Há 61 anos, numa manhã como esta em que escrevo, o país estava boquiaberto com a notícia de que Getúlio Vargas tinha dado um tiro no próprio peito e acabara de morrer, em seu quarto no palácio do Catete.
Mais tempo, portanto, do que eu e a quase totalidade dos que me leem tenhamos visto o impacto, a dor e as consequências daquele gesto.
Será?
O impacto, sim, porque não é o mesmo ver as velhas fotos da multidão em desespero, entre o choro e a revolta, espraiando sua fúria como uma onda nas grandes cidades.
Quanto à dor, ainda pude vê-la – já seca, então – nos olhos dos homens mais velhos, sobretudo lá, no bairro operário de Realengo,no IAPI onde viviam meus avós.
Mas as consequências, mesmo sem saber por muito tempo- ah, a arrogância própria da juventude! – as vivi todas.
Mas, há uns trinta anos, numa conversa de amigos, um deles, Sérgio, um médico, disse algo que me deixou em silêncio pensativo: “somos netos da escola pública”.
Sérgio, ele próprio filho de um trabalhador têxtil, tinha razão, mas não toda.
Éramos, ali, filhos e netos de um país onde o povo passou a existir, como sujeito e não mais como mero objeto, de sua trajetória.
Getúlio tinha gestado este sentimento de Nação e o pariu, finalmente, tendo um tiro como vagido inaugural.
Sim, talvez falte aqui a coisa que eu mais admiro nos norte-americanos (e que, ao que parece, também começa a escassear por lá): o orgulho por nossa caminhada comum, por nossos antepassados, pelos que nos trouxeram ao que somos hoje.
O atraso e as carências de nosso país, decerto, são responsáveis por isso, por tantos que acharam ou acham que tudo o que se fez aqui é fracasso e não parte e pedaço de nossa tentativa de sermos uma flor tardia da civilização.
Por isso, quem sabe, tenham a tentação desta bobagem que é “refundar” uma esquerda livre dos “erros e pecados”, como num inconsciente arremedo do discurso “moralizador” da direita.
Não se percebe que o único que ela pode fazer, porque tudo o mais nela é imoral ee abjeto : o atraso, a fome, a degradação das massas humanas, os luxos e privilégios que, mesmo sendo de pouquíssimos, são a razão de viver para tantos.
O que somos é fruto do que pudemos ser e o que seremos é algo que não se pode prever, mas que nunca se deve parar de sonhar.
Nem há dois séculos somos um país, nem há um só somos uma Nação, e é por isso que há tanta e tão barulhenta e arrogante gente que veja ainda como colônia, por incapazes, e a si mesma como capatazes.
Não querem que o povo seja independente, escreveu Vargas em sua carta-testamento.
E isso não mudou, ainda, depois de tantos anos.
Ainda vale nossas vidas.
no Tijolaço
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