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Fernando Horta - um lugar chamado Brasil

Eu tenho um amigo que afirma, faz tempo, que o Brasil não é um país. O Brasil é um lugar. Um lugar aprazível, é verdade. Com praias, temperaturas amenas, lindas serras, muita natureza, diversidade geográfica, ecológica, étnica ... Um lugar até encantador, precisamos reconhecer. Mas a verdade é que não somos um país. Quando falam em “nosso país” existe uma diferença sutil no termo “nosso”. O “nosso” quando dito por quem tem um sentido coletivo é um nosso abstrato. Um nosso que quer dizer que não é de ninguém. E mesmo sem ser de ninguém é de todos. É um nosso que não aceita divisão. Um nosso que acredita que sempre cabe mais gente, gente diferente, gente igual, ... gente.

Quando o termo “nosso” é usado por aqueles que acreditam no individualismo, o nosso é um coletivo de “eu’s”. Cada eu lutando por obter mais espaço dentro do nosso, por reconfigurar o nosso. Cada espaço ocupado por eu é violentamente defendido e, mesmo, alargado às custas de outros eu. Olhando de fora parece um calmo e colaborativo nosso, mas internamente são um conjunto finito de “eu’s”, que lutam por afastar qualquer um que não seja eu. Usam-se todas as técnicas possíveis de segmentação. Se não tem a cor certa não pode ser eu e tampouco participar do nosso. Se não tem a postura certa, se não tem a atitude certa, a conta bancária certa ou a forma de usar o português. Tudo é motivo para afastar eu do conjunto de eu’s que eu chamo de nosso.

O sentido de “país” é, portanto, diferente do sentido de “lugar”. Os dois usam o termo “nosso”. Mas o nosso país é um lugar cujos eu’s são submetidos às mesmas regras, tem as mesmas oportunidades, participam da ideia do “nosso” submetendo as liberdades do “eu” aos interesses do nosso. É claro que o “nosso país” precisa ser construído diariamente pois nunca, em condições naturais, não planejadas ou pensadas, eu vou estar submetido às mesmas oportunidades e regras de todos os outros eu’s. Para que isto aconteça, é necessário dispêndio de energia. Constrangendo as diferenciações econômicas, restringindo o individualismo social, consertando os espaços cinzentos por onde alguns eu’s tentam fugir das regras comuns.

O sentido de “lugar” leva consigo uma ideia de “resultado natural do curso das coisas”. Os lugares são, indiferente àqueles que os delimitam. É uma perspectiva de contemplação e adaptação apenas. De processos individualistas de adaptação. E adaptação significa sempre luta. Uma luta contra outro eu que disputa os mesmos espaços. Espaços que são finitos porque o eu não sabe compartilhar nem dividir. No lugar não existe almoço grátis. Mas o eu que se convence disto compra uma ideia sorrateira de que todos trabalham por seu almoço. E quem não almoça, não trabalha, portanto. No “lugar” esta lógica invertida, que toma o resultado pela ação, acaba criando condições para que os eu’s que almoçam defendam que a fome é fruto da preguiça, ou que a incapacidade é resultado da falta de esforço.

Um lugar é um espaço geográfico sobre o qual o eu constrói uma identidade que é sempre um reflexo egoísta de si, excluindo tudo o que for diferente do eu. Um país, por outro lado, é um construto sócio-político que se reconhece plural e defende o “nosso” como um espaço de inclusão. A identidade individual se submerge no sentido coletivo, potencializando este. No nosso país está implícita a presença de todo eu, sendo o “todo” com caráter generalizante, mas não completo. Luta-se por expandir, diariamente, a lei de reconhecimento do eu que para que seja parte do “nosso”. O nosso país reconhece que seremos tanto mais fortes quanto mais eu’s reconhecerem-se parte do nosso, sem deixarem, entretanto, de ser eu.

O problema é que quando o eu acredita que pode agir pela simples vontade discricionária, ele destrói o nosso. Seja um eu juiz, um presidente ou um senador na comissão de ética. O eu que acredita que não precisa se submeter ao nós é um eu agressivo, que se acredita superior por condição ontológica e de forma perene. O eu que se acha superior, e, portanto, não submisso ao nós, é um eu que exerce uma violência institucional que não se coaduna com o nosso país. No lugar, as resultantes dos diversos vetores de violência implementados pelos “eu’s” é uma força de exclusão que parte do centro em direção às periferias. Nos círculos centrais esta força é pequena e costuma ser dobrada pela discricionariedade de qualquer eu que ali possa exercer sua vontade. A vontade de um eu é suficiente para inverter o sentido da resultante.

Na periferia, de forma diferente, a força resultante é tamanha que não importa a vontade expressa de qualquer eu por se aproximar do nosso, ele será jogado cada vez mais para longe. Cada vez mais distante e com menos legitimidade para ser parte do nosso. A função do “nosso país” é, exatamente, mitigar estes efeitos. Garantir que qualquer eu, em qualquer lugar, tenha condições de existência, crescimento e estabilização equivalentes.

O Brasil de hoje, com procuradores enriquecendo às custas do Estado, com juízes reescrevendo códigos de forma discricionária, com empresários comprando leis e com políticos acreditando que não existe nada além de suas consciências como balizadores do exercício de seus poderes, é um lugar. Um amontoado de “eu’s” que não partilham de qualquer sentido, mesmo remotamente, semelhante ao “nosso país”. Quando das discussões de formação de alguns países, estas questões vieram à tona. Como lutar contra diversos “eu’s” venais que tivessem poder de Estado, econômico ou das armas? As únicas soluções encontradas foram a violência dos poderes que se chocam e se tolhem ou a revolução. A revolução significa a extinção dos poderes constituídos e criação de novos. O custo, entretanto, é alto.

No século XX, buscou-se uma outra solução: a participação. Pelo alargamento dramático do número de eu’s que detém poder, reduz-se o poder de qualquer eu em separado e aumenta-se o poder do “nosso”. A participação é, pois, junto com a revolução as únicas saídas para transformar o lugar em um país. Resta a escolha. Se queremos a transformação pela violência ou pela inclusão. A manutenção do transe social estático que estamos experimentando no Brasil, não contribui para diminuir o potencial de energia que vem se acumulando, cada vez mais descontente. Até o impeachment de Dilma, apenas uma parte do país estava descontente. Com o impeachment, uma outra parte passou ao lado descontente. Hoje, quem exerce (mal) os poderes executivo, legislativo e judiciário no Brasil está conseguindo que se ombreiem contra eles 93% dos brasileiros.

O Brasil é um lugar. Prestes a explodir.

Estamos vendo o efeito nefasto de colocarmos ignóbeis, venais ou apenas inertes em função de exercício de poder. Estamos experimentando o que sociólogos, historiadores e cientistas políticos diziam que seria o “esgarçamento do tecido social”. Quando os eu’s não se reconhecem mais em “nosso país”. Partem a fazer uso discricionário dos seus poderes gerando apenas e tão somente violência. Um lugar apenas, não mais um país.

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