pagar bem mais por conveniência, gratificação e qualquer outro alívio que possam comprar. Faz com que elas continuem assistindo televisão, e os seus comerciais. As mantém pouco ambiciosas fora do trabalho.Fomos conduzidos a uma cultura projetada para nos deixar cansados, famintos por indulgência, dispostos a pagar muito por conveniência e entretenimento e, mais importante, vagamente insatisfeitos com as nossas vidas, a ponto de continuar querendo coisas que não temos.Nós compramos tanto porque sempre parece que tem alguma coisa faltando na nossa vida.”
A escritora francesa Simone Weil, intelectual fundamental do século XX, trabalhou como operária metalúrgica por um ano e, mais tarde, escreveu sobre como a vida da fábrica humilha e oprime as pessoas trabalhadoras. Sobre a jornada de trabalho, ela disse:
“[Algumas reformas sociais] anunciam uma diminuição, aliás ridiculamente exagerada, da duração do trabalho; mas transformar o povo numa massa ociosa, escrava duas horas por dia, não é nem desejável — se fosse possível — nem moralmente viável, caso fosse materialmente realizável. Ninguém aceitaria ser escravo por duas horas; a escravidão, para ser aceita, deve durar por dia o bastante para quebrar alguma coisa dentro do homem.” (Em “Experiência da vida de fábrica. Marselha, 1941-1942″, disponível em “A condição operária e outros estudos sobre a opressão”)
Pessoas inteiras, atentas, capazes, aptas, não são reféns do consumo. Portanto, o mundo inteiro foi projetado para que você nunca, nunca esteja assim — mas sempre buscando estar.
Não tem problema. Basta tomar um espresso machiato de manhã, comprar um day pass de luxe no nosso fitness spa, beber um vinhozinho francês à noite, e então dormir no nosso colchão super premium, e garantimos que amanhã você estará inteira, atenta, capaz e apta.
Se não estiver, bem, temos outros produtos que, arrá, esses sim vão resolver.
Pode confiar.
O capitalismo é canalha mas não te força a nada
A humanidade sempre sonhou que o avanço tecnológico libertaria o nosso tempo. No século XIX, demorava-se um mês pra fazer cem sapatos. Com os avanços da tecnologia, podemos fazer esses cem sapatos em um dia. Não é perfeito? Mais tempo para brincar, passear, andar sob o sol.
Enquanto isso, o capitalismo nos acena com cada vez mais produtos interessantes (iTralhas, TVs de plasma, carros com GPS turbo de fábrica), que nos obrigam a trabalhar cada vez mais para poder ganhar cada vez mais dinheiro para consumir cada vez. E quanto mais consumimos, mais queremos consumir, e mais temos que trabalhar pra poder consumir ainda mais.
Sem estimular essa nossa ganância primordial, o capitalismo quebra.
Seria desperdício, pensa o sapateiro, fazer cem sapatos em um dia e deixar o equipamento ocioso. É muito tentador fazermos três mil sapatos por mês. Podemos expandir os negócios, ganhar mais dinheiro, economizar, ter mais segurança. Sei lá, pode acontecer alguma coisa, o futuro a gente nunca sabe. É melhor aproveitar pra ganhar agora.
(Quase dá pra ouvir o clang metálico quando a armadilha se fecha.)
Apesar de insidioso e perverso, de roubar pirulitos de criancinhas e repassar correntes, o capitalismo tem a grande qualidade de nunca forçar ninguém a comprar xarope açucarado ou retângulos luminosos chineses. Nós, os consumidores, escolhemos acreditar nos discursos que queremos acreditar.
Tudo nos impulsiona a querer comer carne prensada entre duas fatias de pão, de anúncios na TV a outdoors. Inventaram toda uma disciplina para nos fazer comprar mais lixo. Desde a neurociência até a cromoterapia, essa indústria milionária contratou toda a ajuda possível para nos convencer a comprar desodorante para mascarar os cheiros que essa mesma indústria inventou que são ruins.
E, ainda assim, incrivelmente, contra toda a lógica e contra toda a expectativa, é de fato incrivelmente fácil não-comprar dois hambúrgueres, alface, queijo e molho especial. O ônus da ação é completamente deles: tudo o que você precisa fazer é nunca entrar na casa do palhaço e pedir a carne prensada no pão.
Para quebrar o escravizador paradigma capitalista de mais trabalho e mais consumo, mais consumo e mais trabalho, basta um simples ato de vontade. Basta você dizer para si mesmo:
“Não, eu não vou pegar esse emprego, porque ele vai me fazer passar dez horas por dia utilizando minha finita energia vital para realizar os objetivos de outras pessoas, e ninguém merece isso. Ele paga oito mil por mês e, sim, preciso de oito mil por mês se quiser comprar o DVD da Super Máquina, ou passar férias em Bonito, ou comprar um novo home theather, mas não preciso de oito mil pra viver. A minha vida vale mais. Oito mil não paga a minha vida. Oito mil não me compra.”
Sobre trabalhar no que se ama
É hipócrita e elitista defender que “temos que trabalhar no que amamos“.
Essa possibilidade está aberta para pouquíssimas pessoas. A enorme maioria da população humana, todas pessoas tão incríveis e complexas como eu e você, com um cérebro poderoso e subjetividade profunda, estão fadadas a trabalhar em empregos chatos e repetitivos, entregando cartas, dobrando roupas, atendendo telefones.
A questão não é se amamos ou não essas atividades remuneradas que executamos, mas se o salário que nos pagam em troca das horas de trabalho é maior ou menor do que tudo que esse emprego nos suga em termos de tempo e energia vital.
A questão é se nos resta tempo (realmente) livre e energia vital produtiva para viver nossas vidas plenas de pessoas humanas quando não estamos entregando cartas, dobrando roupas, atendendo telefones.
Trabalhar para viver ou viver para trabalhar
Quando larguei meus estudos nos Estados Unidos e voltei para o Brasil, meu plano era ser escritor em tempo integral. Viver de literatura. Tralálá.
Como tantas pessoas escritoras antes de mim, resolvi ganhar a vida traduzindo e, enquanto isso, escreveria minha ficção literária. Se Machado e Clarice, Eça e Nelson, produziram suas obras assim, por que não eu?
Depois de um processo seletivo rigoroso que se arrastou por quase um ano, consegui uma colocação de tradutor de literatura na maior editora do Brasil.
Pagavam vinte e cinco reais por página. Eu traduzia uma página por hora, em média. Então, trabalhando só pela manhã, das oito ao meio dia, conseguia ganhar cem reais por dia, quinhentos por semana, dois mil por mês. Com esse valor, já conseguia sobreviver com folga na minha rotina espartana.
Mais importante, teria o resto do dia e os fins de semana completamente livres para fazer o que quisesse: ler, dormir, transar, trabalhar nos meus projetos literários, até mesmo pegar frilas remunerados, se quisesse mais dinheiro.
Ou seja, essas quatro horas diárias traduzindo, que poderiam ser feitas em casa ou mesmo viajando, me possibilitariam a liberdade de viver minha vida nos meus próprios termos.
Ou seja, tudo o que um emprego saudável idealmente tem que ser.
Só não antecipei um pequeno probleminha:
Para mim, traduzir se revelou uma das atividades mais chatas, tediosas, enlouquecedoras da humanidade.
Frequentemente, as quatro horas se transformavam em oito, nove, dez. Eu adiava o começo do trabalho tudo quanto podia. Limpava a privada, lavava a louça, esfregava o chão.
“Deixa só limpar o filtro do ar-condicionado e já começo.”
Minha casa nunca esteve tão limpa.
Quando finalmente começava, bastava uma hora de tradução para liquefazer meu cérebro e eu implorava uma pausa para mim mesmo:
“Deixa só eu dar uma olhadinha na internet por cinco minutinhos…”
Três horas depois, tendo assistido todos os vídeos de gatinho disponíveis no ciberespaço, lá estava eu ainda tentando me esforçar para voltar ao trabalho. Para mais uma hora de tortura.
No final do dia, eu estava exausto, cansado, sem energia para mais nada — e tinha produzido somente as tais quatro páginas (às vezes, menos) que deveria ter terminado até o meio dia.
Depois de alguns meses, percebi que tinha caído na armadilha. Eu estava vivendo para trabalhar, não trabalhando para viver.
A tradução não estava possibilitando que me dedicasse aos meus projetos pessoais: pelo contrário, ela estava sugando o tempo livre e a energia vital que dedicaria a esses projetos.
Eu traduzia da manhã à noite e, quando ia dormir, era para descansar e estar desperto e atento e apto para traduzir o dia seguinte inteiro também.
Clang!
E, pior, estava me vendendo barato. Nem quinze mil reais, nem qualquer soma imaginável de dinheiro, valem todo o nosso tempo e energia vital. E estava me deixando escravizar por dois mil. (Suje-se gordo!, disse o personagem corrupto no conto de Machado de Assis.)
Resisti muito à decisão.
Tenho quarenta anos e sou praticamente inimpregável, com cada vez menos habilidades que o mercado valoriza e remunera. Bem ou mal, traduzir literatura era minha área. Clarice Lispector vivia disso!
Será que não podia me esforçar mais um pouquinho? Será que não podia me esforçar mais um pouquinho para ser como as pessoas que amavam aquilo que para mim era tortura?
Pior, era a última atividade remunerada que eu podia exercer que meu pai entenderia, que acalmava um pouco o seu medo perene de que eu um dia acabaria mendigando nas ruas:
“Sim, pai, estou traduzindo literatura para a maior editora do Brasil, ganho tanto, faço tantas páginas em tantas horas, consigo tirar tanto por mês, tudo vai ficar bem.”
E agora, nem isso.
* * *
Algumas vezes, as pessoas leem esses meus textos e comentam, revoltadas:
“Ah, Alex, do jeito que você fala parece tudo muito fácil, né?”
Mas não. Nada do que falo aqui é fácil. Nadinha.
Demorei três anos e seis livros para tomar a decisão de sair da editora. Só eu sei como foi difícil.
Mas, pra mim, foi necessário.
Pepe Mujica: “O indivíduo que trabalha não é livre”
Na imprensa internacional, ele é conhecido como “o presidente mais pobre do mundo”, por causa de seu estilo de vida simples.
Mas, segundo Pepe Mujica, do Uruguai, pobres são aqueles que precisam de muito para viver. Sua vida austera teria como objetivo se manter livre:
“Eu não sou pobre. Pobre são aqueles que precisam de muito para viver, esses são os verdadeiros pobres, eu tenho o suficiente. Sou austero, sóbrio, carrego poucas coisas comigo, porque para viver não preciso muito mais do que tenho.Luto pela liberdade e liberdade é ter tempo para fazer o que se gosta. O indivíduo não é livre quando trabalha, porque está submetido à lei da necessidade. Deve-se trabalhar muito, mas não me venham com essa história de que a vida é só isso.”
Os dilemas da baixa classe média
A baixa classe média, logo acima da pobreza, com medo de cair nela e precisando de símbolos de status visíveis para se distinguir dela a todo custo, é a principal vítima de um perverso jogo de aparências que inflige em si mesma.
* * *
Meu amigo João Carlos, jornalista formado por uma universidade topo de linha, trabalha de redator em uma grande cadeia varejista e ganha R$1.800 líquidos por mês.
Seus empregadores esperam que ele esteja sempre inteirado das últimas novidades culturais, que seja lido e viajado, que conheça os últimos livros e filmes, que fale inglês e espanhol e que ainda trabalhe todo dia de roupa social.
Fazendo um cálculo rápido, ver três filmes no cinema, comprar dois livros, assinar TV a cabo e um grande jornal já custam quase um sexto do salário mensal de João Carlos — sem nem começar a levar em conta tudo o que gasta almoçando fora, pagando aluguel, renovando seu guarda-roupa e mantendo seu carro.
* * *
João Carlos precisa almoçar fora, pois não pode ser o único da equipe comendo uma marmita na copa.
(O que pensariam dele? Poderia prejudicar sua futura ascensão na empresa!)
Então, todo dia, ele vai com colegas para o restaurante mais barato das redondezas, onde o almoço executivo é vinte reais e a conta final não sai por menos de trinta. Trinta reais por almoço vezes vinte e dois dias úteis no mês, e João Carlos gasta R$660 comendo fora. Mais de um terço de sua renda líquida. Em única refeição.
Sem contar café da manhã e jantar. Sem computar todas as vezes que ele e colegas escapam do escritório no meio da tarde pra tomar um cappuccino doppio de nove reais na franquia de café da esquina.
* * *
O custo anual de manter um automóvel no Rio ou em São Paulo é de dez mil reais por ano, sem nem levar em conta o valor do carro em si. Mas João precisa desse passivo anual de dez mil, pois não poderia jamais ir de ônibus pro trabalho.
Os ônibus estão sempre cheios e apertados, ele chegaria suado e amarrotado — e teria que trabalhar ao lado de pessoas impecáveis, que vieram para o escritório dirigindo seus carros no ar condicionado.
“Eu mereço esse pequeno luxo!”, ele me disse uma vez.
(Não é pequeno, João: são dez mil reais por ano.)
* * *
Pela manhã, João Carlos não pode chegar arriscar chegar atrasado, pois o chefe olharia feio e ele seria o primeiro a rodar na próxima leva de demissões. Como o trânsito é imprevisível, ele sai muito cedo, dirige tenso por todo o trajeto com medo do imprevisto fatal que lhe atrasaria e quase sempre acaba chegando bem antes da hora.
No fim do expediente, entretanto, ele nunca, nunca saiu às cinco.
A única outra funcionária que fazia questão de sair sempre às cinco — sabe como é, parece que tinha família e outras prioridades de vida — foi demitida na primeira leva de “reestruturamento de pessoal” logo depois de contratada. Disse o chefe:
“Essa daí não vestia a camisa”!
Então, João Carlos sai do escritório lá pelas sete, oito.
Quando não acontece uma emergência profissional, claro.
Nas muitas noites em que fica realmente até tarde (como “oito da noite” virou horário normal, “até tarde” passou a significar “até de madrugada”), a empresa compra pizzas para todos e João Carlos, sem nenhuma vergonha ou autoconsciência, até com orgulho, ainda posta nas redes sociais a marca da sua escravidão, com a legenda:
“Eba! Dia de pizza de firma!”
Postado às 22:30. Ontem. E anteontem também.
* * *
João Carlos, que é pago por quarenta horas semanais, passa cerca de sessenta no escritório.
Sem contar o tempo que passa realizando atividades que só existem em função do trabalho, como se arrumando de manhã, almoçando fora e se deslocando entre casa e escritório. (Quantas horas será que sobram?)
A empresa desconversa sobre horas extras e João Carlos nem fala no assunto, não quer parecer chato ou insistente:
“Hora extra é coisa de peão, eu vou ser gerente”.
João Carlos poderia doar essas vinte horas de trabalho semanais para alguma instituição de caridade, ensinar inglês na periferia ou servir sopa no abrigo, mas escolhe doá-las para uma grande empresa multinacional cujo lucro, ano passado, foram alguns bilhões.
* * *
Quando chega em casa, João Carlos também não está livre. Os chefes e os colegam ligam, mandam SMS, enviam emails. Tem sempre algum dever de casa, alguma coisa pra fazer, algum texto pra ler.
Se o chefe passa o link de um artigo relacionado ao trabalho às nove da noite, pergunta sobre ele às nove da manhã do dia seguinte e João Carlos não leu, pega supermal. Cadê o comprometimento?
Teve um sábado em que deu um chabu e toda a equipe foi reconvocada correndo para a firma. Só uma moça não apareceu: parece que estava passeando com a família e não levou o aparelhinho. Como disse o chefe de João Carlos enquanto entrevistava novas pessoas para o cargo dela:
“Ninguém é insubstituível!”
* * *
João Carlos não tem renda suficiente para pagar um plano de saúde que considere decente mas foi educado para se achar acima do SUS, que seria somente para pessoas pobres e miseráveis que morrem na fila do hospital, etc.
Então, acaba fazendo um sacrifício financeiro desproporcional para pagar um plano de saúde de baixa qualidade, que não dá direito a quase nada e provavelmente vai jogá-lo nos braços do SUS se precisar de atenção médica intensa.
Tomara que isso nunca aconteça: seria fatal para sua autoestima e para sua autoimagem se ver ou ser visto como uma “dessas pessoas” que usam o SUS.
* * *
João Carlos ainda não tem filhos ou filhas mas também faria um sacrifício financeiro excepcional para colocá-las todas em escola particular.
Imagine o que pensariam dele se vissem sua filhinha saindo do prédio para pegar o ônibus (!) vestindo um uniforme da rede pública!
Sua esposa pediria o divórcio e o juiz, também classe média e entendendo a seriedade da situação, talvez até considerasse que matricular a filha em escola pública quando se tem recursos para uma particular qualifica como maus-tratos e negligência.
Perigava de João Carlos perder a guarda e ainda ir preso.
* * *
Finalmente, talvez o mais cruel.
Os bancos, sabendo do inviável estilo de vida que João Carlos impôs a si mesmo, lhe oferecem crédito facilitado e pré-aprovado, cheques especiais e cartões de crédito, e ele, que não pode ser o único da empresa que não passa o verão em Ubatuba, que não almoça com o chefe em restaurante, que não tem carro, acaba aceitando.
(*CLANG*)
* * *
Naturalmente, João Carlos não tem como morar sozinho: a conta não fecharia.
Portanto, aos trinta e seis anos, ele ainda mora com os pais, ainda no mesmo quarto onde cresceu, ainda cercado por muitos dos brinquedos da infância, ainda tomando o chocolate quente da mãe, ainda sem nunca ter lavado sua própria roupa, esfregado sua própria privada, cozinhado sua própria comida.
João se acha muito maduro, muito adulto, muito independente. Diz que na casa dos pais ele vive com toda a liberdade e independência, e que ainda está economizando.
“Um dia, vou comprar um apartamento.”
Enquanto isso, os pais, funcionários públicos aposentados, morrem de orgulho do filhão e seu emprego prestigioso em uma sólida multinacional que conhecem desde criancinhas.
* * *
Dei aulas em uma universidade norte-americana por vários anos.
Um dia, o João Carlos me perguntou se os meus alunos eram assim tão imaturos quanto parecia nos filmes.
Respondi que não. Sim, as pessoas que eu ensinava tinham dezoito anos, estavam morando sozinhas pela primeira vez, bebiam demais e faziam muita, muita merda. (Eu sei bem. Minha universidade era considerada a melhor “party school” dos EUA.)
Por outro lado, tinham saído da bolha de proteção de suas famílias, estavam se virando completamente sozinhas, eram responsáveis por seus destinos.
Apesar das bebedeiras e das fraternidades, meus alunos norte-americanos, aos dezoito, eram mais maduros, mais autônomos, mais independentes do que certamente todos os meus amigos-brasileiros-classe-média-morando-com-os-pais aos dezoito.
* * *
Concretamente, de fato, na ponta do lápis, João Carlos paga para trabalhar.
O emprego de prestígio na verdade não é nem mesmo um subemprego: é um trabalho voluntário.
O que o conglomerado multinacional lhe paga não é um salário: é um pró-labore que cobre alguns dos custos (mas não todos) que ele incorre em seu voluntariado.
O aumento de padrão de vida é uma armadilha
Não somos movidos a dinheiro: somos movidos a status.
Quando vamos entrando na classe média, quase sempre pela porta de trás, tímidas ainda, nem reparamos nas aves de rapina começando a circular sobre nossas cabeças.
Subitamente, aos olhos do deus-mercado, nos vemos transformadas em consumidoras em potencial, futuras correntistas, prováveis investidoras, escravas predestinadas.
Lá adiante, dentro de uma gaiola dourada, incríveis brinquedinhos reluzentes com os quais nunca tinham nos deixado brincar. Como resistir?
Finalmente, estamos tão entretidas com o joguinho do celular que nem ouvimos quando fecham a gaiola e jogam a chave fora.
*Clang*
* * *
Conheço pessoas amigas que ralaram anos a fio em empregos terríveis, sofreram todo tipo de privação, aguentaram tudo estoicamente: pagaram suas contas com sufoco, mantiveram sua dignidade com esforço, não se deixaram corromper.
E, no entanto, bastou começarem a ganhar um pouco a mais para se perderem completamente.
O labirinto só tem porta de entrada.
Funciona mais ou menos assim:
1. Primeiro, você arruma um trabalho. Fica quase envaidecido de alguém achar que merece o salário que lhe ofereceram e se promete fazer um excelente serviço! É o começo da sua vida profissional. Uau!
2. Fase da demanda reprimida: começa a consumir todas aquelas coisas que não podia comprar quando ainda não tinha o trabalho. Seus gastos fixos crescem: leasing de carro, aluguel de apartamento maior, TV a cabo, plano de previdência privada, etc.
3. Talvez por descontrole, talvez por uma emergência, se endivida pela primeira vez. Mas tudo bem, você paga até o final do ano. Tem o seu salário certo, é só questão de se organizar.
4. Percebe subitamente que precisa manter aquele emprego, senão não conseguirá pagar o leasing, a previdência, as parcelas da viagem do ano passado, etc. Pensa nos seus gastos mensais antes do emprego e simplesmente não consegue entender como sobrevivia com tão pouco. Vida com menos de cem canais de televisão não é vida! Sente medo.
5. Trabalha ainda mais duro pra não perder o emprego. Fica estressado de tanto trabalhar, de tanto se preocupar, de tanto ter medo. Começa a tomar remédios. Brocha pela primeira vez. Mais e mais cabelos na escova.
6. Cansado física e emocionalmente, consome ainda mais. DVDs de séries idiotas, pornografia japonesa, livros que não vai ler nunca, qualquer coisa pra descansar sua cabeça e desacelerar seus nervos, de modo que possa acordar no dia seguinte capaz de trabalhar mais quinze horas. Ou então, livros sobre seu trabalho, quem mexeu no queijo do meu chefe, inglês pra executivos apressados, para tornar-se ainda mais eficiente e não ser — deus me ajude — demitido. Já não tem mais tempo livre, pois todo o seu tempo, mesmo quando não está no trabalho, gira em torno do trabalho. Ninguém é insubstituível, diz seu chefe. (Um mês depois, ele é demitido!)
7. De tanto consumir nervosamente, suas dívidas crescem, espalhadas por tantos lugares que nem dá pra acompanhar. Graças ao seu alto salário, o banco lhe deu um limite gigantesco no cheque especial, que você achou que jamais atingiria, e fica chocado ao atingir. Mal sabe quantos pré-datados faltam pra cair, ou quantos pagamentos parcelados ainda vão bater no cartão de crédito. E o leasing do carro, meu deus? Se arrepende de ficar pagando por dez meses por uma viagem de cinco dias que nem foi tão legal assim, mas todo mundo do escritório estava indo, você não poderia ser o único que não conhecia a Europa. A cada compra, você se pergunta: “qual é o melhor cartão de crédito pra usar? qual é mesmo o dia do vencimento do Visa? será que já estourei o Mastercard?”
8. Desespero no trabalho. Horas extras, frilas, puxação de saco desenfreada. A economia está em crise, se for despedido agora é o fim de tudo. É tudo ou nada. Mais e mais remédios, menos e menos libido. Tudo o que pode fazer agora com as mulheres é dedá-las rapidinho. Você nem liga: quem precisa de mulher se tem a pornografia japonesa na internet?
9. Dívidas crescem. Tenta pegar um empréstimo rápido em uma financeira e descobre que seu nome está sujo na praça por causa de um cheque pré-datado que nem lembra mais pra quem foi. Sem esse empréstimo, a financeira (outra) vai tomar seu carro! E como vai chegar no trabalho sem carro? Seu bairro de rico não tem serviço de transporte público decente. Com que cara vou ficar na empresa se souberem que não tenho carro? É o fim de tudo, etc.
E assim vai indo. Não sei como termina.
O final é sempre diferente, mas nunca é bonito.
Viver fazendo tanta economia já não é uma prisão?
Amanda começou a ganhar bem depois de anos ganhando pouco. Naturalmente, bateu a demanda reprimida. Precisava de um novo sofá pra sala, consertar o carro e refazer a fiação do banheiro — e agora podia pagar!
Até aí, tudo bem. O importante é não cair na armadilha do “aumento do padrão de vida”.
Se ela antes passava o mês com R$1.500, hoje continua podendo. Se está ganhando quatro, não precisa aumentar o padrão de consumo para quatro: pode continuar gastando mil e economizar três.
Consertar o carro, comprar o sofá e refazer a fiação do banheiro não saía por mais de cinco, oito mil reais, ou seja, apenas dois meses do novo salário para satisfazer suas demandas mais reprimidas.
Ela podia pode até se dar um aumento: agora, em vez de viver com R$1.500, podia se permitir viver com dois mil e economizar metade do seu salário líquido. Um excelente negócio.
Mas Amanda, depois de anos de contenção de gastos, sentia que tanta austeridade não era justa e resolveu usar meus próprios termos contra mim:
“Pôxa, Alex, vou ter que continuar vivendo nessa prisão, nessa vida monástica, nessa pobreza absoluta sem poder consumir nada? Logo agora que tenho a renda pra comprar e sou livre pra consumir? Não posso ser livre? Tenho que continuar presa? Não é você que fala tanto em liberdade?!”
Amanda já estava com o corpo todo dentro da gaiola, faltava só trancar.
Se você ganhar quatro mil reais por mês e consumir quatro mil reais por mês, expliquei, você não vai ser livre.
Pelo contrário, se tornará prisioneira do seu emprego, pois precisará dele pra manter esse novo padrão de consumo. Seu trabalho logo vai tomar conta de todos os aspectos de sua vida e te dominar completamente. Por mais que goste dele, em breve você se tornará uma trabalhadora chata e medíocre: não terá nem mais coragem de tomar uma atitude diferente, ter uma nova ideia, criticar o chefe. Afinal, se for despedida, como continuaria morando nesse novo apartamento, dirigindo esse novo carro, pagando esse novo plano de mil canais na TV a cabo?
Ganhar quatro mil reais por mês e consumir quatro mil reais por mês é praticamente a definição de não-liberdade.
Por outro lado, se você se der um pequeno aumento e passar a viver com dois mil reais por mês, vai poder economizar a mesma quantia. Sua vida vai continuar quase tão boa ou tão ruim quanto sempre foi, só um pouco melhor (ao menos, você sabe que é sustentável) com um benefício: vai estar construindo um lastro. Ao final de um ano, terá R$24 mil economizados.
Com esse dinheiro, mesmo se for demitida, mesmo se pedir demissão, ou mesmo se só te der na telha sair do emprego, você sabe que vive por um ano, sem precisar trabalhar nem mudar nada no seu estilo de vida.
A segurança que terá é o exato oposto do medo sufocante de quem ganha quatro e gasta quatro. Agora, não é você que precisa do emprego, é o emprego que precisa de você.
Se quiser, pode parar de trabalhar e procurar outra colocação melhor. Se quiser, pode ficar um ano sem fazer nada e, depois disso, estará exatamente onde está hoje, sem perder nada e tendo ganho um ano de ócio — um bem precioso que não tem preço.
Ou melhor, tem: R$24 mil.
(Quem disse que “tempo é dinheiro”, mentiu. Tempo é muito mais importante que dinheiro. O dinheiro que perdemos volta. O tempo, nunca.)
Em meros quatro anos, a duração de um curso universitário, você junta cem mil reais, que é um tipo de liberdade por si só: uma poupança que pode te permitir abrir um negócio, começar uma carreira, mudar de rumo, se enfiar em um pequeno sítio no interior, comprar um veleiro usado. (Esse último é o meu plano para as minhas economias.)
Não precisará ter medo do chefe, medo de arriscar, medo de perder o emprego.
Pelo contrário, vai poder amar seu trabalho e se dedicar a ele de maneira mais saudável, sem precisar lhe hipotecar sua subjetividade ou colocá-lo no centro da sua vida.
Não ter medo de perder o emprego vai te tornar uma profissional melhor, mais criativa, mais eficiente, mais original — especialmente se comparada às suas colegas bundonas e apavoradas — e, provavelmente, diminuirá as suas chances de acabar realmente perdendo o emprego. (Como se isso fosse uma grande tragédia, aliás!)
Mais importante, vai viver livre do medo, e não sentir medo já é uma recompensa por si só.
Você veste a camisa da empresa, mas ela não veste a sua
Nesse momento, em um dos encontros “As Prisões”, uma moça se levantou e apontou para o marido:
“O fulano aqui é igualzinho. Ele trabalha de designer numa agência de publicidade, ganha bem, economiza tudo, e todo mês ameaça se demitir. Outro dia, essa semana mesmo, a agência ganhou uma nova conta de um cliente que sempre humilha os subalternos. Meu marido chegou pro chefe e disse, o mais delicadamente possível: olha, se for pra trabalhar nesse projeto, eu vou preferir procurar outra agência. O chefe sabia que não era blefe. Resultado: os colegas dele não tiveram escolha, ele teve.”
A relação entre funcionária e empresa é sempre um jogo de poder. Ninguém está fazendo favor a ninguém.
A funcionária que se auto-ilude e “veste a camisa” da empresa precisa saber que a empresa nunca vestirá a camisa dela: será demitida, sem hesitação e sem dó, assim que essa for a decisão economicamente mais acertada.
O único poder de barganha da funcionária é a possibilidade de levar sua força de trabalho e energia vital para outra empresa. E a funcionária só pode exercer esse ínfimo poder (que é tudo o que temos) se tiver um lastro financeiro.
A cada vez que você cede e se permite comprar alguma porcaria cara, é uma tripla rasteira que está se dando: vende mais um pouco da sua energia vital ao mercado de trabalho para pagar por isso hoje; alimenta e estimula o mecanismo consumista que te tritura e te escraviza; e deixa de adicionar mais um tijolinho no edifício das suas economias.
Nesse mundo regido a dinheiro, nossas economias são a nossa liberdade.
“Ninguém é insubstituível!”
Há muito tempo, em uma galáxia muito distante, minha companheira era uma pessoa-que-trabalhava-em-prédio.
Um pouco insolente, ela vivia pedindo aumento. Um dia, a chefa olhou para ela e disse:
“Olha aqui, menina, o seu trabalho eu arrumo vinte que fazem igual. Ninguém é insubstituível.”
Aquilo calou fundo. A chefa estava coberta de razão.
O mais sensato seria ter tomado consciência de sua insignificância, metido o rabinho entre as pernas e nunca mais pedido aumento.
Mas minha companheira, bendita seja, nunca foi uma pessoa sensata: pelo contrário, ela decidiu que nunca mais seria substituível.
* * *
Hoje em dia, tanto eu quanto ela não temos nenhum vínculo empregatício ou institucional. Ganhamos nosso dinheiro exclusivamente vendendo nosso serviço e nossa experiência, nossa produção e nosso conhecimento, para pessoas que nos acompanham e nos admiram, que querem consumir o nosso trabalho porque é o nosso trabalho.
Não chegamos nesse ponto por sermos gênios da raça ou por termos herdado uma fortuna.
Foi um longo processo, uma pequena decisão atrás da outra, algumas temerárias, todas necessárias: abdicamos de atividades que, apesar de pagarem bem, qualquer outra pessoa poderia fazer (eu larguei a tradução) e nos concentramos naquelas pequenas coisas, talvez nem tão lucrativas, onde poderíamos fazer uma verdadeira contribuição pessoal, original, única.
Então, de manhã cedo, quando acordamos com preguiça, quando não estamos com vontade de levantar, quando imploramos para a outra pessoa nos deixar dormir mais um pouco, ouvimos sempre a mesma resposta:
“Não dá pra você não ir. As pessoas pagaram para te ver. Pelo seu trabalho. Você é insubstituível. Agora, aguenta!”
“Se você pudesse fazer qualquer coisa… o que faria?”
James Martin se formou no curso de Administração mais prestigiado dos Estados Unidos, em Wharton, e trabalhava de executivo para a GE.
“Era tudo muito circular. Eu trabalhava para ter comida, roupas e abrigo, e eu comia, me vestia e dormia para então poder trabalhar mais. Um dia, sentado na minha mesa de trabalho, me lembro de pensar: ‘Ninguém em Wharton nunca me perguntou o que eu queria fazer da minha vida ou se tinha mesmo certeza que esse era o caminho.”
Um dia, assistiu a um documentário sobre a vida do monge trapista Thomas Merton, um homem excepcional sobre quem já escrevi, e, instigado, leu sua autobiografia. Martin considera esse o momento do seu chamado religioso, da sua vocação eclesiástica.
Mas parecia loucura demais. Afinal, ele era um executivo em uma grande empresa! Virar padre lhe soava tão implausível quanto fugir de casa e entrar para o circo. A ideia ficou incipiente.
Cada vez mais insatisfeito, com dores de estômago de tanto estresse e ansiedade, começou a fazer terapia. No segundo ano de tratamento, o psicólogo lhe fez uma pergunta :
“O que você faria se pudesse fazer qualquer coisa?”
E Martin respondeu:
“Eu seria um padre.”
“Bem, e por que não?”
Até aquele momento, Martin tinha somente uma vontade, vaga e difusa, ali no fundo da sua cabeça, no lugar onde os sonhos impraticáveis são escondidos até morrerem de inanição.
Mas a pergunta do psicólogo tornou a questão mais imediata e mais concreta. Começou a pensar sobre quais seriam os passos concretos que precisariam ser tomados para tornar-se padre. Se informou e pesquisou. No dia seguinte, já estava no telefone com os jesuítas locais.
Hoje, o padre James Martin, com seu talento natural para contar histórias, é reconhecido como um dos melhores comunicadores da Igreja. Pregando em um país marcado por um cristianismo economicamente conservador e politicamente retrógrado, o jesuíta é uma das poucas vozes institucionais cristãs a promover mais tolerância religiosa e mais inclusão social.
E tudo começou com uma simples pergunta. Que qualquer pessoa pode se fazer.
A gente não quer o que a gente quer
Por um lado, largar um mundo corporativo canalha e ganancioso (mas que paga super bem!) e entrar em uma ordem religiosa (que exige votos de castidade, obediência e pobreza) é muito difícil.
Por outro, também não queremos ser como todos os nossos colegas, que parecem chafurdar felizes e satisfeitos na ganância corporativa.
Então, nossos egos escolhem um instável meio-termo: nos tornamos aquelas pessoas que vivem e trabalham no mundo corporativo ganancioso e canalha, operando de acordo com as prioridades desse mundo e recebendo as recompensas que esse mundo oferece, ao mesmo tempo em que sonhamos com um outro mundo, esse sim o nosso mundo verdadeiro, esse sim o mundo onde estaríamos vivendo agora, sabe… se tivéssemos escolha!
“Um dia, eu vou, hein! Vocês vão ver! Largo essa podreira aqui e entro pra um mosteiro! Enquanto isso, deixa eu calcular qual será o meu bônus anual pra 2013…”
Não queremos ser padres, ou escalar o Himalaia, ou escrever um romance.
Queremos ser o executivo que quer ser padre, a médica que quer escalar o Himalaia, a jornalista que quer escrever um romance.
Queremos é estar satisfeitas com nossos egos e, ao mesmo tempo, evitar qualquer mudança efetiva de vida.
Queremos é construir uma auto-identidade que seja confortável e não dê trabalho.
A armadilha das oito horas diárias de trabalho
Oito horas para trabalhar, oito horas para dormir, oito horas para a sua vida pessoal.
Parece um trato razoável. Faz sentido. Durmo as oito horas necessárias, dou metade das horas acordadas para o trabalho e, com o dinheiro que recebo, faço o que quero da minha vida com a outra metade.
Pena que quase nunca funciona assim, não é?
* * *
Pra começar, o tempo em que estamos nos preparando para trabalhar e o tempo em que estamos nos recuperando de ter trabalhado é todo subtraído das nossas horas pessoais.
Digamos que eu trabalhe das oito às cinco.
Preciso acordar às cinco da manhã, para poder preparar meu café da manhã, comer, fazer a barba, tomar banho, me arrumar. Depois, pego a condução às seis. O trajeto demora no mínimo uma hora, às vezes uma hora e meia, às vezes duas. Para garantir que não vou chegar atrasado, tenho que sair duas horas antes.
Só então começam a contar as tais oito horas. Na verdade, nove. Mais um roubo. Aquela hora de almoço também é trabalho. Não posso fazer o que quiser. Estou longe da minha casa, com uma roupa que normalmente não usaria, nada nesse cenário é livre.
Finalmente, cinco da tarde. Agora é hora de esperar mais duas horas, no mínimo, ou vou ser o vagabundo descomprometido que corre pra sair quando acaba o expediente.
Saindo do escritório às sete, consigo chegar em casa entre oito e nove da noite. Quase sempre às nove.
Aí é hora de tirar a roupa, tomar banho, fazer o jantar, comer, lavar a louça. Tudo isso, feito enquanto me arrasto de cansado, demora cerca de duas horas. Às onze da noite, finalmente, estou limpo e bem-alimentado, mas ainda, e cada vez mais, exausto.
Eu me deixo cair em frente à televisão e vou assistir o Jô, ou algum filme idiota, e meu cérebro vai lentamente se entorpecendo.
Antes da meia-noite, eu durmo. Para acordar cinco horas depois.
* * *
Nada no cenário acima é incomum. Não é uma rotina que seria vista como anormal ou particularmente desagradável. Para a maioria das pessoas trabalhadoras assalariadas, essa é a vida como ela é, a vida como deve ser. A vida é isso.
Para mim, é um cenário de horror.
As oito horas que essa pessoa deveria trabalhar simplesmente lhe ocupam o dia inteiro e ainda lhe roubam três horas de sono.
Além de não dormir as oito horas necessárias (algo que vai destruir sua saúde a curto, médio e longo prazo), essa pessoa simplesmente não tem nenhuma hora livre. O tempo que ela tem para si mesma não existe.
* * *
Minha definição de tempo livre é simples: tempo livre é quando somos capazes de ser produtivos para nós mesmos.
Então, se chegamos do trabalho tão exaustos que não conseguimos fazer nada, a não ser passivamente ver TV, esse tempo não é livre. Esse tempo é do trabalho. Esse tempo é consequência direta e continuação necessária das horas que passamos trabalhando.
Se saio do trabalho às cinco, caminho meia hora até em casa, onde chego bem-disposto, e depois de comer e tomar banho, e talvez até tirar um cochilo, lá pelas sete eu estou limpa e livre e descansada e pronta para compor uma ópera ou jogar uma partida de tênis, fazer mais uma posição do kamasutra com o marido ou ler poesia, então sim, esse tempo é livre.
O tempo livre é aquele no qual estamos aptas e capazes e atentas para trabalhar nos nossos projetos pessoais, e não mais estamos trabalhando nos projetos pessoais dos outros.
Naturalmente, para isso, precisamos ter um projeto pessoal. Qualquer que seja.
Então, quando não estamos realizando os projetos pessoais-jurídicos da empresa para a qual trabalhamos, quais dos nossos projetos pessoais estamos realizando?
Aliás, temos projetos pessoais?
E, se não temos, por que não temos?
Sim, a vida passa muito rápido. Estudo, escola, carreira, vestibular, casamento, filhas, promoção. Nunca temos tempo para parar e pensar. Para ficar meia hora que seja, sozinhas, caladas, pensando. Para descobrir… quem somos? O que queremos?
Mas… por quê? Por que nunca temos esse tempo? Por que tudo no mundo em que vivemos é feito para que nunca tenhamos a oportunidade de parar e pensar e descobrir quem somos?
As pessoas que sabem quem são e o que querem usam o seu trabalho como uma ferramenta para realizar seus sonhos e projetos.
As pessoas que sabem quem são e o que querem são muito, muito mais difíceis de escravizar.
O pacto do trabalho
O pacto do trabalho funciona mais ou menos assim.
Eu, uma pessoa física, quero fazer muitas coisas. Escrever um romance, morar num barco, conhecer Vancouver. Para fazer essas coisas (vamos chamá-las de “projetos pessoais”), eu preciso de dinheiro. Infelizmente, não tenho dinheiro.
A ACME, uma pessoa jurídica, quer fazer muitas coisas. Fabricar, vender, anunciar seus produtos. Para fazer essas coisas (vamos chamá-las de “projetos pessoais-jurídicos”), ela precisa de corpos. Infelizmente, ela é uma entidade incorpórea.
Então, fazemos um acordo.
Durante algumas horas por dia, em vez de utilizar meu próprio corpo para os meus próprios projetos pessoais (como seria o mais razoável), eu me comprometo a utilizar meu corpo para realizar os projetos pessoais-jurídicos da ACME — como, por exemplo, ter textos bem escritos em seu site, atraindo assim clientes e vendendo mais produtos.
Em troca, a ACME me fornece dinheiro para que eu possa realizar os meus próprios projetos pessoais.
Não tem nada de errado com esse pacto. É uma troca complementar na qual ambas as partes saem ganhando. Em um mundo ideal, a ACME consegue o seu site bem escrito e eu fico mais próximo de comprar o meu barco.
Mas o pacto só faz sentido se me restar tempo livre o suficiente para realizar também os meus objetivos pessoais.
Se passo o dia inteiro realizando os projetos da ACME, ou me preparando para realizar os projetos da ACME, ou descansando depois de passar o dia todo realizando os projetos da ACME, ou dormindo para poder no dia seguinte realizar mais projetos da ACME, então…
Para quê estou fazendo isso?
Em que momento vou realizar os meus próprios projetos?
Se não tenho tempo para realizar meus próprios projetos, de que adianta então realizar os projetos da ACME?
Se minha vida virou apenas sobrevivência, se eu trabalho só para poder trabalhar mais, então melhor largar tudo e viver de esmola. Sim, eu ganharia menos, mas gastaria menos também.
Quando não sou o corpo que a ACME usa para realizar o seu projeto de ter textos bem escritos no site….
QUEM eu sou?
* * *
E se, no próximo dia útil, eu não tivesse mais que realizar os projetos da ACME? E se tivesse o dia só todo para mim, para realizar os MEUS projetos?
Quando não estou vendendo minha energia vital para realizar os objetivos da empresa em troca de dinheiro… quem sou eu? Se a minha energia vital e meu tempo fossem subitamente meus (dica: são), o que eu faria?
Quais são meus projetos pessoais?
Quem somos quando não estamos trabalhando?
Para muitas pessoas, essa pergunta é difícil.
Elas simplesmente não têm a resposta. Não sabem. Nunca pensaram nisso. Estavam ocupadas demais passando no vestibular, cursando medicina, trabalhando sessenta horas por semana, trocando fraldas da filha.
Nesse caso, faço uma outra pergunta:
Por que não sabemos?
Em quais outras coisas ficamos pensando durante toda nossa vida? O que foi que tanto ocupou nosso tempo, nossa cabeça, nossa energia, que nós nunca, nunca tivemos a oportunidade de simplesmente parar e pensar:
Quem somos? O que queremos? Quais são nossos projetos?
Às vezes, basta pensar durante uma hora para resolver essa questão. Não uma hora por dia, ou uma hora por semana, mas uma hora em toda uma vida.
Em menos de uma hora, você decide que quer ser padre, ir a lua, fazer todas as posições do kamasutra, ganhar Wimbledon.
Em menos de uma hora, você traça por alto um plano para seguir por toda a vida: entrar na melhor escolinha de tênis da cidade; se federar; treinar o backhand o dia inteiro; tentar entrar em uma universidade norte-americana com bolsa de tênis, etc.
Um dia, aos doze anos de idade, eu decidi que não queria mais ser desenhista de quadrinhos e sim escritor.
Desde então, todas minhas decisões tem sido em função desse objetivo — por exemplo, não cursei jornalismo, talvez a carreira inevitável para mim, porque pensei que se passasse o dia inteiro escrevendo para um periódico, não teria saco nem energia para meus próprios textos.
Depois de tomar minha decisão, nunca mais precisei pensar no assunto.
Eu já sabia quem era e onde queria chegar. O resto foi só questão de ir ajustando o GPS um pouco mais pra cá, um pouco mais pra lá.
A moral da história não é que sou uma pessoa incrível que sabe o que quer. (Não sou.)
A moral da história é que não é preciso muito tempo, nem muita maturidade, nem nada, de fato, para se saber o que se quer.
Basta sentar, quietinha, um minutinho, em um cantinho… e se ouvir.
Mas às vezes vivemos vidas inteiras sem nunca, nunca fazer isso.
Quais sapos queremos engolir?
No encontro “As prisões”, sempre faço essas perguntas. Quem somos. O que queremos. O que faríamos se pudéssemos fazer qualquer coisa.
E uma moça um dia respondeu:
“Eu queria ser bióloga.”
Perguntei de volta:
“E por que não? O que está te impedindo de ser bióloga agora?”
Ela contou sua história: trabalhava como assistente pessoal de uma juíza, um emprego sem criatividade alguma, mas que pagava bem, dez mil reais por mês, e lhe permitiu juntar boas economias. Os filhos já estavam criados. O salário do marido sozinho segurava a barra das contas da casa.
“Então”, insisti, “o que te impede de entrar pra uma faculdade de biologia agora?”
No instante depois de articular o seu sonho — ser bióloga — ela começou a sistematicamente torpedeá-lo por todos os lados, listando literalmente tudo que poderia dar errado.
“Ah, você não entende. O meu marido consegue segurar as contas da casa, mas eu teria que parar a ioga, e adoro a ioga. A melhor faculdade da cidade — eu só faria se fosse essa — é longe, eu teria que pegar dois ônibus. Ou ir de carro, mas odeio dirigir. Teria que estudar um pouco de matemática, sempre fui péssima em matemática, não sei se consigo.” Etc, etc.
E concluiu:
“Acho que é impraticável pra mim ser bióloga…”
“E quais são as coisas que você não gosta no seu emprego?”
“Porra, passo o dia inteiro correndo atrás da juíza, organizando a vida da juíza, levando patada da juíza, recebendo telefonemas da juíza nas piores horas. É como se eu fosse mãe de uma bebê de sessenta anos de idade que tem cólica o dia todo e reclama por tudo. Uma merda.”
E eu disse:
“Bem, acho que é impraticável pra você ser assistente pessoal de juíza, então…”
* * *
Quem não é tanto o dentista entediado quanto o artista plástico que poderia ter sido? Ou talvez o artista plástico pobretão e o dentista que poderia ter sido?
Conheço muitos dentistas (e contadores e bancários e etc) que adoram fantasiar sobre a vida livre e interessante que levariam se tivessem mergulhado de cabeça nas artes plásticas (ou na poesia ou no teatro ou etc).
Conheço muitos artistas plásticos (e atores e poetas e etc) que também adoram fantasiar sobre a vida segura e confortável que levariam se tivessem mergulhado de cabeça na odontologia (ou na contabilidade ou nas ciências atuariais ou etc).
De fato, alguns dentistas teriam sido excelentes poetas. De fato, alguns poetas talvez devessem ter se dedicado à odontologia. Mas quais?
Essa é a questão. Questão que não tenho como responder.
Cada escolha de vida tem delícias e custos que só conhece quem as escolheu.
Escolhi a vida de artista. Tenho quarenta anos e nunca me assinaram uma carteira. Não tenho economias nem filhos, e vivo uma vida incerta. Mas tenho liberdade e tempo livre para criar.
Todo dia, comparo minha vida a dos amigos que desfizeram a banda da pós-adolescência e se dedicaram à estatística: eu não trocaria minha vida pelas deles mas, talvez mais importante ainda, eles também não trocariam suas vidas pela minha.
* * *
Toda escolha tem ônus e bônus que só sabe quem a escolheu.
Se o preço de ser bióloga é largar a ioga ou pegar dois ônibus, o preço de ser assistente de juíza é aturar uma bebezona de sessenta anos.
De um modo ou de outro, pagamos sempre o preço das nossas escolhas. A conta sempre vem.
Cabe a nós escolher:
Queremos engolir os sapos de termos encampado os nossos sonhos, de termos seguido a carreira que sempre desejamos?
Ou queremos engolir os sapos da carreira chata “que papai mandou”, porque “dava dinheiro” e era “a mais segura”?
Engolir sapos não é opcional. Mas podemos escolher quais sapos queremos engolir.
Um posfácio pessoal, com agradecimentos
A Prisão Dinheiro, originalmente publicada em 2008 e agora expandida e quebrada em duas (Dinheiro e Trabalho), talvez seja um dos textos mais importantes que já escrevi. Graças a ele, conheci duas pessoas que hoje estão entre as mais importantes da minha vida. (Das três pessoas na discagem rápida do meu telefone, elas são duas.)
Minha quase-irmã Sônia estava desesperada com problemas financeiros e esse texto lhe ofereceu um caminho e um consolo. Sentindo-se em dívida comigo (eu reitero que ela não me deve nada), ela tem me hospedado gratuitamente, me oferecendo abrigo e tranquilidade para que eu possa escrever mais. Minha dívida com ela não tem fim. Sônia hoje é minha família. Sem a Sônia generosamente me hospedando pelos últimos três anos, eu não poderia ganhar a vida escrevendo.
A irmã da minha atual companheira também estava procurando por conteúdo sobre economia doméstica, encontrou a Prisão Dinheiro, gostou, leu mais, repassou para a irmã, ela também começou a me ler… e, bem, temos caminhado juntos pelos últimos anos. É uma das pessoas mais incríveis que já conheci.
Também devo agradecimentos a outras pessoas sem as quais esse texto não existiria.
Em primeiro lugar, obrigado à equipe do Grana Forte, um software de planejamento financeiro que me encomendou uma série de textos sobre economia doméstica para divulgarem seu produto. Foi dos pouquíssimos posts pagos que fiz na vida, devidamente informado aos leitores, e me salvou de um aperto em um ano de vacas magras. Sem a perspectiva do ganho financeiro, como tantas vezes na vida, eu provavelmente não teria nunca conseguido terminar esse texto.
Em segundo lugar, obrigado ao Guilherme Valadares e ao PapodeHomem, que não apenas pagou de novo por esse texto, como cobraram por ele incansavelmente até que não me restou outra saída a não ser revisá-lo, reescrevê-lo e expandi-lo. Sem o PapodeHomem generosamente comprando meus textos pelos últimos três anos, eu não poderia ganhar a vida escrevendo.
Em terceiro lugar, obrigado a minha amiga Flávia Tótoli, da Benu Marketing, que há seis meses gerencia e administra a minha página no Facebook. Se ela não tivesse tirado da minha mão esse gigantesco sumidouro de tempo, eu não teria conseguido escrever um décimo do que escrevi.
Por fim, obrigado a todas as pessoas que vieram aos encontros As Prisões e Prisão Dinheiro, que tenho realizado por todo Brasil. O texto, na verdade, foi reescrito e reelaborado nesses encontros, ao vivo, oralmente, no diálogo com as pessoas, no contato com a vida. Sem o feedback de tanta gente, perguntando, compartilhando, desafiando, o texto seria infinitamente mais pobre. O trabalho de sentar e reescrevê-lo foi na verdade o simples trabalho de relembrar todos os excelentes argumentos e exemplos e experiências que foram surgindo nos encontros.
Que o texto traga tantas coisas boas a vocês quanto trouxe para mim.
Encontro “As Prisões”
Há doze anos, escrevo sobre aquilo que chamo de “As Prisões“:
São as bolas de ferro mentais e emocionais que arrastamos pela vida. São as ideias pré-concebidas, as tradições mal-explicadas, os costumes sem-sentido.
Comecei a questioná-las uma a uma: verdade // dinheiro // privilégio // sexismo // racismo // monogamia // religião // patriotismo // escolhas // respeito // certezas // os outros // medo // ambição // felicidade // narcissismo.
Nos últimos meses, tenho viajado o Brasil falando sobre As Prisões. Uma conversa experimental, sempre no fim-de-semana, um espaço livre para todos compartilharem suas histórias, para todas as certezas serem chacoalhadas. As próximas são em Curitiba, Belo Horizonte, Belém e Vitória, em maio de 2014.
Para mais detalhes, vídeos, depoimentos de quem foi, roteiro completo da palestra, tudo isso, veja aqui.
Ao longo de 2014, todas As Prisões serão publicadas primeiro no PapodeHomem.
* * *
Aviso sobre linguagem e gênero
O texto acima fez uma valente tentativa de ser unissex e usar uma linguagem de gênero sempre neutra. Todas as explicações e argumentos, sem exceção, se aplicam igualmente a homens e mulheres, pessoas cis e trans*, pessoas hétero, homo e bissexuais. Se alguma frase ou construção pareceu excluir essa ou aquela identidade, sexo, gênero ou orientação, foi descuido meu. Por favor, avisem e vou corrigir. Para mais detalhes sobre como utilizar uma linguagem menos sexista, por favor, confira meu mini-manual pessoal para uso não sexista da língua.
* * *
Todas as ilustrações desse texto são pinturas de Georges Seurat.
Leia as outras prisões aqui.
ALEX CASTRO
alex castro é. por enquanto. em breve, nem isso. // todos os meus textos são rigorosamente ficcionais. // se gostou, mande um email, me siga nofacebook, compre meus livros, faça uma doação ou venha às minhaspalestras. e eu te agradeço.
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