Neste último sábado aconteceu-me uma dessas coincidências singulares que não pode deixar de ser comentada. Em conversa com o filósofo e professor de Ética Renato Janine Ribeiro, que eu e alguns amigos tivemos, ele nos afirmou que o PT, no governo, foi mais ético do que os demais partidos que estão aí. Segundo Renato Janine, ao deixar de enfatizar o discurso de defesa da ética, o PT perde um bom argumento de defesa. No mesmo sábado, nos sites de notícia, e nos jornais de domingo, o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, aparece com destaque acusando o ex-presidente Lula e o PT de falta de ética: “O Lula é PT, o Lula é o retrato do PT, partido envolvido em corrupção, sem compromisso com as questões de natureza ética, sem limites”, disse.
Antes de tudo convém anotar que o conceito de ética se presta a várias acepções de alta complexidade, que remetem a discussões especializadas. Em segundo lugar, é conveniente constatar que na atual guerra política e partidária brasileira ocorre um uso abusivo do conceito de ética e de forma quase sempre não legítima. Se tomarmos os três maiores partidos – PMDB, PT e PSDB – não é possível reconhecer legitimidade no festival de acusações mútuas que praticam entre si. O PSDB não pode arvorar-se menos corrupto do que o PT e assim por diante. A sociedade sabe disso e esta é a dificuldade que o PSDB encontra: apesar da crise do governo e do PT, os tucanos não conseguem expandir sua influência, pois o seu único ponto programático são as acusações moralistas e a destruição do PT.
Os três partidos não conseguem reconhecer a realidade estrutural da corrupção no Brasil e de estabelecer políticas e programas, até mesmo de forma comum e negociada, para enfrenta-la sem a recorrente hipocrisia. Por mais contraditório que possa parecer, foi sob os governos do PT que foram desenvolvidos os maiores esforços e os maiores avanços institucionais de combate à corrupção. Estão aí a autonomia da Polícia Federal, a lei que pune as empresas corruptas etc.
A Ética e a política
Retomando a questão inicial, como entender o paradoxo das avaliações do filósofo e do governador? As avaliações, evidentemente, vêm influenciadas pelas diferentes posições e funções que cada um desempenha em relação à vida pública. Claro, alguém poderia dizer que Renato Janine simpatiza com o PT e que foi ministro de Dilma. Tudo isto é verdade, mas é preciso ir um pouco além da visão meramente instrumentalista e manipulatória do debate público e político acerca das acusações de falta de ética.
A filosofia contemporânea assemelha indistintamente os conceitos de moral e de ética. O objeto de ambos seria a conduta individual disciplinada e dirigida por normas e a moralidade diria respeito ao caráter daquele que se conforma às normas morais. Hegel, provavelmente, foi o filósofo que estabeleceu a distinção mais explícita entre moral e ética. Para ele, a moral diz respeito à intenção individual subjetiva de fazer o bem e carece de uma realidade externa. Já a eticidade é a realização do bem que se expressa em instituições históricas, nas formas de Estado, que garantem esse bem e orientam a conduta dos seres humanos a realiza-lo.
Hegel resgata e radicaliza uma acepção de ética que estava presente em Platão e, particularmente, em Aristóteles, assimilada à ciência dos fins, em relação aos quais, a conduta humana deve orientar-se usando meios adequados para atingi-los. Ainda na Antiguidade já existia uma segunda acepção de ética associada à “ciência do móvel” da conduta humana. O móvel diz respeito à vontade, motivações, afecções e simpatias que orientam a conduta humana. A segunda noção influenciou vários filósofos ao longo da história, particularmente Kant.
Quando se discute a ética numa perspectiva política, a noção hegeliana do conceito, sem dúvida, é a mais apropriada. Para Hegel, o objetivo da conduta humana é o aperfeiçoamento e a universalização do Estado, que deve marchar progressivamente rumo a afirmação e garantia prática de direitos, pois o Estado e suas instituições são a substância e a realidade da realização da vida ética. Portanto, a ética consiste na realização dos fins consoantes ao bem comum da comunidade política.
A Ética nos governos petistas
Se este é o partido a ser adotado para discutir a relação entre ética e política é preciso notar que a política é o meio por excelência da realização ética e, ao mesmo tempo, a política como potência e materialidade de aperfeiçoamento da polis ou do Estado, é também um fim, já que é a forma pela qual a vida coletiva se realiza.
A partir deste entendimento, não há como não dar razão à avaliação proferida por Renato Janine Ribeiro. Os governos petistas, particularmente os governos de Lula, foram os mais éticos por terem promovido de forma mais apropriada e de forma mais ampla os fins relativos ao bem comum. O bem comum deve ser medido pelo metro da justiça.
Colocar na ordem do dia a questão da desigualdade, da fome e da exclusão, como fizeram Lula e o PT, foram atitudes orientadas pela busca da justiça e pela promoção do bem comum. Nenhum outro político e nenhum outro partido fizeram, de forma igual ou de maior alcance, a promoção do bem comum como Lula e o PT o fizeram. Neste sentido, Lula e o PT promoveram a ética mais do que os outros políticos e mais do que os outros partidos. A presidente Dilma, mesmo em meio a grave crise, quando se esforça para garantir as conquistas sociais, mantém a mesma perspectiva ética.
As realizações éticas dos governos petistas se materializaram na promoção da igualdade, da inclusão social e econômica através dos programas sociais como Bolsa Família, promoção da Agricultura Familiar, Luz Para Todos, Prouni, políticas para as mulheres, negros, grupos LGBTs etc.
Isto tudo, no entanto, não isenta os governos, o PT, Lula e Dilma de seus erros políticos e administrativos. Outras condições e estruturas que promovem a desigualdade poderiam ter sido removidas. Faltou, principalmente, um projeto de desenvolvimento econômico e social, ambientalmente sustentável, que superasse a dependência das commodities. Também não isenta petistas que corromperam seu caráter, violando preceitos e normas moral e socialmente válidos. Eles devem responder pelos seus atos.
Nada, no entanto, legitima a pretensão do PSDB de querer cassar o registro do PT. Além de não ter legitimidade, trata-se de uma proposição politicamente imoral. Nada justifica também a cruzada unilateral que o Ministério Público, a Polícia Federal e o juiz Moro movem contra o PT. Combater a corrupção seletivamente, punido uns e isentando outros, é igualmente imoral.
A tentativa de destruição política, moral e institucional do PT pode ser uma estratégia que apresente alguns resultados positivos no curto prazo. Mas no médio prazo, o PT poderá se beneficiar dessa condição de vítima de uma ação persecutória conduzida por adversários, autoridades e setores da mídia. Sem inocentar culpados, aceitar essa persecução como um dado da realidade, sem questioná-la moral e politicamente, significa validar a idiotia da objetividade. É também uma forma de aceitar a injustiça, pois todos devem ser iguais perante a lei.
O PT se destrói e se deixa destruir porque errou, erra e não porque não sabe se defender. O PSDB se destrói porque adotou como único objetivo a destruição do PT e tudo o que ele representa. Nada disso é edificante para o futuro da democracia brasileira. Edificante é o resgate político, moral e programático dos dois partidos, cada um expressando propostas, interesses e visões estratégicas legítimas. A questão é: onde estão líderes prudentes, capazes e sábios, aptos a tirar esses partidos de suas respectivas crises? Por enquanto, não há uma resposta a esta indagação.
Aldo Fornazieri – Professor da Escola de Sociologia e Política de São Paulo.
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