Quartas de final - por Santiago Solari
Meu primeiro dia livre no Rio de Janeiro foi ontem, depois das oitavas de final. Para relaxar um pouco de assistir a tanto futebol, fui jogar futebol. Caminhei com um amigo na direção sul, até o posto 11, no Leblon. Lá, a 30 metros do posto, vivem os reis do futevôlei. E digo vivem porque jogar futevôlei é o que fazem nessa faixa da praia do nascer ao por do sol, e o que continuam fazendo quando se acende a coluna de luzes abaixo da qual instalaram a quadra. Depois de três horas de observação e busca meticulosa, nos atrevemos a desafiar, em uma quadra de um terço do tamanho da oficial, aos que percebemos que era a dupla mais fraca, com muita diferença entre a Gávea e a Garota de Ipanema. Quando já perdíamos por muitos pontos, uma tentativa desesperada de arremate foi parar na terceira pista da Avenida Delfim Moreira. Nunca vi o tráfego parar de maneira mais brusca. O motorista de um ônibus, o primeiro a frear, me fez sinais pacientes para que a recolhesse (enquanto a fila de carros se amontoava até o Pão de Açúcar) como se em vez de uma bola de praia me tivesse escapado um filho.
Há quatro anos, Claudio Bravo, goleiro do Chile, disse que agarrar aJabulani era “como tentar agarrar uma bola de praia”. Uma forma bastante gráfica de descrever os movimentos imprevisíveis da bola oficial da Copa da África do Sul e sua tendência a mudar várias vezes de direção durante o voo. O jogador que se adaptou mais rapidamente àquela bola foi Diego Forlán, que durante o torneio deixou vários goleiros coçando a cabeça e perguntando como uma vida de treinamentos no cálculo de trajetórias não lhes servia para nada. O fabricante assumiu o problema e passou os últimos quatro anos dedicado a resolvê-lo.
A nova bola, Brazuca, tem costuras mais profundas que a Jabulani e é totalmente coberta por pequeníssimas protuberâncias, como se tivesse acabado de passar as unhas por um quadro-negro. Segundo o doutor Rabi Metha, chefe da seção experimental de aerofísica da NASA, a chave está na “camada de ar muito fina que se forma perto da superfície, já que o comportamento dessa camada de ar é crítico no comportamento da bola” e garante que a Brazuca é muito mais estável em voo e os jogadores poderão manejá-la melhor, quase como uma bola tradicional de 32 gomos”.
Tanta melhoria tecnológica não nos foi de muita ajuda no futevôlei doLeblon, mas até agora deu excelentes resultados na Copa. Já não há arqueiros que se queixem e tampouco vimos trajetórias esquisitas, além de uma falta cobrada por Pirlo, fruto exclusivamente de seu talento e não de defeitos de desenho.
Uma bola mais previsível torna o jogo mais previsível, o que sempre é digno de agradecimentos em um esporte em que boa parte do trabalho do treinador consiste em tentar fazer com o jogo o que a Adidas fez com a bola e o cada um tenta fazer com sua vida: reduzir o nível de arbitrariedade. Ou seja, que uma partida tenha mais a ver com o trabalho em torno de um conjunto de ideias do que com o acaso ou o simples acontecer.
É exatamente isso que explica a beleza desta Copa: uma ideia. Não a bola em si, mas a bola como ideia. A Espanha, que voltou para casa na primeira fase, pode se sentir orgulhosa de seguir viva no torneio por meio da influência de sua escola e seus resultados. A razão mais importante para esta Copa estar sendo até agora mais interessante que as anteriores é que, além dos matizes, dos registros, dos sistemas e das distintas estratégias, a maioria das equipes (com exceção do Irã, Honduras e Grécia) tentam vencer seus rivais por meio do domínio da bola e não da renúncia a ela.
Tal regresso do foco à bola, que cada equipe adapta à sua estrutura e às suas possibilidades, nos está proporcionando a Copa mais aberta, dinâmica, intensa e dramática da história. É também, antes de começarem as quartas de final, a Copa com maior média de gols desde a Copa da Espanha, em 1982, e com menor média de cartões desde a Copa do México, em 1986, e está funcionando como um enorme filtro global: quem não estiver gostando já pode procurar outro esporte porque jamais vai gostar de futebol.
Há outra explicação, menos verificável, que me ocorre para que estejamos vivendo uma Copa fantástica. Não teria a ver com as ideias, nem com o coeficiente aerodinâmico da bola, mas com uma espécie de aprendizagem cultural acelerada, como a que nos obriga a olhar à direita antes de atravessar a rua quando caminhamos por Londres ou a pedir o macarrão al dente logo que pisamos em Roma. Talvez esta Copa seja a melhor de todas simplesmente porque os motoristas de ônibus no Rio de Janeiro têm claro que sempre é preferível um engavetamento a pisar em uma bola de futebol.
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