O PT e Lula

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Carisma e transição, por Aldo Fornazieri

Toda periodização temporal de um povo, de um país, de um partido ou da própria História envolve um grau de arbítrio daqueles que formulam os períodos. De modo geral, historiadores e estudiosos se valem de momentos cruciais, de mudanças paradigmáticas, para definir os períodos. Assim, a história do PT pode comportar diferentes periodizações, segundo quem as formula e de acordo com os critérios escolhidos. Uma das periodizações possíveis consiste em dividir sua história em dois períodos: o que vai do seu surgimento até a chegada ao poder com a eleição de Lula para a Presidência da República, e a que vai de 2003 até hoje.
Embora as categorias que definem os períodos geralmente se caracterizem pelos conceitos de "progresso" ou "declínio", talvez seja mais adequado adotar a categoria de "diferença". A diferenciação no tempo, claro, pode incorporar subalternamente as noções de evolução e progresso, assim como a de declínio.
Sinteticamente, pode-se caracterizar o primeiro período do PT (do nascimento à chegada ao poder), como o período da consolidação, da luta, do combate, da ascensão e da virtude. Até porque não existe virtude sem combate e, quase sempre, o combate requer a condução de uma virtude moral definida pela liderança. Neste período, o PT, corretamente, empunhou a bandeira da ética na política e da moralidade pública, de combate à corrupção e pugnou pela justiça social, pelos direitos, pela cidadania e pela igualdade.
Foi um período de vida interna e externa prolífica. O debate intelectual e programático era intenso, a democracia partidária era significativa, as ideias eram plurais e as tendências (grupos organizados) eram o centro dinâmico da formulação de programas, de arregimentação de militância e de equilíbrio de poder. Lula era o líder principal, sem dúvida, mas exercia uma liderança temperada e retificada pela presença de um José Dirceu, de um Genoíno, de um Tarso Genro, de um Raul Pont, de um Olívio Dutra e de tantos outros líderes regionais ou de correntes significativos. O Diretório Nacional do PT e sua Executiva eram os verdadeiros centros dirigentes e os Diretórios Estaduais e Municipais, assim como os setoriais e os núcleos de base, expressavam centros de dinamismo e de poder democrático interno.
O segundo período, com a chegada de Lula e do partido ao poder, pode ser caracterizado como o período do domínio carismático de Lula, da subordinação do PT ao governo, da sua acomodação, da sua corrupção e de seu declínio. Além de perder seus principais quadros dirigentes para o governo, o partido foi afetado e fragilizado pela crise do Mensalão. Outras causas concorreram para o enfraquecimento partidário: direções fracas e inexpressivas, enfraquecimento das tendências e fortalecimento dos mandatos e dos quadros que estavam no governo, burocratização interna com o esvaziamento dos organismos coletivos, afastamento da intelectualidade que passou a ser chamada apenas nos momentos eleitorais, perda do discurso da ética e da moralidade, declínio do debate programático. A sobreposição de Lula ao partido teve sua expressão máxima no momento da imposição da candidatura de Dilma Rousseff à presidência da República.
É preciso perceber que nenhum grande líder ou corpo político perdura por muito tempo no poder se não exercer permanentemente uma direção moral e cultural, se não for um reformador no sentido forte do termo e se não defender a fundação de uma nova ordem ética. Para que isto aconteça, é preciso criar novos símbolos, uma nova retórica, reinventar o passado interpretando-o como lastro das mudanças e inovações ou buscar os fundamentos no passado de outra civilização. A condição da perdurabilidade no poder consiste em ativar de forma permanente os princípios e fundamentos virtuosos da origem, que conferiam a potência da ascensão. Aparentemente, a liderança do PT não tinha consciência da funcionalidade desses mecanismos.
Na mesma medida em que o PT declinava como estrutura organizada, Lula se agigantava como líder carismático, sobrepujando em muito a força do partido. Rapidamente o PT se transformou em partido-carisma, em partido lulo-depedente, pois o líder passou a exercer uma influência, pela sua força e pelas suas qualidades, quase absoluta. O poder e a legitimidade da autoridade de Lula sobre o PT e seus seguidores é lastreado na sua liderança carismática, na devoção que ela desperta, e na crença de que ele é o único indivíduo, excepcional, capaz de produzir mudanças heróicas.
A necessidade da transição planejada

Partidos carismáticos normalmente são tomados por um dinamismo mobilizador porque o chefe desperta paixões ativadoras. Veja-se, por exemplo, que no período do impeachment, quando Lula ficou paralisado, houve uma enorme desmobilização política e moral da militância petista. Agora, com a Caravana da Esperança, Lula consegue novamente ativar a paixão, o frenesi e a crença de que teremos o advento de um novo tempo. As massas, por si sós, dificilmente se mobilizam espontaneamente, pois são seguidistas, "massas de manobra" como diz Gramsci,
Mas a liderança carismática, geralmente, provoca um grave problema de continuidade nos momentos de transição geracional, como é o atual momento do PT. São poucos os líderes carismáticos que planejam e preparam a transição. A transição requer uma mudança planejada sem que signifique rompimento. Lula parece  não se preocupar com esse problema. Foi também o caso de Mao Tsé'tung, de Stalin e de tantos outros. Não foi o caso de Fidel Castro, que organizou uma transição interna, retirando-se da cena principal. Também não foi o caso de Deng Xiaping, que preparou, com antecedência, a transição para o advento de uma liderança para conduzir a China globalizada.
Um PT pós-liderança carismática teria que ser um PT diferente, planejado com antecedência. Não existe partido carismático sem liderança carismática. Não há um novo líder carismático para o PT do futuro próximo. Lula é uma singularidade rara na história dos partidos e dos povos. Sem o planejamento da transição, o caos pode sobrevir ao corpo político - seja ele um partido ou um Estado - quando o líder desaparecer ou quando for gravemente derrotado.
Não há sinais de planejamento de uma transição no PT e este é um grave erro de Lula e do partido. A transição implica na organização de um Estado Maior que a planeje, que recrie a ideologia do partido, a sua simbologia, o seu programa. Implica também na transição de liderança. Esta nova liderança teria que conduzir o partido por novos métodos, nova visão de mundo, abrindo-o novamente para a militância e para a sociedade, sabendo combinar uma estrutura vertical desburocratizada comandada por líderes competentes com uma ampla e renovada base participando de forma horizontal. Além de uma nova linguagem e de uma nova retórica, com novos conteúdos, seria necessário criar novos métodos de comunicação, condizentes com a sociedade informacional. Ninguém será capaz de substituir Lula com sua arte de se comunicar diretamente com o povo.
Aldo Fornazieri - Professor da Escola de Sociologia e Política (FESPSP). 
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