Coincidência, nada mais que coincidência...
Um dia antes da entrega das propostas, o mercado já conhecia quem seriam os vencedores da licitação
por Fabio Serapião
Desde o fim do ano passado os paulistas vivenciam os problemas relacionados à crise no abastecimento de água, principalmente os residentes em municípios da região metropolitana da capital e cidades abastecidas pelo Sistema Cantareira. Enquanto a represa agoniza, a Companhia de Saneamento Básico de São Paulo continua a culpar a “natureza” e a “maior falta de chuva dos últimos 84 anos” pelo inescapável racionamento.
A mesma Sabesp, ao custo de 43,7 milhões de reais mantidos mesmo após corte de 900 milhões no orçamento anual, bombardeia os paulistas diariamente com peças publicitárias veiculadas nas rádios, TVs e internet. “Fenômenos inesperados da natureza acontecem em todos os lugares, nessas horas somente empresas como a Sabesp apresentam soluções sérias e verdadeiras”, afirma uma das propagandas. Em sua edição de número 788, CartaCapital começou a desconstruir esse discurso do governo do tucano Geraldo Alckmin segundo o qual a causa exclusiva da crise de abastecimento é resultado da ação de uma natureza maldosa e, ao que parece, petista.
Com base em contratos da estatal no âmbito do Programa de Redução de Perdas e amparado em relatório da Agência Reguladora de Saneamento de Energia de São Paulo, mostramos como a relação promíscua entre a estatal e empresas ligadas a ex-diretores causou um desperdício de 1,1 bilhão de reais, entre 2008 e 2013, e fez o índice de perdas aumentar, em vez de diminuir. A Sabesp preferiu a seguinte explicação: perder 32% de toda a água captada não interfere na situação do Sistema Cantareira.
Pois bem. Sendo desimportante o quanto de água a empresa desperdiça, no mesmo momento em que cria um sistema de multas para punir quem... desperdiça água, vamos para outro ponto: a criação de novas fontes de captação. Já em 2004, a Sabesp foi informada sobre a necessidade de “projetos que viabilizem a redução de sua dependência” do Cantareira. Dez anos depois do aviso da Agência Nacional de Águas, a Sabesp ainda não concluiu nenhum projeto alternativo para suprir a dependência do Cantareira.
Vamos nos ater ao principal deles: o Sistema Produtor São Lourenço. Resultado de uma Parceria Público-Privada (PPP), o projeto de 2,2 bilhões começou a ser executado em 2013, após atraso de dois anos. O objetivo é a construção de uma represa no Rio Piraí, no município de Ibiúna, para enviar 4,7 mil litros de água por segundo para cidades da Grande São Paulo via tubulação de 83 quilômetros de extensão. Até o momento não se tem notícia sobre eventuais irregularidades nessa PPP. Mas o projeto São Lourenço envolve ainda um contrato de 80 milhões de reais para “prestação de serviços técnicos especializados para realizar a gestão metodológica, a supervisão da execução e as auditorias de garantia da qualidade” do programa. É esse contrato o assunto da reportagem.
No dia 25 de novembro de 2013, um dia antes da data estipulada pela Sabesp para entrega dos envelopes com as propostas das empresas interessadas no certame, o resultado da disputa já era conhecido. Tanto entre as empresas quanto dentro da própria estatal era certa a vitória do consórcio formado pelas empresas Cobrape (Companhia Brasileira de Projetos e Empreendimento) e Vizca Consultoria. Um das participantes da disputa, a Engecorps, tentou inviabilizar o edital. Em representação ao Tribunal de Contas, a empresa afirmou ser o edital um limitador de competitividade e criador de desvantagens indevidas. Nada foi feito e a licitação continuou.
De posse da informação sobre quem seriam os vencedores, um funcionário da estatal entrou em contato com este que vos escreve e pediu para que fosse viabilizada uma forma de provar o fato de a licitação ser, nas palavras dele, com cartas marcadas. Como já passava das 5 da tarde da sexta 25, a saída foi produzir um vídeo com as informações sobre a licitação e postá-lo no YouTube com o nome Os Vencedores. Após o término da licitação, a versão explicitada no vídeo foi confirmada e o consórcio Cobrape/Vizca sagrou-se vencedor do certame.
Falemos das empresas vencedoras. A Cobrape tem como proprietário o engenheiro Alceu Gueirós Bittencourt. Antes do São Lourenço, ganhou cerca de 75 milhões de reais em contratos da estatal no período em que sua esposa, Marisa de Oliveira Guimarães, era assessora da diretoria de Tecnologia, Empreendimentos e Meio Ambiente da Sabesp. Somente dos programas de redução de perdas e uso racional de água, entre 2006 e 2013, a Cobrape embolsou ao menos 36 milhões de reais.
Por sua vez, a Vizca tem vários contratos milionários com diversos órgãos públicos do estado de São Paulo. Entre eles, é parte de um consórcio contratado pela Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM) para gerenciar as obras da linha 8 Diamante. Um de suas parceiras nesse consórcio é a Focco Engenharia. Para quem não conhece, a Focco tem como sócio o ex-diretor da CPTM José Roberto Zaniboni. Investigado no Brasil por envolvimento no cartel do Metrô, Zaniboni já foi condenado na Suíça por receber depósitos de 836 mil dólares, a origem de parte dos valores seria o lobista Arthur Teixeira.
Ao que parece, assim como o governo paulista relaciona a crise de água aos deuses, a Sabesp acredita ser obra de intervenção divina a existência do vídeo sobre o resultado do certame. Segundo a estatal, é absolutamente impossível o conhecimento de vencedores de uma licitação um dia antes da entrega dos envelopes. Ainda no entendimento da estatal, o conhecimento antecipado dos vencedores não tem valor, uma vez que o Tribunal de Contas analisou e determinou como legal o edital. Em um cenário como este, quando as crenças se sobrepõem à realidade, deve ter sido essa mesma divindade a responsável por indicar o conselheiro Robson Marinho para analisar a licitação no Tribunal de Contas.
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