Paulo Moreira Leite

urubus13Oposição e partidos abutres
O último grito da moda política consiste em cobrar coerência dos partidos de oposição. Em sua coluna de hoje, na Folha, Vinícius Torre Freire escreve sobre a mudança nas regras da aposentadoria:
“A MUDANÇA das regras da aposentadoria foi, claro, uma derrota do governo.” Referindo-se ao comportamento da oposição, que votou pela fórmula 95-85, que cria regras mais favoráveis aos trabalhadores, ele acrescenta: “Mais importante, foi uma vitória do populismo, da ignorância, da pequenez e, francamente, do espírito de porco político.”
O colunista diz ainda:
“O PSDB no Congresso faz apenas chacrinha, avacalha de modo oportunista e aproveitou para dar mais um tiro no avariado governo Dilma 2.
Ontem, foi a vez de Carlos Alberto Sardenberg escrever no Globo:




“Viram a última propaganda do Democratas? Só faltou chamar o MST para invadir a fazenda da ministra Katia Abreu. O PSDB ainda tem um certo pudor em atacar Joaquim Levy — que estava ao lado até pouco tempo — mas vota contra e atrapalha o programa do ministro, que é claramente tipo tucano.”

Nossos observadores ficariam um pouco mais chocados, ontem, se tivessem assistido aos debates sobre as emendas à Medida Provisória 664.
“Caiu a máscara do PT,” berrava, na tribuna, um orador da oposição. No texto da proposta original, o governo admitia que as perícias médicas para fins de aposentadoria fossem terceirizadas e, conforme emenda apresentada pelos adversários do governo, essa tarefa deveria ser única e exclusivamente realizada por médicos do Estado. Esquecendo por um minuto o conteúdo dessa discussão, o importante é a denúncia: dizer que a máscara do PT está caindo. Não é necessário pensar muito para compreender por que é crucial tentar convencer os brasileiros de que o Partido dos Trabalhadores — apesar da crise de hoje, não custa lembrar que foi o único capaz de vencer quatro eleições presidenciais consecutivas — não passou de uma “máscara”, certo?
Ontem, tucanos de primeiro escalão justificavam o apoio ao 95-85, criado justamente para alterar o fator previdenciário nascido no governo Fernando Henrique Cardoso, baseados num lugar-comum típico dessas horas — a diferença entre momentos econômicos. O argumento é que era incomum: se FHC teve razão em apertar os cintos dos aposentados numa hora difícil, por que a oposição, que vive fazendo a denúncia de que Dilma criou um caos na economia, não apoiou o governo nessa hora?
Na semana anterior, o líder tucano Marcos Pestana (PSDB-MG), um dos mais ativos da oposição, personagem importante no círculo de Aécio Neves, foi à tribuna acusar o governo Dilma de jogar a crise “nas costas dos trabalhadores” quando deveria mandar a conta para o “capital especulativo”. Isso mesmo, meus amigos.
Embora as medidas do ajuste tenham saído de um laboratório econômico conservador, e sem dúvida nenhuma estariam sendo aplicadas com rigor ainda maior caso Aécio Neves tivesse sido vitorioso em 2014 — eram as célebres “medidas impopulares” que não foi possível esconder na campanha — a acusação do líder tucano não reflete “populismo, pequenez,” como diria um de nossos colunistas.

Partindo de onde vem, referências desse tipo só têm valor se o ponto de partida é uma autocrítica histórica. Os gastos sociais do período Lula-Dilma cresceram 50% em relação à gestão Fernando Henrique Cardoso, passando de R$ 11,2 bilhões anuais para R$ 16,8 bi. A taxa média de juros, que ficou em 33% no primeiro mandato de FHC, manteve-se em 9,8% nos primeiros quatro anos de Dilma e, apesar de altas recentes, está longe, muito longe mesmo, da média tucana.
O conflito permanente entre teoria e prática constitui um elemento consistente da cultura e da política conservadora, neste Brasil das ideias fora do lugar, como observou o professor Roberto Schwartz num ensaio famoso, onde registrava o drama de liberais brasileiros que eram europeus e modernos até a medula — mas capazes de conviver alegremente com a escravidão brasileira até o fim do século XIX.
Este comportamento envolve um drama de origem da oposição, que enfrenta uma dificuldade essencial para oferecer propostas políticas dirigidas a melhorar o bem-estar da maioria da população.
Seu único programa real consiste em desmanchar direitos e desfazer benefícios conquistados ao longo dos anos. Num país desigual como o Brasil, onde sobrevivem carências gigantescas, apesar do progresso relativo em anos recentes, a ideologia do mercado capitalista é uma utopia muito mais difícil do que em outros lugares — como se comprovou toda vez que se tentou, por exemplo, questionar o Bolsa-Família, a lei do Salário Mínimo, e, especialmente, a Consolidação das Leis do Trabalho, experiência amarga enfrentada nos dias de hoje pelos profetas da terceirização ampla, geral e irrestrita.
Embora copie, cada vez mais, o discurso do Partido Republicano norte-americano, a oposição brasileira não possui um Abraham Lincoln em sua árvore genealógica e jamais poderá reivindicar uma luta comparável a qualquer coisa que lembre a abolição da escravatura.
Com frágeis compromissos com a democracia, guarda um armário recheado de esqueletos golpistas, que de vez em quando aparecem sob a luz do dia. Quando fala em reforma política, pretende questionar a soberania popular, aprofundar a força do poder econômico, e não ampliar as prerrogativas do cidadão comum. Se promete combater a impunidade e a corrupção, o compromisso é perseguir adversários, sempre seletivamente, poupando e reforçando amigos e aliados. A liberdade de expressão é para fazer aquilo que nós podemos ler todos os dias nos jornais e assistir na TV.
(Imagine, só para exercitar os neurônios, em qual cemitério estaria enterrado qualquer partido político brasileiro — e qualquer outro partido do mundo — se tivesse sido submetido, durante um ano, ao massacre midiático que o Partido dos Trabalhadores enfrenta desde a década inaugurada pelas denúncias da AP 470.)

E é assim que chegamos à situação brasileira atual. Não é para fazer escândalo.
Num fenômeno que tem causas internas reais mas nem de longe pode ser desligado de uma ofensiva permanente que tem como meta a destruição do Partido dos Trabalhadores vivemos o momento dos partidos-abutre, dos políticos-abutre. São uma versão política de criaturas muito comuns no mercado financeiro, onde adquirem papéis de empresas à beira da morte, pagando um nada por ações que podem se transformar num tesouro. A Argentina é ameaçada hoje por um fundo assim. As Organizações Globo se encontravam na mesma situação na década passada. Seu universo é especulação, seu alimento é carniça, seu hálito é de morte.

Deu para entender a discussão, certo?
247 Brasil