A face tenebrosa do pig

Muita  conversa  é  jogada  fora sobre  a  suposta  diferença  entre  a  imprensa marrom  e  a  mais  respeitável.  A  diferença  é precisamente  a  mesma entre um contrabandista  e  o superintendente  de  uma escola dominical, ou seja, nenhuma.
Honestamente  acho  até,  baseado  em  vinte anos  de  intima  observação  e  incessante reflexão,  que  a  vantagem,  se  existe,  está  do lado  dos  jornais marrons.
Tirando  um  dia pelo outro, são provavelmente menos malignamente mentirosos. As coisas sobre as quais  mentem  não  costumam  ter  a  menor importância: pequenos pedidos de subornos, fofocas divórcio,sociais,intimidades  das  vedetes.
Nesse  campo,  até prefiro  ler  mentiras  do  que  verdades:  pelo menos  são  mais  divertidas.
Mas  no  domínio da  política,  do  governo  e  das  altas  finanças,os marrons  chegam  às  vezes  mais  perto  da verdade do que os jornais mais austeros, 90%dos  quais  são  de  propriedade  de  homens envolvidos em alguma espécie de exploração dos trouxas.

Não estou dizendo que os jornais marrons façam qualquer esforço real para ser exatos;  ao  contrário,  até  se  esforçam  para evitar uma exatidão muito literal.
São obrigados  a  dramatizar  e  ficcionalizar  esta verdade para torná-la digerível.  Ela deve ser mostrada de maneira improvável para convencer aquelas pessoas.  Mas isto, na pior das  hipóteses,  é  apenas  um  exagero  de camelô.
A  maneira  de  mentir  dos jornais  mais  respeitáveis  é  menos  inocente.
Seu  objetivo  não  se  limita  a  vender  edições extras  para  a  gente  simples;  e  sim  o  de perpetuar uma fraude deliberada, para melhor proveito  dos  cavalheiros  que  ficam  por  trás do pano.
Os  proprietários  dos  jornais marrons  são,de fato, os únicos jornalistas verdadeiros que restam  no  país.  Geralmente,  são  sujeitos cínicos,  com  uma  aguda  compreensão  das limitações  intelectuais  do  proletariado,  mas muitos  deles  não  têm  nenhum  motivo  ulterior para  alarmá-lo  ou  tapeá-lo  —  todo  o  seu lucro vem dos disparates que despejam sobre ele.
O  problema  dos  jornais  do  primeiro escalão  é  que  quase  todos  estão  hoje  nas mãos de homens que veem o jornalismo como uma espécie de linha auxiliar para empreitadas  maiores  e  mais  lucrativas. A  exata natureza  destas  empreitadas  maiores  e  mais lucrativas nem sempre é muito óbvia.
É fácil,naturalmente,  somar  dois  e  dois  quando  um rico  empreiteiro,  latifundiário  ou  banqueiro compra um jornal, ou quando outro é comprado  por  alguém  notoriamente  de  olho numa  carreira  política.
Mas,  de  vez  em quando,  o  comprador  é  um  sujeito  cujo negócio  é  mais  ou  menos  respeitável  e  que não  demonstra  uma  esganação  pelo  Senado.
Então,  por  que?  Por  que  arriscaria  tanto dinheiro em tal jogo? A resposta costuma ser encontrada, acredito, em seu descarado Wille zur  Macht  —  sua  aspiração,  perfeitamente humana,  de  tornar-se  importante  e  poderoso em  sua  comunidade,  ser  cortejado  pelos figurões locais, ditar as leis, fazer e desfazer funcionários  públicos,  atar  e  desatar  cordões políticos.
Outras  vezes,  sua  ambição  (ou talvez,  mais  exatamente,  de  sua  mulher)  é meramente  social.  Quer  jantar  em  certas casas,  ser  convidado  para  festas  e,  acima  de tudo,  receber  certos  convidados  em  sua reluzente  mansão  em  Gold  Hill.
Bem,  um homem que controla um jornal importante não tem a menor dificuldade para conseguir estas ninharias.  As  chaves  do  escândalo  estão  em seus bolsos. Ele é poderoso. Pode premiar ou punir, direta ou indiretamente. As esperanças de  todos  os  outros  homens  em  sua  jurisdição estão  em  seu  poder.  Se  for  capaz  de  se lembrar  de  que  a  lavanda  à  sua  frente  não  é para  ser  bebida,  entrará  para  a  sociedade  a hora que quiser.
Sejam quais forem o motivo ou os motivos subjacentes, o fato é que os jornais estão  passando  rapidamente  das mãos dos jornalistas profissionais para as de outras pessoas que são primariamente qualquer  outra  coisa.
O que quero deixar claro é que tais jornais são completa e deliberadamente desonestos, e que eles divertem  ou  atormentam  o  seu  público  sem  a menor  consideração  pela  mais  comezinha decência. 
E  quero  também  deixar  claro  que eles estão tirando do mercado todas as outras espécies  de  jornais.




Tal  jornal,  com  tanto poder nas mãos, não se importa com o direito dos  indivíduos. Quem  cair,  vítima  de  sua mendacidade, dificilmente poderá se recuperar.  Sua  própria  versão  do  caso  será distorcida ou ignorada.
Seus defensores ficarão  amedrontados.  E  se,  desistindo  do fair  play,  apelar  aos  tribunais,  irá  descobrir rapidinho  que,  em  quase  todas  as  grandes cidades, a lei tem um medo santo dos  jornais  —  e  que  o  homem  que  ganhou uma  causa  e saiu  com  o  dinheiro  é  tão  raro quanto  o  homem  que  mordeu  o  leão  e  viveu para contar a história.
Estou ciente de que serei acusado,digamos,  de  jogar  lama  sobre  minha  velha profissão e, em particular, sobre profissionais batalhadores.  Mas  fatos  são  fatos.  Esta profissão sofreu uma desagradável metamorfose  nas  últimas  décadas.
Houve  um tempo  em  que  o  verdadeiro  chefe  de  quase todos os jornais importantes era um jornalista praticante, que tinha orgulho de seu trabalho e uma  honrosa  reputação  no  ramo,  pelo  menos no  local.
Para  o  repórter  mais  jovem,  este sujeito  era  um  ídolo.  Suas  teorias  sobre jornalismo eram ouvidas e citadas, seu estilo era  imitado  e  todo foca  na  equipe  queria seguir suas pegadas.
Hoje, o verdadeiro chefe de  um  jornal  tende  cada  vez  mais  a  se  tornar uma  figura  sombria  nos  bastidores,  ignorante das  tradições  do  jornal  e  do  seu  modo  de pensar, e grosseiramente empenhado em empreitadas  que  colidem  frontalmente  com  o que resta dos ideais deste jornal.
Este homem está  além  do  círculo  jornalístico;  nenhum jovem repórter sonha em seguir-lhe os passos algum  dia;  qualquer  ambição  de  ficar  como ele significaria abandonar de vez a profissão.
A  primeira  consequência  é  a  de  que  a profissão em si deixa de ser charmosa; já não é  mais  uma  cooperação  romântica  entre pessoas  livres  e  iguais,  mas  uma  forma  de trabalho  parecida  com  a  de  uma  oficina  de laminação.
A  segunda consequência  é  a  de  que  os  homens  que,  no passado,  entraram  para  a  profissão  com  um alto  senso  de  dignidade  resolveram  seguir outros  rumos,  enquanto  o  típico  recruta  de hoje  é  um  jovem  andrajoso  e  de  oitava categoria,  sem  mais  capacidade  para  o  auto- respeito  profissional  do  que  um  coletor  de lixo.
Suspeito  que  o  falecido  Joseph  Pulitzer  já previa esta tendência ao criar a sua Faculdade  de  Jornalismo.
Hoje  há  muitas faculdades como esta, mas duvido que sirvam para  alguma  coisa.  Por  um  lado,  parecem estar  todas  caindo  nas  mãos  de  pedagogos profissionais  —  uma  classe  obrigada  a chafurdar no lodo por uma tirania plutocrática pior ainda do que a que oprime os jornalistas.
Por  outro  lado,  o  máximo  que  uma  faculdade de  jornalismo  pode  conseguir  —  mesmo supondo  que  ela  injete  em  seus  alunos  um civilizado  código  de  ética  —  é  gerar  jovens repórteres que fugirão do jornalismo tapando o  nariz,  assim  que  se  familiarizarem  com  o que se passa dentro de uma típica redação de jornal.
Aqueles que perseverarem na profissão  devem  ser  uns  rapazes  estúpidos que  não  notam  o  mau  cheiro  ou  sujeitos  sem espinha  que  se  habituaram  a  respirá-lo,  e alguns bem ordinários, que gostam do fedor.
O texto acima foi escrito em 1920 - continua atualíssimo - por H. L. Mencken