A figura do Jeca Tatu, sinônimo de atraso e de ausência de força vital e presença de espírito, está completando 100 anos de sua chegada ao grande público leitor. Em novembro de 1918, o autor Monteiro Lobato inseriu o conto “Urupês” em livro de mesmo nome. O texto já havia sido publicado como artigo (textão!) no diário O Estado de S. Paulo, em 1914, mas foi sua entrada no nascente mercado de livros publicados no Brasil que lhe consolidou a fama.
Lobato descreveu o Jeca Tatu como o caipira abandonado à própria sorte, vítima da fome que lhe parecia natural e imutável – exceto se ocorresse um lance de muita sorte ou divina intervenção – e prisioneiro de uma ignorância inamovível. Era um retrato do Brasil, ainda majoritariamente rural, que o escritor e jornalista atacava com mordacidade para ver se era possível tirá-lo do estupor.
Indisfarçável nessa fase da obra de Lobato uma inclinação a crenças eugenistas. Não declamadas com o estufar do peito ou com o prazer de quem se sente no direito de condenar o que julga inferior, mas essas crenças estão lá. Como estiveram presentes na campanha eleitoral deste 2018, cem mudanças de calendário depois, com a diferença de que atualmente veio embalada com a ideia, muitas vezes explícita, da hipótese de remoção (ou “varrição”) do outro como saída plausível.
A fome, a falta de saneamento básico, a completa distância de acompanhamento médico e, tristemente curioso, o mesmo desconhecimento dos rumos políticos de que sofria Jeca Tatu voltam a grassar, após breve período recente em que tentativa de superação dessas mazelas deixou de ser guiada pela tese que enxerga sofrimento e sofredor como um só e indelével fenômeno.
No seu ataque ao Jeca, o escritor nascido em Taubaté (SP) começa por ridicularizar a romantização do homem original brasileiro, à moda de José de Alencar, primeiro demonstrada na louvação do índio Peri e que naqueles idos de 1910, segundo acusa Lobato, era transferida para a figura do homem do campo numa representação de pureza e destemor, como se representações do atraso – tais como as queimadas atacadas em outro texto por Lobato – não existissem como obstáculo ao progresso e a uma possível emancipação. Essa idealização iria compor anos mais tarde o ideário do integralismo, em sua louvação das “origens” como amálgama do fascismo à brasileira.
“Seu grande cuidado é espremer todas as consequências da lei do menor esforço – e nisto vai longe”, descreve Lobato em seu conto, em contraponto ao “indianismo” heroico redivivo na crônica daquele tempo. A interiorização do destino trágico como algo normal ao Jeca é retratada pelo escritor a partir de hipotética banqueta dotada de três pernas que o pobre caipira reserva em sua casa de palha para os visitantes– já que o próprio Jeca não se senta em um, para isso bastam-lhes os calcanhares sobre os quais acocora-se: “Seus remotos avós não gozaram de maiores comodidades. Seus netos não meterão quarta perna ao banco. Para quê? Vive-se bem sem isso”.
No plano simbólico, o conto “Urupês” retrata o Jeca como supersticioso, avesso à política (salvo o voto quadrienal) e invejoso do vizinho mais próximo com ares de patrão bem sucedido.
Esse Jeca Tatu criado por Monteiro Lobato pode muito bem ser apropriado pelas narrativas tanto da esquerda quanto da direita. Esta, tradicionalmente, utilizou-se da mediocridade do caipira lobatiano para menosprezar nossas chances como nação, no que foi seguida por incautos caipiras de diversos matizes.
Lobato tinha 36 anos nessa época. Seu afã por um Brasil independente e desenvolvido evoluiu e transformou-se em ações práticas e campanhas de grande envergadura. A começar pela criação de uma editora 100% nacional, a partir de onde projetou seus livros como sucessos de venda inéditos até então. Sua intervenção mais conhecida foi a campanha O Petróleo é Nosso, que entre tropeços e sucessos redundou anos depois na criação da Petrobras.
Foi entusiasta da Revolução Russa e da campanha soviética contra os nazistas. Foi acusado de comunista pela igreja – na época, a hegemônica Igreja Católica – por conta de seu livro História do Mundo para Crianças, apontado como subversivo pelo padre Sales Brasil. Como preso político em 1941, sob o Estado Novo, no presídio Tiradentes, aprofundou seu conhecimento sobre comunismo com seus companheiros de prisão.
Resumiu assim o cenário político e social brasileiro: “A nossa ordem social é um enorme canteiro em que as classes privilegiadas são as flores e a imensa massa da maioria é apenas o esterco que engorda essas flores. Esterco doloroso e gemebundo. Nasci na classe privilegiada e nela vivi até hoje, mas o que vi da miséria silenciosa nos campos e nas cidades me força a repudiar uma ordem social que está contente com isso e arma-se até com armas celestes contra qualquer mudança.”
Vida que segue...
O mais divertido e contraditório, é que antigamente Jeca Tatu era apenas um personagem literário. Hoje são milhões de internautas e eleitores atuantes, que evangélicamente se orgulham da imbecilidade e truculência (com os mais fracos), porque na real são iguais o verme que elegeram, vivem de puxar e babar ovo...