Papo de homem

“Sempre que vejo alguém falando em “caráter”, meu senso-aranha dispara. É uma palavra bem bonita e forte, tipo um porrete. Boa de se usar em discussões morais, mas me parece bem desconhecida — em profundidade — para a maioria de nós.

O que seria ter caráter, em sua visão? Quando se tem caráter é possível perdê-lo? Há situações em que temos caráter e outras em que não? Isso nos torna possuídores de meio caráter ou de nenhum caráter?

É possível recuperar o caráter perdido?”

Como a maioria dos conceitos mais importantes, precisamos diferenciar um pouco o sentido técnico do sentido da fala ordinária — e onde eles confluem.

Na fala cotidiana, “ter caráter” é não ser sacana, duas caras. Enfim, ser ético. Mais do que isso, o ser de forma relativamente consistente, ao longo do tempo e de uma forma relativamente previsível. É quase idêntico a “digno de confiança”.

No sentido técnico, há três formas de pensar a ética. As duas que não se focam tanto em caráter são a consequencialista, embasada em pensar as consequências das ações, e a deontológica, embasada em deveres e seguir regras.

Escola de Atenas, afresco do pintor Rafael. Ao centro, Aristóteles segurando "Ética a Nicômaco", sua principal obra sobre Ética.
Escola de Atenas, afresco do pintor Rafael. Ao centro, Aristóteles segurando “Ética a Nicômaco”, sua principal obra sobre Ética.
A forma clássica, grega e de boa parte da filosofia romana também, é a “ética de virtudes”, e é dela que o conceito de caráter vem. Nessa ética, focamos a formação do indivíduo e o indivíduo como uma totalidade, e daí a fonte da ação virtuosa seja fazer presença significativa em uma comunidade, e óbvio, encontrar sentido para si próprio.

É se comportar de forma a se conseguir viver com as próprias ações, tanto no sentido de olhar para si próprio quanto no de encontrar respaldo e “controle de qualidade” das ações em meio a uma comunidade.

Tradicionalmente as grandes escolas de pensamento ético (antiga, Kant, utilitarismo etc.) seguem principalmente uma destas três veias e lidam com seus próprios problemas com relação a pensar as ações humanas. São três formas de pensar valores:

em termos do indivíduo, da pessoa que carrega a ação;
em termos da própria ação e prescrições;
em termos, principalmente, das consequências da ação.
Talvez não seja necessário distinguir dessa forma, mas na filosofia não surgiu ainda um sistema ético coeso e amplamente aceito que unifique estas três perspectivas.

Portanto, ter caráter é, em certo sentido, agir de forma íntegra. Parece outra palavra-chavão? Pois o que se quer dizer por “integral”?

Exatamente que leva em conta uma totalidade, a saber, a totalidade de uma história pessoal, de todos os âmbitos da vida (carreira, relacionamentos etc), de uma inclusão em um contexto social. As ações da pessoa surgem de um agente que se formulou integralmente no mundo, que tem uma certa perspectiva ou eixo, um horizonte.

O que seria o oposto disso? Por quaisquer motivos: confusão, falta de reflexão, contingências etc, agir como um “coadjuvante” da própria vida, um personagem mal formado, vamos dizer assim (e não é surpresa que, em inglês, character seja uma palavra que indica um personagem de peça ou filme, o caráter moral, e algo como “ele é uma figura”, “he is a character” — tem um caráter inusitado).

É agir em escopos restritos, arbitrária ou aleatoriamente, porque só se consegue se pensar a si próprio dentro desses âmbitos limitados.

Então se fala em uma pessoa não ser autêntica, ser dúplice, duas caras: isso pode querer dizer que ela é simplesmente mentirosa, falsa, enganosa. Mas também pode querer dizer que ela não se porta de forma coerente com aquilo que ela mesma expõe, o que algumas vezes se vê acontecer em um só parágrafo escrito — e não que o parágrafo se contradiga em sentido implícito e explícito, o que é bem mais comum, ou apenas adulando e atacando ao mesmo tempo, o que é gosmento.

Mais que isso, algumas vezes se vê a pessoa seguindo simultaneamente duas estratégias contraditórias entre si, o que indica claramente que ela só “quer te pegar” de algum jeito, e não está argumentando com o fim comum de entender e resolver questões. E algumas vezes, se você expõe isso, surge a “sem-vergonhice”, isto é, a pessoa reconhece a falta que cometeu, mais que isso reconhece que é uma falta e que cometeu, mas diz “e daí”.

Então essas palavras “integridade”, “coerência”, “consistência”, “vergonha”, “face” (que é um conceito asiático apropriado pela sociologia) fazem parte do conceito de caráter. Em um sentido oposto, caráter e o conjunto de virtudes que a pessoa exerce consistentemente no mundo: coragem, perseverança, paciência etc.

Quando estamos falando do mundo atual, é correto trabalhar com a expectativa de que as pessoas não tenham caráter. Isto é, o conceito de caráter funciona quando conhecemos a pessoa. Entre desconhecidos, podemos usar outros critérios éticos, e pelo menos devemos criar mecanismos de accountability para que as ações tenham responsáveis.

Assim, em um mundo em que você conhece o político como uma celebridade distante, de história cuidadosamente fabricada pela indústria de relações públicas, não faz nem sentido exigir caráter de um político.

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Odorico Paraguaçu
Na verdade, é uma armadilha absurda de nossa era, porque as pessoas ainda esperam caráter de pessoas públicas, em uma sociedade que contém milhões de pessoas — e nos são vendidos ideais de caráter. Nesse caso, efetivamente, o melhor seria não esperar o caráter, mas criar mecanismos, isto é, transparência radical, que permitam uma avaliação independente de uma imagem carismática criada pela publicidade. Esperar caráter, trabalhar com caráter nesse âmbito, só nos faz perder tempo.

Já nos micro-âmbitos, na família, no trabalho, assim por diante, o caráter continua valendo, e segue sendo o mais importante.

O caráter é construído, é uma mistura de hábitos próprios com a percepção dos outros, e fruto de uma vida examinada. Então a pessoa pode cometer grandes erros e não perder o caráter. Mas, por outro lado, uma vez que ele tenha sido manchado, recuperar é muito difícil.

Também não é fácil desenvolver o caráter, porque no início de nossa vida não temos tanto controle, e algumas vezes nenhum, sobre nossas circunstâncias e os exemplos e a educação que recebemos, e elas são elementos cruciais. Se a pessoa se descobre no meio da vida sem ter vivido uma vida examinada até então, é muito difícil começar do nada, quebrar hábitos velhos e desenvolver virtude.

Não é impossível, e todo mundo adora uma história de superação em meio a adversidade, mas provavelmente não é tão comum.

Por isso o caráter é uma forma tradicional de pensar a ética, e tradicional aqui com tudo de positivo e negativo que essa palavra acarreta. É mais lento que a nossa época permite, mas, por outro lado, permanece com seu valor exatamente por isso.

Então o caráter é a construção do agente ético através da vida examinada, ele pode ser obtido e perdido, mas é uma tarefa a tão longo prazo e envolve tantos hábitos arraigados que isso é incomum. Ele é integral, isto é, envolve todas as ações e todos os domínios da vida. Ainda assim, ele pode ser ferido ou incrementado.

O caráter não é tão importante do ponto de vista do julgamento ético dos outros, o que, de fato, é o menos relevante. Ele é importante no próprio cultivo ético.

Um exemplo clássico que contrasta as três visões da ética é o do amor por um filho.

Father and Son on Subway, 1958

Amamos um filho por dever, como era a prerrogativa de Kant? Ou o amamos com vista a fins, porque isso é melhor para todos, e assim por diante, como um utilitarista pensaria?

Não. O argumento essencial da ética de virtudes/caráter é que só amamos um filho porque isso faz parte de nossa constituição. E claro, podemos discordar que amar um filho seja uma ação, então pensemos todas as ações individuais ligadas ao amor filial.

Quando ele está com febre, o levamos no médico porque temos uma obrigação moral, um dever? Ou o levamos no médico porque queremos que ele melhore?

Claro que essas duas coisas também, mas o levamos ao médico essencialmente porque somos essa pessoa que se importa com ele.

Eduardo Pinheiro
EDUARDO PINHEIRO
Diletante extraordinário, ganha a vida como tradutor e professor de inglês. É, quando possível, músico, programador e praticante budista. Amante do debate, se interessa especialmente por linguística, filosofia da mente, teoria do humor, economia da atenção, linguagem indireta, ficção científica e cripto-anarquia. Parte de sua produção pode ser encontrada em tzal.org.