Angel, reconhecer o erro é sinal de grandeza

Hildegard Angel retira "pisada na bola" praiana. Menos mal, mas segregação ao sol não vem de ontem, não...

por Fernando Brito - Tijolaço

A colunista social Hildegard Angel andou, com toda razão, levando uma chuva de críticas por ter sugerido mudar o itinerário dos ônibus e, se necessário, até cobrar ingresso nas praias do Rio para evitar que“hordas e hordas de jovens assaltantes e arruaceiros” invadam a orla.
Menos mal que “cansada de levar pedrada”, ela retirou o texto de seu blog.
Melhor faria se tivesse se retratado do que ela própria chamou, ao escrever, de medidas  ” antipáticas e discriminatórias”.
Mas é assim mesmo, todo mundo está sujeito a dizer besteiras num momento de irritação.
O problema, e não é só dela, é que algumas pessoas se acham com mais direito que os demais a algo que não pertence a ninguém: a praia.
E que, se pertencesse, nestes dias de calor de Saara no Rio de Janeiro, justificaria uma revolução.
Esta é uma história que vem de longe e que vivi de perto.
Até 1984, só uma linha de ônibus passava pelo Túnel Rebouças. uma obra caríssima projetada e iniciada por Carlos Lacerda e terminada por Negrão de Lima, em 1967.
Era o raríssimo 473, Penha-Jardim de Alá(embora seu ponto final fosse no final do Leblon).
Havia outros ônibus ligando a Zona Norte à Zona Sul, mas pelo Flamengo e alguns pelo Túnel Santa Bárbara, entre eles o 456, ou quatro-cinco- méier, porque era do subúrbio do Méier que ele partia e era assim que eu e outros adolescentes o chamávamos, inclusive alguns que se aventuravam a carregar dentro dele uma prancha de surfe, com a qual andavam até perto do Pier de Ipanema.
Pois o Brizola, inconformado que o túnel, construído com o dinheiro de todos, só servisse, quase, aos que tinham carro (e carro era quatro ou cinco vezes mais raro que hoje, naquele tempo), mandou a Companhia de Transportes Coletivos do Estado criar três linhas: a 460, 461 e 462, saindo da estação de trem de São Cristóvão e chegando a Ipanema, Copacabana e Leblon.
Um trajeto, se tanto,  de meia hora, metade do que levava por outras vias.
Foi o que bastou para, insuflada pelo Jornal do Brasil – O Globo ainda era um jornal algo chulé – começasse uma campanha de ataques ao povão que chegava, calorento, esbaforido e alegra à praia.
Joaquim Ferreira dos Santos traduziu este sentimento em uma antológica crônica, no mesmo jornal – que maravilha era o velho “Caderno B” – da qual mostro as primeiras linhas e o espírito,recomendando que seja lida aqui:
“Ipanema, essa senhora cada vez mais gorda e poluída, reclama de novas estrias e dentes cariados em seu corpanzil: agora é culpa dos ônibus Padron, a linha 461 que, há um mês, está trazendo suburbanos para seu “paraíso”, numa viagem de apenas 20 minutos, via Rebouças. É o que dizem seus moradores, inconformados. Ouçam só:
- Que gente feia, hein?! (Ronald Mocdes, artista plástico, morador da Garcia D`Ávila, bem em frente ao ponto do ônibus).
- No outro dia eu saí da loja com um vestido comprido, alinhado, e você precisava ver o que aconteceu. Me chamavam de urubu, um horror. (Débora Palmério Fraga, gerente da Gregorio Faganello).
- É chocante dizer, mas eles estão desacostumados com os costumes do bairro. Nem vou mais à praia aqui. É farofeiro para tudo quanto é lado, olhando a gente de um modo estranho. Ficam passando aquele bronzeador. A sensação é de que eles estão invadindo o nosso espaço. (Maria Luiza Nunes dos Santos, ex-freqüentadora da praia da Garcia D`Ávila e que agora só vai ao Pepino).”
Não foi o pior do JB, legítimo porta-voz da Zona Sul carioca e sua biodiversidade.
Meses depois, o jornal se superaria, com um editorial em que dizia estar Brizola asfaltando os acessos dos morros do Pavão-Pavãozinho, em Copacabana, para que os assaltantes tivessem mais facilidade em subir de volta à favela depois de, digamos, fazerem seus “ganhos”.
É curioso que o túnel da discórdia, que proibia e depois proporcionou, para horror da elite, o acesso dos pobres e pretos “feios” à praia chama-se Rebouças, em homenagem aos irmãos André e Antônio Rebouças, negros baianos que se tornaram engenheiros pelo único caminho que permitia ascensão dos pobres durante o século XIX e boa parte do XX, o Exército Brasileiro.
Um dia, talvez, as pessoas da elite brasileira entendam que a única maneira de “acabar com os pobres” não é lhes por grades, mas fazerem ascender, educarem-se e serem diferentes do que eram seus próprios bisavós ou trisavós: brutos, grosseiros, toscos e brancos.
E que alguém criado nesta sociedade não fique chocado, como eu fiquei, com a feiúra e a miséria das crianças de uma favela (que eles chamam “vila”) gaúcha em que passei, de jipe, nos arredores de Uruguaiana, com Brizola em 1989, perseguido por uma “horda” andrajosa de guris que chapinhavam na lama.
Todos eles louros e de cabelinhos claros, uma cena incompreensível para um carioca que achava que a pobreza era negra ou mulata.
Viva a diversidade humana! Viva a tolerância!



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