Os pequenos homens de Nuremberg, por André Araujo



William Shirer foi o jornalista correspondente do jornal The Chicago Tribune, um dos principais dos EUA nos anos 1930, e do sistema de rádio CBS, o maior dos EUA, em Berlim, de 1933 a 1941, quando foi expulso da Alemanha por causa da declaração de guerra aos Estados Unidos pelo governo do Reich após Pearl Harbor, em 9 de dezembro de 1941. Foi a Alemanha que declarou guerra aos EUA em solidariedade ao Japão.
Mais que qualquer outro jornalista americano, Shirer viu o nascimento do nazismo, conviveu com sua ascensão triunfal, conheceu de perto todos os líderes da Alemanha nazista e, com base nessa experiência única, escreveu a monumental obra ‘Ascensão e Queda do Terceiro Reich’. Este foi um dos livros de maior tiragem no Século XX, já na edição de número 66, obra que me impactou na juventude. 1.660 páginas em 4 volumes.
Depois da guerra, em 1946, Shirer voltou à Alemanha para cobrir o julgamento do Tribunal Internacional de Crimes de Guerra de Nuremberg.
Embora ‘Ascensão e Queda’ seja seu livro mais conhecido, Shirer produziu outras obras significativas, especialmente os ‘Diários de Berlim’, de antes, durante e depois da Guerra. Sua cobertura do pano de fundo da Segunda Guerra, vista de dentro da Alemanha, é incomparável. Traça um perfil de Adolf Hitler completamente diferente dos filmes de Hollywood, que demonizavam o ditador alemão como um monstro raivoso, uma visão que impediu uma análise histórica mais acurada.
Hitler não espumava de ódio como nos filmes que uma Hollywood ideológica o pintava. Era evidentemente um homem do mal, mas seu perfil era muito mais perigoso porque era também um sedutor, cavalheiro nas recepções oficiais de Berlim, educado e formal com as damas.
Mas neste relato me concentro na cobertura que Shirer fez do julgamento de Nuremberg, ao qual ele esteve presente do começo ao fim.
Ao ver os 21 denunciados no banco dos réus, com roupas de prisioneiros, Shirer observa ‘como é possível que personagens de tal mediocridade, sem os uniformes cheios de medalhas, as botas lustrosas e a arrogância do poder, pudessem governar de forma absoluta uma das nações mais cultas e civilizadas do planeta?’ Shirer observava a pequenez e a insignificância desses homens, parecendo modestos merceeiros de aldeias, inofensivos carteiros ou chacareiros, como puderam governar a Alemanha e dominar a Europa?
Despidos de seus galões, esses personagens passariam despercebidos numa estação de trem de província, tal suas simplórias figuras. Shirer fazia exceção a Goering, o único nazista de alta classe social, não menos nefasto, mas via-se nele uma postura de nobreza social, tanto que todos os demais prisioneiros lhe reconheciam a procedência. Quando Goering entrava os demais se levantavam.
A observação de Shirer responde a uma alta indagação política: como é possível que o povo alemão, um grande País, com patrimônio de cultura, filosofia, música, religião, ciência, pode se curvar a tais tipos de vagabundos sociais e entregar a eles o governo do País, que levaram à desgraça?
Shirer deixa no ar a questão que tem sentido histórico: países cometem atos transloucados que desafiam a lógica mais banal, sem respostas na racionalidade mais elementar. Adolf Hitler não tinha biografia, carreira, educação, ligações sociais para ser mais que um garçon de cervejaria; Himmler era ainda mais insignificante; Julius Streicher um jornalista achacador; Rosenberg, o filósofo do nazismo, não tinha curso ou qualificação para ser nada além de um guia de turismo. Salvava-se o arquiteto Albert Speer, que sobreviveu a Nuremberg e teve uma carreira vitoriosa como consultor empresarial após cumprir 20 anos de prisão. Hjalmar Schacht, o financista do nazismo, com biografia anterior a ele, nem sequer foi condenado, um enigma.
A lição de Shirer nos aponta para essas contradições da História: como é possível que tais pessoas chegaram ao Poder em um país avançado?
Evidentemente, e Shirer abre essa janela, deveu-se às circunstâncias da História, de um encadeamento de eventos que tornaram possível a um bando de celerados governar um dos países mais civilizados da Europa, levando essa nação à mais completa desgraça antes que fossem apeados do Poder.
Aos muitos que leram com prazer ‘Ascensão e Queda do Terceiro Reich’, recomendo a leitura dos ‘Diários de Berlim’, que são um complemento indispensável à obra-prima de Shirer, sem dúvida o maior jornalista americano do Século XX e também um mestre de História.
Vida que segue...