Por outro lado, existe algum grau de objetividade, no que sabemos que certa temperatura de água que medimos agradará a maioria — ou uma pessoa em particular que conhecemos bem, e sabemos se é sensível ao frio ou não. Em particular, sabemos claramente que os extremos são desagradáveis a todos os seres humanos, até o ponto de prejudicarem a saúde.
A palavra estética vem do grego “aesthesis”, e classicamente representa dois tipos de empreendimentos:
1. a experiência sensorial e como reagimos a ela;
2. análises, recomendações e heurísticas embasadas no empreendimento anterior, isto é, uma reflexão ou “meta-experiência sensorial”, que produz da justificativa do gosto até a prescrição e crítica, e retroalimenta todas as nossas buscas sensoriais, bem como as experiências sensoriais que oferecemos aos outros (“arte”).
O popular, testando amadoramente as águas da estética, sempre, invariavelmente, chegará num beco sem saída do tipo “gosto não se discute”, ainda que, na prática, todos nós discutamos gosto o tempo todo, e isso diga respeito a uma grande parte de nossa interação social. Essa tensão ocorre pela mistura de elementos subjetivos e objetivos na experiência e na análise estética, bem como nossa própria falta de clareza com relação a reflexão estética, tanto a que fazemos quanto a de outros.
Não conseguimos fugir de nenhum dos dois âmbitos da estética, por menos qualidade de atenção, refino, presença e pertencimento no mundo que tenhamos durante as diversas experiências — e menos clareza que tenhamos com relação à reflexão posterior, se ela existir –, nossa navegação por um mundo cada vez mais sobrecarregado sensorialmente torna cada vez mais imprescindível o desenvolvimento de critérios para o uso do tempo.
Algum tipo de anseio nessa direção sempre esteve presente, ainda que a maioria de nossas apreciações se dê de forma automática — não exatamente espontânea, mas arbitrariamente — e, pior, tenhamos, em geral, total obscuridade quanto a esse processo e nossos impulsos ligados a preferências.
Liberdade e Aparência
Assolados pela poluição sensorial, pelo lixo conceitual, pela oferta cada vez maior de entretenimento vulgar e chamativo, todos já temos desenvolvido filtros, ainda que de qualidade incerta, para lidar com o mundo cada vez mais artificial em que vivemos, onde não há escassez de conteúdo e, desde as fontes primárias de filósofos medievais obscuros até o funk carioca estão disponíveis a uma busca e um clique, já reconhecemos a presença nítida de alguns critérios sobre nossa vida sensorial.
O que nos falta, muitas vezes, são ferramentas e a disposição para depurar esses critérios por meio da formação de metacritérios, isto é, do estabelecimento de um processo heurístico; bem como clareza para evitar critérios ruins, falsos ou inúteis gerados por vieses, tendências e hábitos mentais obscuros ou inconscientes.
Nossas escolhas podem ser éticas, embasadas em alguns princípios pessoais relativamente pouco examinados, que dizem, por exemplo, “não devo perder tempo com isso” — já que carreira, família e algum projeto pessoal (ou sonho de consumo) vem em primeiro lugar.
Mas, mesmo assim, cada vez mais nos vemos procrastinando diante de uma série de TV com que temos uma relação de amor e ódio, a que consumimos por compulsão (a novidade do binge watching, assistir boa parte da temporada, ou ela inteira, de uma vez), e nem nos passa pela cabeça contemplar de onde vem isso, por que agimos assim, e o que nos conecta tão fortemente e automaticamente a determinados conteúdos.
Sem falar no fenômeno do “fã” de forma geral, aquele que caracteriza sua relação com o conteúdo, e muitas vezes com o mundo, como um mero aficcionado. “Sou aquele que gosta disso” como definição de caráter, não eu que me envolvo com o conteúdo, mas o conteúdo que me rotula e elabora a a aparência de minha face perante os outros.
Ademais, há um terceiro uso para a palavra estética. Dizemos que uma algo tem uma “estética helenística” quando tem certas características do jeito particular que os gregos faziam as coisas em determinado período. De fato, boa parte da área menos examinada e que mais tomamos por garantida em nossa vida é feita de “opções” estéticas.
As aspas na palavra “opção” estão ali porque, embora existam tantas outras maneiras disponíveis, o nosso ato de “escolha” da forma estética que carregamos no mundo não é tão claro, tão nitidamente baseado em vontade ou liberdade, e numa heurística salutar — é algo que, no mais das vezes, mistura algum tipo de deliberação, ou a ilusão de deliberação, hábito e fragilidade perante influência externa — e vários níveis de propaganda e suscetibilidade a memes (falando aqui no sentido técnico do termo, não na derivação por sentido de determinado uso da palavra num contexto específico, como aquelas figurinhas grotescas que representam bordões de pensamento ou ironia mastigada).
Quando usamos o termo estética em seu sentido etimológico, estamos falando de experiência sensorial. Quando o usamos em seu sentido técnico filosófico, estamos falando da heurística da reflexão sobre a experiência sensorial. E, finalmente, quando o utilizamos de forma popular, estamos nos referindo as diversas reificações ou padrões de apreciação sensorial que encontramos no mundo.
O que já foi reflexão, boa ou ruim, mas se tornou uma referência, um estereótipo mastigado vez após vez, e que conseguimos mais ou menos identificar.
Nesse terceiro item temos estilos, modas, períodos, gêneros, tribos, eras, escolas, etc. “Essa camisa rasgada vai acrescentar um elemento punk na seu guarda-roupa”, “coluna dórica”, “adoro filme francês”, “você é hipster”, “o cartaz do Obama foi baseado em propaganda soviética”, assim por diante.
Superficialidade e Estética
Embora “gosto” (as preferências) seja, grosso modo, nosso principal cartão de visita no mundo, pouquíssima clareza existe com relação a porque nos vinculamos a determinados mundos estéticos.
Também basicamente julgamos os outros o tempo todo com base nos interesses deles, e desprezamos certas conexões que reconhecemos. Particularmente, formamos ideia de classe e capital educacional imediato com base em como a pessoa se apresenta (o que veste, o que a adereça) e fala (o que cita, como fala, que vocabulário usa).
Temos alguns princípios (razões) e certas emoções (o amor filial, por exemplo) cuja dimensão estética é pouco importante — a não ser que sejamos adolescentes, não nos preocupamos tanto com os gostos de nossos pais, e certas coisas em nossa vida fazemos por senso de dever, ou algum outro tipo de deliberação se não totalmente livre de estética, bastante livre.
Por outro lado, o lubrificante social que usamos no relacionamento com a maioria das pessoas, e a nosso próprio senso de individualidade, vem na sua maior parte de associações com “produtos culturais” que consumimos. Todas as nossas relações interpessoais possuem um domínio estético – ele só pode variar de ser relativamente irrelevante até ser o único motivo pelo qual aquele relacionamento se formou.
Isso vale, curiosamente, tanto para o pedante que estiliza (naquele delírio de suposta deliberação de que já falei) todo mínimo elemento de vestuário, acessórios, vocabulário, maneirismos — e escolhe os amigos unicamente dentro do nicho peculiar que criou a partir de hábito e influência pouco examinada — quanto para o despretensioso que faz questão de ser eclético, popular, que tenta surgir algo como um mínimo denominador comum estético no mundo.
Estas tentativas extremas de lidar com a estética, curiosamente, são elas mesmas expressões estéticas. A tentativa de não estilizar, de não escancarar gosto, ou diminuir sua aparente importância, é também um posicionamento claramente estético no mundo. E não é incomum. O grau de desimportância e aparente espontaneidade que conferimos a estética pode vir de uma relação sofisticada com o sensorial e derivados, ou pode vir de um mero torpor intelectual, ou falta de interesse no mundo.
A estética pouco examinada, seja a super estilização ou a total “espontaneidade”, é um maria-vai-com-as-outrismo, ou uma displicência preguiçosa, ou ainda insegurança e preocupação demasiada com a autoimagem. Isto é o que podemos chamar de estética superficial. Já a estética que surge como expressão íntima da reflexão sobre o sensorial, e de integridade, esta é uma expressão de liberdade e uma generosidade com o mundo.
Hoje, para todos os motivos práticos, a adolescência (que um tempo atrás nem existia), preenche a maior parte da vida bem mais longa dos contemporâneos — no sentido de que seguimos décadas adentro de nossa vida adulta construindo aquela imagem e pertencimento que uma vez, no século XX, tomava seu tempo durante a parte da vida entre a puberdade e a idade adulta. Mas mesmo essa tentativa perpétua de encontrar “os seus” ou a si próprio não precisa ser superficial.
No início, qualquer tentativa de desenvolver a estética vai ser superficial, vai envolver imitação, incoerência e descontinuidade. Com o tempo, porém, uma heurística depurada de viezes pode transformar até mesmo esses elementos numa exploração de possibilidades estéticas íntegras, e que dizer então de abandonar essas marcas de imaturidade e expressar a honestidade estética independente desses valores?
Tempo e Urgência, Estética Atemporal e Estética como Expressão do Tempo
E a estética tem um espírito próprio, ela existe no mundo como manifestação no tempo, expressando o jogo de circunstâncias na cultura, e reverberando como maquinação de si própria.
Em outras palavras, estética promove estética, estética derruba estética. E se isso é claro na história, essa coisa que andava devagar antes do fim do tempo com a internet, hoje, a estética é um monstro de mil olhos, em que crítica, elogio, revival e sepultamento acontecem ao mesmo tempo.
Não que as tendências não surjam, e não surjam também como parte da manipulação do Nosso Senhor, o Capital — mas a estética surge como numa câmera capturando a própria projeção, o ingênuo, o pastiche, a quebra ou sustentação de paradigmas, o sincero e o irônico, o contraventor e o bonitinho, distopia e utopia, fascismo artístico e arte liberadora, arte pela arte e arte com fim social — todos se sucedendo numa mancha disforme de desorientação sensorial.
É um lixão sensorial, a wasteland da cultura humana — mas também uma mina, um garimpo.
E qual é o critério? O que é, em termos da estética, o ouro? Qual é o lastro?
Ética e Estética
Em certo sentido, os critérios são semelhantes aos da ética — mas não, isso não quer dizer algo do tipo ou no sentido que, por exemplo, filmes cheios de violência não sejam recomendados para quem tem bom gosto, porque não são “bonzinhos”.
Os critérios clássicos da ética são caráter, princípios e qualidades tais como as virtudes e os deveres, e a condução da vida para um fim examinado, isto é, uma boa vida, uma vida bem vivida. Ver ou mostrar a violência pode ser glamurização, mas pode ser denúncia ou qualquer outro tipo de reflexão que não nos leve a aprovar a violência — isso não se coaduna com ética, pelo menos não quando o “negativo” é um valor em si próprio, ou quando é um objeto de curiosidade frívola ou sensacionalismo.
Com relação ao caráter, no mundo atual temos a ideia de que construímos a nós mesmos, e isso se espelha em nossa ideia de que somos livres para agir, e também livres para gostar do que quisermos. Mas isso não é bem assim: nem bem conseguimos ser como queremos ser, e tampouco conseguimos projetar a imagem que gostaríamos de projetar.
Nos contentamos com ser aquilo que conseguimos, em meio a ideias de status, autovaloração e autoestima, beleza física (nossa e de quem nos rodeia) e autoimagem, nossa incapacidade de muitas vezes surgir como algo minimamente coerente, compassado ou adequado. Sempre dados a impulsos de dominar ou ser dominado esteticamente: impor a preferência perante os outros, ou ser um maria-vai-com-as-outras.
Caráter seria reconhecer o que realmente somos e expressar isso no mundo. Isso envolve descascar todas as expectativas e todos os adereços desnecessários, credenciais e tudo mais, e descobrir uma jóia interna que é uma espécie de sanidade sem flutuações. Quando esse eixo é encontrado, todo o resto pode se agregar como for, que uma integridade básica se mostra presente. Isso embeleza a coemergência de apreciação e expressão.
Enquanto não reconhecemos essa integridade, no entanto, somos um amontoado de impulsos arbitrários. Em outras palavras, não temos caráter quando não sabemos quem somos.
Caráter está ligado a duas outras palavras que já usei, coerência e integridade. Coerência significa que a energia não está dispersa, mas que há um foco e que os padrões conflituosos estão suficientemente domados de forma que nada seja feito, ou que saia “qualquer coisa”. E integridade representa certa unidade suficiente de motivação numa linha temporal, e determinada equanimidade com as diversas experiências, sem pré-julgamentos. Isto é, não flutuar a ponto de perder o tino.
Com relação às virtudes, elas envolvem sempre a abertura de tentar entender a “temperatura do outro”. Seguindo o exemplo do início do texto, quando alguém nos pergunta, ou quando expressamos, que a temperatura da água onde estamos é agradável, não usamos nem um critério totalmente subjetivo, nem um critério estritamente objetivo. Subjetivo e objetivo são, no domínio ético e estético, a violência da separação entre eu e outro.
A boa vontade é o esforço diante de se inteirar do, e não aceitar ou rejeitar o, critério do outro. Isso é virtude. Não é aceitar o critério, ou impor outro critério “porque é só o que está disponível” (é só o que entendo). É conhecer, em algum nível, de alguma forma, com alguma boa vontade e flexibilidade, a relação daquela pessoa com o frio e com o calor.
E se não conhecemos, dizemos “para mim está bom” — e não há dano, se só inteiramos o outro, sem tentar convencê-lo disso ou daquilo. Quer dizer, podemos tentar convencer, mas apenas quando assumimos a boa vontade de estar espelhando nosso conhecimento dele — ou simplesmente inteirar o outro, quando não nos arriscamos a esses tipos de juízo.
Não precisamos, em termos de estética (nossos gostos, ou o que produzimos) tentar agradar os outros, mas precisamos ter em mente nosso impacto perante eles, e se colocar nos seus lugares.
E com relação ao fim, é reconhecer que o engajamento no hedonismo, se tornar um sibarita, ou algum outro extremo semelhante, não produz contentamento verdadeiro ou de longo prazo. É examinar o que leva ao contentamento verdadeiro e de longo prazo (numa história de vida pessoal, e não num evento discreto), e agir nessa direção, gerar esses critérios.
Isso envolve reconhecer a mortalidade, fases da vida, como melhor lidar com as circunstâncias que surgem, sejam elas avassaladoras ou quase irrelevantes, e assim por diante. Se ver no tempo, e se ver como um ser dotado de um fim — em ambos os sentidos, de acabar e de ter uma finalidade (porque se coloca em perspectiva, porque se examina longitudinalmente).
Na verdade, não precisamos separar caráter, virtude e felicidade. Há uma sinergia entre os três, e os três produzem os critérios. Tantos os critérios de ação, quanto o critério estético.
Bom Gosto
Bom gosto, portanto, é examinar a experiência estética de acordo com três elementos entrelaçados:
1. expressão, isto é, não arbitrariedade;
2. presença, isto é, reconhecer o mundo, estar ciente das prerrogativas e expectativas — e agir em termos disso, não sempre “a favor” ou “contra”, mas levando tempo, espaço e outras consciências em consideração;
3. horizonte, isto é, a totalidade da experiência, e a reflexão incessante em termos das inexorabilidades e possibilidades.
Com base nesse conceitual holográfico, produzimos uma heurística que não separa ética e estética, e tampouco separa as possibilidades de considerações reflexivas de outros tipos: metafísica, por exemplo, se é que a metafísica é possivel — ou espiritualidade, se o místico e a experiência direta faz sentido, e assim por diante — ou considerações sociais, científicas, políticas, econômicas, práticas, psicológicas e assim por diante.
Mau Gosto
O que é vergonha alheia? O que é prazer com culpa (guilty pleasure: gostar de coisas que não admitiríamos publicamente gostar)? Por que, na adolescência, gostávamos de tantas coisas que hoje não são tão relevantes no nosso panorama intelectual e estético? Por que viciamos em séries de TV? Por que gastamos dinheiro em objetos de fetiche, como caixas de discos remasterizados, pôsteres, guitarras? São formas de reificar um ou outro viés, ou surgem de critérios, de depuração?
Quando não somos capazes de justificar nossos gostos, ou quando eles se transformam em apenas obsessões ou vários tipos de displicência, da falta de paciência do “isso é intelectual demais para mim” até o “não quero que meus amigos me vejam gostando disso”, aí precisamos examinar nossos hábitos.
Gostar não é “gosto porque gosto”. Significa ser capaz de apreciar.
Ser capaz é entender por que aprecia, por que aquilo ressoa. Mais do que isso, tendo reconhecido a razão que faz determinado conteúdo ressoar, ser capaz de empunhar isso com a atitude correta — não ser um motivo de vergonha, bem como não ser um motivo de bravata vazia. “Isso ressoa porque eu sou assim, e isso é bom”. Mas sem o elemento desagradável e espalhafatoso de esfregar a si próprio no rosto dos outros que ouvem essa afirmação: de uma forma que o que ressoa em você esteja aberto e seja viável de ressoar no outro.
E isso não significa agradar, mas incluir e “tratar como adulto”.
Recomendações
E quando se é criticado pelo jeito que se é, ou pelo que se gosta, o que não é muito diferente, isso não pode parecer uma afronta. Mas não pode ser porque nunca poderia haver problema algum em simplesmente se estar ali e se ser o que se é — porém, se algo surge como uma afronta, é preciso examinar se não foram os hábitos, tendências, automatismos, viezes e todas as heurísticas fracas e ausências de heurística que criaram aquela conexão (com aquele conteúdo, com aquela pessoa).
No mundo de hoje, todos somos críticos, todos aceitamos recomendações e vouches — e é uma arte expressar o gosto e aceitar o gosto dos outros. Não é algo óbvio, mas que requer exame, porque embora seja lubrificante social, não deveria ser apenas isso. Não é mera etiqueta ouvir com atenção e depois desconsiderar, ou, se aquela pessoa nos importa por algum outro motivo, estudar seus gostos para criar uma conexão artificial. Podemos usar essa oportunidade para penetrar na ética e na estética, e engajar o outro heuristicamente. Podemos desafiar, mas mais importante que isso, surpreender.
Nos tempos de hoje, se alguém recomenda um livro (que é uma experiência estética que demanda algum tempo e dedicação) e você efetivamente o lê, isso por si só é sinônimo de respeito. E então você se pergunta o que realmente sentiu com relação ao livro, e não o elogia apenas para angariar simpatia, nem muito menos o critica para brincar de birra, mas expressa uma opinião sincera — o que de pior pode acontecer?
O outro levar o próprio gosto ou aquele livro a sério demais.
E o que você fala dentro de um contexto de liberdade efetiva pode vir a ser fruto de quebra de viezes arraigados que porventura estejam emperrando a heurística estética daquele indivíduo. Você não precisa exagerar no candor, mas o candor usado com bom gosto é adorável. E assim vamos aprendendo a lidar uns com os outros em termos de tentar partilhar nossas experiências internas.
Paciência e cultivo da atenção
Vamos encontrar conteúdos difíceis, de outros tempos, de pessoas muito diferentes de nós mesmos. E precisamos ter paciência com o que parece chato.
Muitas vezes as coisas são efetivamente chatas e não conseguimos nos conectar com algo porque não há muito com o que se conectar. Por outro lado, há um bocado de conteúdo que não é acessível de cara, que exige um comprometimento inicial muito maior, possui uma “curva de aprendizado estética” mais íngreme.
Muitas das coisas que são tidas como “clássicas”, e os medalhões culturais consagrados, são assim. Não que absolutamente todas elas valham a pena, mas em geral, vale fazer o esforço para descobrir. A recomendação é muito forte, a pressão da cultura como um todo (ao longo de séculos) leva naquela direção — então cabe analisar.
Há uma frivolidade e trivialidade na pomposidade de alguém que desconsidera a recompensa emocional fácil de um filme popular, mas há igual superficialidade no consumidor cultural acomodado e infantilizado, que não tolera esperar ou fazer nenhum esforço perante uma obra qualquer que não se entregue fácil.
Os grandes conteúdos, de forma geral, exigem um processo de sedução estética — uma familiarização cuidadosa e sistemática, misturada com um tipo de interesse delicado, leve, que não abandona o objeto mas não se força perante ele.
A paciência como princípio estético diz respeito a desenvolver a capacidade de manter a atenção em meio ao tédio que, na maior parte das vezes, surge porque não conseguimos obter um barato imediato com aquele objeto. Se como que não “entra pela veia”, não serve. Mas isso é mera pobreza interior. Se a recomendação é boa o suficiente, e temos um bom motivo em termos de priorização e uso do tempo para engajar aquele conteúdo, e já que começamos a fazê-lo, o ideal é fazer direito. Isto é, prestar atenção.
Isso é algo que se aprende. Quando se é jovem, tudo é mais difícil. Mas algumas pessoas desenvolvem maturidade e conseguem apreciar coisas menos imediatas, e algumas vezes mais difíceis. É apenas um tipo de maturidade estética.
A retroalimentação do pensamento estético
Pensar a estética não se faz sem estética. O texto tem sua cara, ele vem de uma cultura e um momento histórico — e de um autor que tem suas idiossincrasias. Um manual de harmonia e proporção, explicando o que é beleza para gregos e renascentistas (com suas variações sobre um mesmo tema clássico), surge como uma tentativa mais ou menos neutra de estabelecer princípios estéticos.
A reação àquela aparente neutralidade, aquela explicação do belo que se dá dentro de uma peculiaridade que não quer se reconhecer como peculiaridade, é que transforma “o clássico” numa estética particular.
Por exemplo, a ruptura, a vanguarda, o choque, a ironia — os elementos pós-modernos de paródia ou referência, tão prevalentes em nossa cultura ainda hoje, e que surgem como ondas de “o que esses artistas vão inventar agora”, ao ponto que já estamos cansados da invencionice, e voltamos ao naif, e imediatamente voltamos a ruptura, num único dia, ou algo assim.
Tem a ver com o fim do tempo, e o fim de conseguirmos, propriamente, traçar a genealogia do que se está dizendo. Há pensamento original em um texto como esse? Dificilmente, ainda que eu mesmo, que o escrevi, fora alguma terminologia técnica, não reconheço os autores que misturei. Mas há nisso expressão, presença e horizonte aqui?
Como tenho prazos, sou compelido a escrever, preciso pagar contas, temo escrever autoajuda, ou nada de grande valor. Ainda assim, tiro um baratinho disso tudo. Basicamente, a pretensão é tão descomunal que chega a ser despretensiosa de tão deslocada nesse vale de lágrimas que é o mundo, e perante as expectativas do mau gosto, que são abundantes. Embora esse final fosse, efetivamente, desnecessário, a gente tem que amarrar o texto de algum jeito.
Mas o título, tudo que os comentaristas geralmente lêem (oi você que veio ver o final do texto!), deve render alguma galhofada.