Como tantos brasileiros que têm assistido aos debates da campanha presidencial, a advogada Luciana Oliveira, 38 anos, dois filhos, testemunhou a cena em que Aécio Neves anunciou ao país que o pai do programa Bolsa Família é o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Se muitos espectadores reagiram com perplexidade, Luciana ficou indignada. “Eu sei que isso não é verdade,” explica ela, com autoridade de quem foi coordenadora-geral de Benefícios do Bolsa Família por oito anos. “O Bolsa Família nasceu como um projeto para vencer a pobreza. O Bolsa Escola nada foi além de remendos, em época eleitoral, de um governo que estava com a popularidade baixíssima.”
Formada em Direito, com pós-graduação em Direito Trabalhista, Luciana acompanha os programas de transferência de renda do Estado brasileiro há 13 anos. Tornou-se funcionária do MEC pouco depois do Bolsa Escola ter sido lançado. Foi para o Ministério do Desenvolvimento Social, quando o Bolsa Família teve início. Como coordenadora-geral de benefícios, tinha a responsabilidade de conceder benefícios — e também suspender sua execução, quando era o caso. Também tinha função de prestar esclarecimentos a órgãos de fiscalização, como Tribunal de Contas da União e a Controladoria Geral da União, sempre que se fazia necessário.
Lembrando o costume de Aécio e outros dirigentes do PSDB em reivindicar a paternidade do Bolsa Família, depois de terem passado anos fazendo todo tipo de crítica ao programa, ela se diz revoltada: “PSDB pai… O Pai que reivindica a paternidade de seu filho na certidão, mas que só aparece “pra visita” de quatro em quatro anos, à época das eleições?” Na tarde de ontem, emocionada (“amanhã o Bolsa Família completa 11 anos”) ela distribuiu uma carta aberta a Aécio Neves, que você pode ler, na íntegra:
CARTA ABERTA AO Sr. AÉCIO NEVES (E AO PSDB)
Escrevo essa carta direcionando-a a seu partido político, o PSDB, mas tendo o senhor como destinatário, já que atualmente o representa na disputa pelo cargo máximo da nação – a Presidência da República no Brasil.
Permita-me, antes de tudo, me apresentar. Eu trabalho para o Governo Federal há 13 anos. E isso não é ironia, é apenas uma coincidência. Fui contratada para o Governo Federal, pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso, para a gestão do Bolsa Escola e, em razão da minha capacidade e contribuição técnica, fui mantida quando houve a criação do Programa Bolsa Família. E é sobre ele que eu quero falar com o senhor.
Não sou funcionária pública concursada e já ocupei os mais diversos cargos sob as mais inusitadas formas de contratação, especialmente quando prestava serviços ao MEC. Já prestei serviço como pessoa jurídica. Atuei como consultora do Pnud. Fui terceirizada e, agora, ocupo um cargo de confiança. E em todas as vezes, com alguma variação na autonomia e competência, exerci o mesmo papel, me tornando especialista na gestão e execução de programa de transferência de renda condicionada. Aliás, me refiro aqui ao que hoje é considerado o programa de transferência de renda condicionada mais bem-sucedido e conceituado do mundo.
Sr. Aécio, eu passei a integrar a equipe do Bolsa Escola (BES) em novembro de 2001, sete meses após a sua criação, e o que eu encontrei lá foi uma equipe muito determinada a fazer com que pouco dinheiro chegasse às mãos de poucas famílias. O cadastro do BES era uma vergonha: incompleto, não aceitava alterações ou atualizações cadastrais e era completamente off-line. Uma vez registradas as informações nele, elas nunca mais seriam modificadas, mesmo que uma daquelas crianças – Deus nos livre – viesse a óbito.
Com relação à identificação de seus membros, nele encontrávamos espaço para cadastrar apenas a mãe e três crianças da família, independente da quantidade de filhos/membros que vivessem sob aquele teto. Neste momento tinha início, infelizmente, uma terrível desigualdade familiar fomentada pelo Governo Federal. Ao realizar o cadastro, a mãe era obrigada a “escolher” quais seriam seus três filhos que teriam mais chances de sucesso escolar a fim de não perder mais adiante o benefício, já que seria somente dessas crianças, supostamente, cobrada a frequência escolar. E explico o porquê do supostamente: nunca conseguimos cobrar frequência escolar no BES, mas volto a falar sobre isso mais adiante.
É claro que suspeitávamos – e pude comprovar, nas vezes em que visitei famílias beneficiárias – que as demais crianças, quando havia, ficavam automaticamente “desobrigadas” da escola pelo grupo familiar. Erámos confrontados então com o seguinte cenário: 1) três crianças que eram obrigadas a frequentar as aulas para que a família não perdesse o benefício e; 2) as demais crianças que saíam para trabalhar para engrossar a renda familiar, quando não ficavam em casa.
Não serei leviana – usando um termo que o senhor emprega com certa frequência – de dizer que todas as demais crianças sempre agiam assim. Muitas famílias se empenhavam em tentar educar todas igualmente. Mas o Brasil vivia uma desigualdade social descomunal àquela época e, infelizmente, a renda trazida pelas crianças “sobressalentes” – aquelas que não eram possíveis registrar em razão da deficiência do próprio cadastro do Programa – era muito necessária para o sustento da família. Ora, se o Governo Federal não as inclui no beneficio e não controla sua frequência escolar, esse cenário era de se esperar…
Mesmo assim, o trabalho da equipe foi árduo durante todo o tempo. Fizemos mutirões de inclusão de famílias, de concessão de benefícios – processo que à época NÃO era automatizado – e muitos, muitos mutirões para “sanear” as adesões dos municípios, cuja lei obrigava ser formal. Participação social? Completamente inexistente… Muitas vezes a equipe ligava pra pedir alguma informação a um “conselheiro” designado para tal função e não foram raras as vezes em que ouvíamos: “Eu, do conselho social do Bolsa Escola? Não sei do que você esta falando, ninguém me avisou”. Nomeações à revelia, para cumprimento da lei. A ordem era: FAÇAM! INCLUAM! E RÁPIDO!
Mesmo com a determinação política do então Presidente FHC e de todo o esforço da equipe – muito competente e determinada – envolvida, nunca chegamos à casa dos cinco milhões de famílias atendidas. Foram dois anos inteiros de BES e não chegamos aos cinco milhões.
Naquele momento, o quadro, então, era o seguinte:
- No Bolsa Escola (R$ 15,00 mensais pagos por criança até um limite de três, desde que tivessem entre 7 e 15 anos – educação ): 4,7 milhões de famílias beneficiárias;
- No Bolsa Alimentação (R$ 15,00 mensais pagos por criança até um limite de três, desde que tivessem entre 0 e 6 anos – saúde): 1,6 milhão de famílias.
A verdade é que nunca houve real investimento em Programas Sociais em nosso país até ele ser dirigido por uma pessoa “do povo”. Essa é a verdade que eu vivi trabalhando pra o Governo Federal todo esse tempo. O Bolsa Escola não foi uma estratégia de combate à pobreza e muito menos de incentivo à educação no governo FHC. Nada foi além de remendos, criados às vésperas das eleições, por um governo com uma popularidade baixíssima. Poucos têm conhecimento disso, mas a alcunha de “Bolsa Esmola”, muitas vezes utilizada pelo seu partido para caracterizar o Bolsa Família, de fato, era o apelido daquele Bolsa Escola lá atrás. Aquele que sim, é filho seu.
Em 2003 teve início o primeiro mandato de Lula, eleito no ano anterior. E junto com ele passamos a ouvir pelos corredores a ideia de que o melhor mesmo seria ter um programa que atendesse toda a família. Que a olhasse como um único e indissolúvel ente, e que era isso que se desejava fomentar, auxiliar e amparar.
É claro que havia uma escolha a ser feita sobre as famílias que já estavam recebendo seus benefícios. E a decisão foi UNIFICAR os programas já existentes para, primeiro, não descontinuar os pagamentos pra gente já tão sofrida e, segundo, porque já havia a CLARA idéia de que aquelas pessoas eram mesmo parte do público que o Programa Bolsa Família deveria atender. Unificar foi o mecanismo para evitar que elas perdessem seus parcos benefícios até se adaptarem às novas regras.
Poderia ali, naquele momento, ter-se matado os programas anteriores e teria sido, confesso como técnica que ajudou a implementar o que veio depois, infinitamente menos trabalhoso. Ao decidir pelo recurso técnico de “unificar” e não “extinguir” as bolsas para a criação do novo programa – que era, DE FATO, um Programa de Transferência de Renda com investimento político e financeiro e intenções claras e reais de combate à pobreza – o governo Lula começava a mostrar qual era sua real prioridade: o povo. Independente do “custo político” que isso pudesse ter adiante – e veja bem, não é que ele tinha razão? – a escolha foi pelos beneficiários, pensando neles.
O objetivo era claro, alcançar as famílias pobres, as excluídas por mais de 500 anos, as que nunca haviam sido, de fato, vistas por ninguém, as que nem “existiam” no mundo jurídico porque estavam alijadas até mesmo do processo de identificação de pessoas – muitas delas não tinham sequer certidão de nascimento.
E olha, quando tudo se juntou, Bolsa Escola, Bolsa Alimentação, Cadastro Único – aliás, abro um parêntese aqui para falar que precisamos, em outra oportunidade, conversar sobre ele, o que ele era quando foi criado e o que é hoje, já que senhor tem mostrado diuturnamente que não faz ideia nem do que se trata – arrumar o remendo foi doído, foi trabalhoso, foi hercúleo, quase heróico.
Caro candidato, com todo humilde conhecimento que tenho sobre o assunto, afirmo que o Bolsa Família não é, nem de longe, a continuidade de nada dos programas anteriores. Eles são completamente diferentes desde a sua concepção e, principalmente, da sua intenção para com o povo brasileiro.
O Bolsa Família olha pra todos os membros familiares e permite oferecer atendimento a todos, de acordo com suas necessidades, carências, expectativas. O Bolsa Família reconhece as capacidades dessas famílias e investe nelas. No Bolsa Família há o acompanhamento familiar pelo CRAS – Centro de Referência da Assistência Social. No Bolsa Família há o acompanhamento da agenda de saúde da família toda, o que inclui o acompanhamento da gestante, da nutriz, do calendário de vacinação de todas as crianças até 7 anos de idade, acompanhamento da pesagem, da suplementação de vitamina A e ferro.
No Bolsa Família, há o acompanhamento real da frequência escolar de TODAS as crianças e jovens do grupo familiar, independente da quantidade de benefícios que aquela família faz jus, assim como da quantidade de membros em idade escolar. E se não tiverem frequência adequada, de acordo com o que a Lei do Programa – aquela que senhor diz pretender criar em seus programas eleitorais, mas já existe desde 2003 – , a família toda tem os seus benefícios averiguados, bloqueados e podendo ser até suspensos. Sim, eu estou dizendo isso mesmo: se uma família tiver 15 crianças, todas as 15 devem ir pra escola e serem acompanhadas na frequência escolar. E se houver a ausência da escola não justificada de uma delas, isso pode impactar no benefício de toda família. O senhor percebe alguma diferença para o Bolsa Escola? E para que fique claro, não estamos falando de “evolução”, estamos falando de um Programa que nasceu com esse objetivo, que foi concebido assim!
Sabe o que isso nos diz? Que todas essas crianças devem ter acesso igualitário à escola, que todas devem frequentar as aulas e que todas, absolutamente todas, devem se qualificar para romper esse ciclo de pobreza que faz com que sua família precise do benefício do governo. Isso, Sr. Aécio, é investimento humano. Isso é, de fato, o que a oposição ao Programa – e aqui há um mérito gigantesco para o PSDB – chama tão jocosamente de “ensinar a pescar”. Oferecendo a todas as crianças e jovens igualdade de condições para o ensino, consequentemente, eles terão melhores oportunidades no futuro.
O Bolsa Família atende hoje mais de 14 milhões de famílias e 52 milhões de pessoas! Ele é o Programa de Transferência de Renda Condicionado mais respeitado, estudado, reverenciado, copiado no mundo todo. Constantemente recebemos aqui no Ministério corpos técnicos de alto escalão do mundo inteiro para “conhecer e aprender o que fazemos”. O Brasil, por intermédio do Bolsa Família e do que podemos hoje chamar de Cadastro Único, criou e exporta tecnologia social.
O Bolsa Família possibilitou ao Brasil cumprir a meta de Objetivos do Milênio, da ONU, para erradicação da fome e da miséria muito antes da meta estabelecida para o resto do mundo, que seria 2015.
O Bolsa Família tirou o Brasil do mapa da fome pela primeira vez desde seu descobrimento, em 1.500.
E principalmente, o Bolsa Família, que já foi pra muitos fonte exclusiva de “renda”, a diferença entre ter ou não o que comer no prato, hoje é renda complementar de milhões de famílias. Talvez o Sr. não saiba – e deduzo isso pelas declarações da maioria dos seus eleitores, que, imagino, refletem o conhecimento do grande líder – mas cerca de 76% dos adultos que recebem Bolsa Família trabalham no mercado formal brasileiro, o que comprova que o valor do benefício é complementar.
E aqui eu chego ao ponto que realmente me motivou a escrever essa carta ao senhor. Em recente debate presidencial – parte do processo democrático adotado para a escolha do nosso próximo presidente do país – eu ouvi o senhor, repetidas vezes, dizer que há o DNA do PSDB no Bolsa Família, já que ele surgiu da unificação dos programas anteriores.
Senhor Aécio Neves, não há.
Não há nem de muito longe: nem na concepção, nem nas regras, nem na gestão, nem nos objetivos, muito menos na vontade política e investimentos, em nada. Simplesmente não há. Até houve a mínima tentativa, com a unificação, de se aproveitar tecnicamente algo que pudesse ser útil ao novo programa que nascia, mas foi completamente inútil o esforço. A unificação, ao final, só se mostrou mesmo eficiente para o que mais interessava: proteger as famílias da descontinuidade dos pagamentos. Não deixar faltar a comida no prato, em português bem claro – que se faz necessário para quem nunca passou por algo sequer parecido –, porque como sabemos desde sempre a fome não espera. Fome não espera implementação de programa. Não espera melhoria de gestão, não espera melhoria de sistema. Simplesmente, não espera.
Eu poderia elencar aqui ainda muitos – muitos mesmo – argumentos para mostrar que o Bolsa Família não passa nem perto daqueles programas que foram unificados lá em 2003. O Bolsa Família foi, mas forçando muito a barra, o primo que nasceu e usou, por dias, fraldas emprestadas dos seus outros mais velhos. Mas que cresceu tanto, e tão rápido, e que teve “pais” tão diferentes e responsáveis decidindo sobre sua alimentação, cuidados diários, educação e crescimento, que imediatamente se destacou ao mundo.
E ainda assim, caso o senhor insista muito em fazer qualquer relação com o que tinha no Brasil e o que temos hoje, e em requerer a paternidade do Bolsa Família – para o PSDB, que aqui eu personifico na sua pessoa para fins, com sua licença, didáticos do restante do parágrafo – eu tenho a dizer que: tome muito cuidado.
Porque se fosse declarado mesmo o pai da criança, que tipo de pai o senhor acredita que teria sido para o seu filho? Um pai que “bate” no filho no Congresso Nacional, chamando-o de fomentador de vagabundo, de gente preguiçosa? Um filho que até dias atrás era “esmola” pra quem não quisesse trabalhar? Seria um pai que nutre tamanho desconhecimento sobre seu filho ao ponto de propor pra ele regras que já existem há mais de 10 anos?
Onde o senhor esteve todo esse tempo? Onde o Senhor esteve quando precisamos aprovar modificações necessárias para o seu pleno desenvolvimento, a cada vez que precisamos apoiá-lo em seu crescimento natural? E o senhor como representante do povo no Congresso Nacional tinha todas as ferramentas para apoiá-lo e não o fez.
O Bolsa Família não tem paternidade, ele é do povo brasileiro. Mas mãe ele tem! 14 milhões de mães! Mães pobres, em sua maioria negras, antes excluídas por uma sociedade patriarcal e machista. Mulheres muito guerreiras. Algumas dessas mulheres conseguiram se livrar, inclusive, da violência doméstica por causa do Bolsa Família. Se livraram de condições de trabalho análogas à da escravidão graças ao Bolsa Família. Certa vez, lá em 2007, eu conheci uma senhora que relatou “ter se sentido mais mulher aquele mês” porque tinha sobrado dinheiro pra comprar um batom. Eu tenho certeza ABSOLUTA de que o senhor não faz a menor ideia do que isso significou pra ela. Eu mesma não sabia, até ouvir aquele relato e a alegria com que ela contava.
E eu posso passar dias inteiros contando coisas que ouvi, vi e vivi junto dessas famílias. Ou que ouvi de alguns dos 5.570 gestores municipais que “tocam” aguerridamente o Programa lá nos municípios. Essas histórias não são estatística, pois graças ao Cadastro Único que nós construímos a partir de 2005, elas têm e nós sabemos quais são: nome, sobrenome, data de nascimento, filiação. São gente de verdade!
PSDB pai… O Pai que reivindica a paternidade de seu filho na certidão, mas que só aparece “pra visita” de quatro em quatro anos, à época das eleições?
Na verdade o que eu via, até dias atrás, era o senhor e seu partido enxovalhando o nome do Programa da maneira que podia. E agora, tal qual faz “pretenso herdeiro” de pai morto, se declara parente para recolher a herança.
Mas veja bem, sr. Aécio, aqui nesse processo de “inventário”, o juiz é o povo brasileiro e ele SABE que o senhor não tem nas veias o sangue dessa família. Não tente se aproveitar de gente sofrida e das suas boas intenções. É feio, é danoso, é quase criminoso.
Não obrigue essa gente, que já tem olhos e ouvidos bem abertos; que reconhece sua autonomia pra lutar pelos seus interesses sem medo algum ter que dizer ao senhor que aqui nesse “processo”, ela não te reconhece. Porque conhecendo-as como conheço, não tenho dúvidas, elas dirão.
Sinceramente, Luciana de Oliveira.
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