O que deixei de aprender com minha experiência de quase morte
Tudo que eu queria era respirar. Eu estava morrendo rápido, mais rápido do que esperava e não podia fazer nada a respeito. Você sabe como é, as pessoas fantasiam demais a morte. Falam como a vida passa diante dos olhos, como bate o arrependimento das coisas que você nunca fez, etc. Não foi bem assim comigo.
Enquanto eu estava tendo um ataque cardíaco, tudo que me incomodava era minha voz. Eu não conseguia falar. Tentava formar palavras mas o som não saía. Por alguma razão, isso causou mais pânico do que a ideia do meu coração parando. Acho que meu medo de estar sozinho no mundo sem ser capaz de me conectar ou me relacionar com ninguém estava vindo à tona. Irônico, justo na hora da minha morte.
A dor começou quando eu estava indo para a faculdade, numa manhã fria de julho. Na condução, à caminho do bairro universitário, a dor começou a crescer, de modo que quando cheguei lá, já senti que era grave o suficiente para precisar de um hospital. Lá estava eu, cercado de estranhos, sem poder falar a ninguém o que estava sentindo.
Desci e peguei uma condução no sentido de volta, já que meu hospital estaria no caminho. Uma viagem de 40 min. Menos de uma hora me separando da emergência e de saber de onde vinha essa dor e o porquê de eu não conseguir respirar direito.
O problema é que a dor só crescia. Nessas horas, você percebe o quanto é sortudo de nunca ter tido nada daquilo antes. A ideia de que sua vida depende da respiração e dos batimentos cardíacos começa a pesar no seu peito. Automaticamente, você fica mais autoconsciente e começa a acompanhar cada subida e descida do tórax, como se estivesse tentando garantir que, caso aquilo tudo falhasse, você iria assumir o controle do navio e contrair o peito à força. Numa tentativa fútil de contornar a morte.
A morte.
Engraçado, uma vez que a dor aumentou e eu notei que não conseguia falar, percebi que iria morrer. O pensamento de estar longe da minha família, cercado por estranhos em uma condução qualquer, me incomodou mais do que todas aquelas ilhas paradisíacas maravilhosas que não conheci.
“Huum… dor crescente no peito? Isso é coração. Ataque cardíaco, com certeza. Aquele cara do Casseta e Planeta não morreu meio de repente, algumas horas depois de sentir dor no coração e ignorar? Eu não posso ignorar. AVC… se fosse AVC, meu peito estaria doendo? É no AVC ou no ataque cardíaco que o lado esquerdo do corpo fica dormente? Meu braço não está dormente, mas meu peito dói muito”.
De todo jeito, notei que era grave e precisava de ajuda. O medo de me fazer de bobo, aquele medo de situações embaraçosas que está enraizado em nosso cérebro de macaco, me fez hesitar para pedir ajuda. E se eu estivesse bem, mas só estivesse fazendo alarde desnecessário? O que as pessoas pensariam de mim?
Calei esse medo e agi, ação pequena que pode ter salvado minha vida. Se tivesse sido hoje, eu teria reconhecido a origem daquela sensação e teria ignorado sem muito esforço, mas na época? Tudo que eu queria era respirar. E falar. E não morrer longe da minha família.
Peguei meu caderno, abri na última folha e escrevi algo assim:
“Eu não consigo respirar direito e nem falar. Meu peito está doendo, acho que estou tendo um ataque cardíaco. Me leva no Hospital?”
Mostrei à moça que estava do meu lado. O hospital ficava no caminho da condução em que estávamos. Bastava descer em um ponto (que deveria estar a uns 15 minutos de distância), andar 150 metros e eu estaria na emergência. Mas lembro da voz da mulher, assustada, murmurando algo sobre como ela não podia, pois tinha trabalho e iria se atrasar.
Na hora, meu cérebro nem processou isso. Chegar atrasada? Eu estou morrendo aqui e você se preocupa em chegar atrasada?
Hoje, não a culpo. Não é como se ela tivesse explicitamente comparado o valor de um atraso no trabalho com minha vida e decidiu que ser pontual seria mais importante, colocando o valor na minha vida abaixo da diária trabalhista dela. Não foi isso que aconteceu. Ela reagiu assustada ao fato de ter alguém morrendo ao lado dela e se agarrou à primeira desculpa que passou pela cabeça.
Nossa mente funciona de modo engraçado, às vezes. Em um desastre de avião famoso, as pessoas poderiam ter saído e salvo suas vidas quando ele caiu sem explodir. Alguns poucos correram para os buracos na fuselagem e pularam fora. Dezenas estavam bem o suficiente para correr mas ficaram no avião, morrendo a seguir com a explosão. O viés da normalidade causa isso na gente em situações de pânico.
Por isso eu não culpo aquela mulher que não ajudou a salvar minha vida. Prefiro acreditar que seres humanos são bons e ajudariam sempre que possível, contanto que nossos instintos animais não interfiram com o raciocínio.
No meu caso, as pessoas ajudaram, claro. Sempre tem aquela alma caridosa que renova sua fé na humanidade. A mulher-que-se-atrasaria-para-o-trabalho falou em voz alta que eu estava passando mal e perguntou se tinha alguém que poderia ajudar. Havia uma enfermeira no ônibus, que se aproximou da minha cadeira. Alguém gritou para motorista ligar o expresso e não parar mais para chegar mais rápido no hospital.
Depois disso, minha memória falha.
Não lembro ao certo como ela me ajudou a descer do ônibus até chegar na emergência, se eu mal podia respirar. Mas eu cheguei. Lembro dos médicos me colocando numa maca, fazendo eletrocardiograma em mim, depois de verificar que eu não estava morrendo. As memórias voltam a se embaralhar.
Daqueles dias, recordo que a senhora, a enfermeira, ligou para minha família para checar meu estado de saúde. Ou foi minha família que ligou para ela, para deixá-la atualizada, não tenho certeza. Ela foi supergentil e lembro de ter ficado feliz não apenas por ela ter me ajudado, mas por ela ter se interessado em saber como eu estava depois daquilo tudo.
Como se eu estar vivo importasse de verdade para alguém lá fora, que nem me conhecia.
Mas, mesmo com todo o desespero e tumulto interno, no final das contas, eu não estava morrendo.
Os médicos checaram tudo e não havia nada errado com meu coração. Estranho. Alguns meses à frente, um terapeuta disse que deve ter sido ataque de pânico com algo de fundo psicológico, uma pane chamada síncope. Nietzsche tinha dessas, ao que parece, mas saber disso não ajudou a me sentir melhor.
Acontece que eu achei que estava morrendo. Eu realmente acreditei que minha vida estava acabando ali, naquele momento. Por meses, pensei ter sido uma experiência de quase morte. Bem, não importa que não tenha sido, o que interessa é que eu pensava que estava acontecendo.
Apesar do choque, não ganhei nada com a história. Não tirei nada que as pessoas costumam tirar quando acham que vêem a morte de perto.
Muitas delas falam como a experiência colocou suas vidas em perspectiva. Como pararam de se importar com problemas pequenos, deram mais valor às relações e deixaram as coisas materiais de lado. Eu não “aprendi” nada disso.
Quer dizer, para ser sincero, sim, por alguns dias, talvez algumas semanas. Depois disso, voltei a dar importância aos meus problemas, destratar ocasionalmente a quem eu amo e ignorar a constante iminência da morte. Hoje, quatro anos depois, não guardo muito da experiência além de uma vaga lembrança.
Se fosse para dizer que aprendi algo, diria que aprendi não ser fácil lidar com a sensação de iminência da morte. Que não é tão simples chegar perto dela e escapar por um triz. Que se realmente queremos viver a vida bem, devemos encontrar um jeito de nos lembrarmos que nem sempre estaremos aqui e que devemos viver nossas vidas de acordo.
Mas você se pergunta: “Quem é esse cara para dizer essas coisas? Ele nem chegou perto de morrer mesmo”. E você estaria certo, estaria mais do que certo.
PAULO RIBEIRO
Ajuda as pessoas a aprender melhor através do Aprendizado Acelerado e escreve no Estrategistas sobre a criação de uma vida mais feliz e significativa. Coordena o site Gary Vaynerchuk BR e responde no twitter por @paulorrj.