Já preparei até o corpo de uma travesti, que a família quis enterrar montado como drag queen. E esse é apenas um dos serviços funerários que ofereço!
Reportagem: Caio Calazans
Maquiar mortos é o que paga minhas contas! | Crédito: arquivo pessoal
Eu tinha 9 anos quando vovô - por quem fui criada desde os 5 anos - me levou para conhecer o lugar onde trabalhava. Eu não cabia em mim de tanta alegria, finalmente ia matar minha curiosidade! Uma coisa era saber que ele, técnico de anatomia da Universidade de São Paulo por 40 anos, preparava todos os corpos e membros humanos e de animais para as aulas de anatomia da faculdade. Já outra bem diferente era ver isso. Quando vovô abriu a porta do laboratório, o forte cheiro de formol fez meus olhos lacrimejarem muito! Então, ele começou a me mostrar os tanques onde ficavam os corpos. Havia homens, mulheres, animais, membros decepados... Achei aquilo o máximo e decidi: "Vou ser legista!" (profissional que analisa o corpo para descobrir a causa da morte).
Na adolescência me chamavam de carniça, noiva-cadáver...
Claro que as pessoas estranhavam essa minha vontade. Muitas tinham preconceito. Tanto que, na adolescência, ganhei vários apelidos: noiva-cadáver, urubu, carniça, papa-defunto. Mas nunca me incomodei, achava engraçado.
Então, aos 16 anos, uma gravidez inesperada complicou os meus planos. Até consegui concluir o ensino médio e trabalhar como vendedora em um shopping, mas ficou difícil investir na universidade de medicina e cuidar de um filho pequeno. Então, com ajuda financeira da minha família, estudei ciências biomédicas, que forma profissionais que pesquisam causas e tratamentos das doenças humanas.
Só que o sonho de trabalhar com algo relacionado a funerais continuava lá, vivo como nunca. Por isso, passei a fazer vários cursos relacionados à área. Tanatologia (estudo das reações emocionais e psicológicas das pessoas diante da morte e do luto), tanatopraxia (trabalho de preparação do corpo para o velório) e necromaquiagem (maquiagem em cadáveres). Também estudei questões legais e toda a burocracia envolvida nos funerais. Estava determinada a ter uma funerária.
Faço make suave ou pesada... A família é quem manda!
Então, tratei de conhecer o mercado. Depois de fazer alguns serviços de graça para criar bons contatos e mostrar meu trabalho, desisti da minha funerária. Seria preciso muito conhecimento, politicagem, investimento em laboratórios e carros... Sem falar no jogo de cintura para driblar as rivalidades, os boicotes e o machismo do ramo! Resolvi continuar no campo funerário, mas como autônoma. Virei, portanto, especialista em tudo que se refere a funerais - desde a parte legal até a liberação do corpo, a documentação e a preparação do cadáver.
Aí, colegas começaram a dizer que eu era boa e devia dar aulas. Apesar de não me achar muito didática, mandei meu currículo para uma escola e acabei sendo chamada. Em 2010 abri uma escola de cursos livres para quem deseja entrar no ramo. São quatro dias de aulas práticas, de sexta a segunda, o dia inteiro. Ensino anatomia, patologia, tanatologia reflexiva (que propõe uma reflexão sobre a profissão e o ato de encarar as situações de perda), direito funerário, técnicas de sutura, técnicas de maquiagem e de necromaquiagem.
Quando não estou ensinando, fico disponível para os clientes. Isso significa, entre outras coisas, me dedicar a uma das minhas partes favoritas: preparar o corpo - o que inclui a necromaquiagem. Cobro de R$ 600 a R$ 6.000, dependendo do trabalho. É que, às vezes, em caso de morte por acidente, preciso fazer reconstituição e outros serviços que aumentam o preço. Se for só o make, uso produtos convencionais e levo no máximo 30 minutos. Já numa reconstrução demoro de uma a oito horas e preciso de produtos específicos. Atendo de dois a três casos por semana, no máximo cinco.
Sempre pergunto aos parentes o que desejam que eu faça. Às vezes me pedem para passar um batom de que a pessoa gostava, fazer uma maquiagem mais pesada ou suave. Há casos em que nem querem que eu maquie, só tire a sobrancelha etc. Uma vez, trabalhei em um corpo de uma travesti e a família pediu que eu fizesse toda a maquiagem que ele sempre usava. Ele foi enterrado todo "montado" como uma drag queen. Muito legal!
E o campo de trabalho está crescendo. Sempre recebo ligações de ex-alunas dizendo que conseguiram emprego ou freelances. Se você se interessou, minha dica é procurar uma boa escola (são poucas), que ensine no mínimo necromaquiagem e tanatopraxia para que você possa começar a trabalhar. Se prepare para investir, pois eles não são baratos - por isso, devem valer o investimento. O meu curso completo entrega quatro certificados: tanatopraxia, necromaquiagem, reconstrução facial e ornamentação e cerimonial. O investimento é de R$ 2.000, parcelados em cinco vezes.
Quando eu morrer, quero ser maquiada, ficar lindona!
Você talvez esteja imaginando que sou uma pessoa mórbida, né? Que nada! Sou aberta e bem-humorada! Ora, dou muito mais valor à minha vida depois que comecei a trabalhar com isso. Mas não nego: talvez pela minha profissão eu faça piadas mais ácidas, de humor negro. No mais, levo uma vida normalíssima, gosto de ir a museus, parques e fazer fotos lindas de cemitérios para publicar na minha página. Quando eu morrer, quero ser maquiada, claro, e ficar linda!
Minhas respostas para as quatro perguntas que sempre me fazem:
1. Você nunca fica impressionada? É bobagem ter medo de gente morta! Os vivos me assustam muito mais.
2. Toma banho assim que acaba cada trabalho? Não, se for tomar banho a cada serviço tô lascada!
3. Não tem nojo? Nenhum.
4. Consegue comer logo após um trabalho? Consigo numa boa! Gosto tanto de comer que sou incapaz de associar comida a sujeira.
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