Aconteceu o que tantas vezes acontece à direita: erraram nas análises. Superestimaram a própria força, subestimaram o chavismo, leram de maneira errada o estado de ânimo das massas, calcularam mal as coordenadas do campo de batalha. E nas batalhas as responsabilidades são coletivas, mas diferenciadas: o peso maior cai sobre os generais – como ensina, dentre outros livros, A Estranha Derrota, de Marc Bloch.
Porque fato é que houve a derrota, derrota tática, no marco de um equilíbrio instável prolongado, mas derrota, sim, e derrotas implicam mudanças, rompimentos, debandadas e mudanças de posição.
Por que a direita avaliou tão erradamente as condições para tomar o poder pela força na Venezuela? Foram vários elementos combinados. Em primeiro lugar, a posição da classe dirigente. A direção do movimento golpista estava e está em mãos de homens e mulheres da burguesia, da oligarquia, quadros em sua maioria de classe média alta, formados todos nessa política imaginária tão típica das direitas em todo o mundo. Não é verdade que a direita não desenvolveu estruturas em algumas zonas populares, mas não dirigem realmente coisa alguma e onde existem, são minoritárias. A esse elemento soma-se outro, que agrava o risco do cálculo e leva a erro: uma parte da direção do movimento golpista, tanto venezuelanos como norte-americanos, vive fora da Venezuela, muitos nos EUA.
Essas interpretações, marcadas por grande distância de classe e de país, acabaram por fracassar pelo efeito bumerangue de uma de suas reconhecidas forças: as redes sociais predominantemente de direita. A direita golpista venezuelana assumiu que a dinâmica manifestada nas redes seria representativa do estado de ânimo das maiorias e que essas maiorias seriam de direita. Pensaram que a fortuna que consumiram – da ordem de milhões de dólares – com veículos das empresas Twitter, Facebook, Instagram, Youtube, obtivera real sucesso, seria a expressão da verdade, o que realmente existia no mundo real, que a radicalidade da direita ali expressa seria a radicalidade popular real.
Desse modo, acabaram por se convencer de que o governo Maduro estaria caindo, faltando só o empurrão final, que o governo tinha apoio popular, que era minoritário e estava preso às cordas, que as massas descontentes atenderiam a convocação da direita para que tomassem as ruas para derrubar o "regime", e que a própria direita teria força suficiente para expandir-se até alcançar aa grande massa policlassista e nacional necessária para derrubar o governo eleito. Essa combinação de elementos incidiria por sua vez sobre fatores políticos e institucionais do chavismo, os quais, ao ver o crescimento irrefreável das massas a exigir eleições gerais, mudariam de lado. Só aconteceu com a Fiscal Geral e alguns dirigentes intermédios pontuais – e não por pressão das massas, mas por plano e suborno político. O mais importante nesse plano era a Fuerza Armada Nacional Bolivariana, que a direita contava com que rapidamente mudaria de lado: e essa se manteve intacta, não vacilou e não quebrou.
Esses cálculos levaram a direita a manter a hipótese de saída violenta durante mais de 100 dias. Com pontos chaves, como o anúncio de que o próximo presidente seria eleito em eleições primárias. Foi o que disse Ramos Allup, o primeiro a declarar logo que participará nas eleições regionais. Entre um e outro anúncio, passaram-se 15 dias, e no meio houve um evento crucial: a vitória eleitoral de 30 de julho, com mais de 8 milhões de votos contra a violência golpista, e a favor de uma solução democrática comandada pelo chavismo. A direita fez como se nada tivesse acontecido, mas o impacto daquela vitória foi inegável: levou a um rearranjo de posições e mudança de tática em desenvolvimento.
Resultado disso tudo foi a inversão das premissas da direita: o chavismo não estava nocauteado e aplicou uma lição histórica à direita venezuelana; os setores populares adivinharam de longe o movimento que viria da direita e rechaçaram a violência. E a direita, os grupos de choque e setores paramilitares não conseguiram modificar o quadro nacional real. Com coordenadas desse tipo, é impossível tomar o poder pela força. E uma depois da outra caíram as 'propostas' da direita. Hoje já declaram que participarão de eleições coordenadas e comandadas pelo governo chavista de Maduro que, há uma semana, a direita acusava de ilegal, ilegítimo y fraudulento. Freddy Guevara, de "Voluntad Popular", já anunciou que "o caminho é eleitoral".
Alguns ainda não se pronunciaram, por desacordos, por incapacidade para concorrer em disputa eleitoral limpa – como María Corina Machado –, por tensão com uma base social fraudada, à qual haviam prometido poder iminente e forte, mas à qual, cem dias depois, só têm a oferecer a via eleitoral e crise interna.
Esses meses de escalada reconfiguraram o mapa interno da direita, que hoje parece composta de três setores, os quais, embora sustentem posições diferentes – por pragmatismo ou convicção – não parecem separados por fronteiras muito claras.
1. O primeiro desses grupos da direita venezuelana reúne os partidos de direita mais históricos, como "Acción Democrática" presidido por Ramos Allup, o qual, embora tenha acompanhado a escalada da violência, aposta e sempre apostou na estratégia de desgastar o governo – principalmente por efeito de ataques econômicos –para assim 'herdar' os votos do descontentamento popular e apostas em vitórias eleitorais.
2. O segundo grupo da direita venezuelana é coordenado, por exemplo, por "Voluntad Popular" e "Primero Justicia" – cujos dirigentes estão proibidos de candidatar-se – e grupo que desde o início apostou na saída pela violência, trabalhou na formação/financiamento/treinamento de grupos de choque e vinculou-se diretamente com setores paramilitares.
3. O terceiro grupo da direita venezuelana é o que se autodenominou "resistência" e recebe vários nomes conforme as regiões na Venezuela. O discurso desse grupo é rechaçar a traição dos dirigentes que aceitaram concorrer em eleições, e insistir na necessidade de escalar a confrontação de rua, com reivindicação de ações violentas – como as que se viram no dia das eleições.
Esse grupo de direita extremista opera comunicacionalmente pelas redes sociais, e diretamente de Miami. É difícil definir se há aí um processo de relativa espontaneidade, ou se a dita "resistência" foi inventada exclusivamente para pôr em execução ações planejadas, dentro do segundo grupo acima, sob diferentes denominações. Quantos são? Quem os dirige e coordena? Segundo dizem os próprios 'representantes' maiameros [de Miami/*maiami*] seriam dispersos, sem centro de comando.
Essa análise permite compreender por exemplo a ação de domingo passado no Fuerte Paramacay.
Não se trata, como os ataques a quarteis dos meses de maio/junho/julho, de medidas no marco de alguma escalada que vise a encurralar o governo, como ação ofensiva. Mais se assemelha a um esforço para manter medidas de alto impacto – com forte repercussão internacional –, que contou com a participação dos grupos mais radicais. A autoria do fato deve ser buscada no terceiro setor acima – que parece vinculado, por baixo dos panos, também ao segundo e a dirigentes assumidos da direita como o senador norteamericano Marco Rubio. – Seguramente há planos para ações como essa, e maiores. Veem-se sintomas de desespero, o que sempre pode gerar violência e apostas mais radicais.
A esse quadro devem acrescentar-se as principais linhas de força da direita: os ataques econômicos e a ação internacional. No primeiro caso, já se viu como, logo depois do 30 de julho, produziu-se ataque frontal contra a moeda, quando o dólar paralelo foi aumentado vertiginosamente. O objetivo é fazer disparar os preços, desgastar o apoio popular, afastar do governo a população, agravar o quadro de dificuldade material, tentar asfixiar os cotidianos das classes populares. Quanto ao contexto internacional, a escalada continua, dirigida dos EUA, com apoio central da Colômbia e de governos subordinados aos EUA na região.
Resultado é que a direita voltou a depender de duas estratégias que manifestam a incapacidade da própria direita. Uma é golpear a população do país, para levá-la ao desespero e tentar converter o desespero em votos. A outra é pedir intervenção norte-americana, a ser disfarçada como seja preciso. Essa realidade é mostra de fraqueza, não de força.
A eleição de 30 de julho, da Assembleia Constituinte, foi vitória tática do chavismo. Essa nova situação, no equilíbrio instável, trouxe efeitos que recaíram sobre uma direita que outra vez equivocou-se gravemente em sua análise do campo de batalha, e também dentro dela. Essa vantagem a favor dos chavistas tem de ser traduzida urgentemente em ações. O setor que mais exige ações revolucionárias, além do Judiciário, é o setor econômico. A economia, já se sabe, é política concentrada. Aí parece estar hoje o principal desafio que a revolução bolivariana tem de enfrentar.
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