Do Manchetômetro
No dia 17 de maio dois eventos potencialmente significativos ocorreram. O maior jornal francês – Le Monde – publicou, na íntegra e com grande chamada de capa, uma carta de Lula em que reafirmava e explicava sua candidatura à presidência, mesmo estando preso. No mesmo dia, em homilia durante missa no Vaticano, o papa Francisco criticou o papel da mídia na difamação e, consequentemente, na ocorrência de golpes de estado.Além de se tratar de dois personagens de inconteste popularidade no Brasil e no exterior, ambos eventos são sensíveis para a mídia brasileira por outras razões: o primeiro por dar a Lula um espaço bem diverso daquele que a grande imprensa nacional lhe vem dando, e o segundo, por ser uma crítica frontal à própria atuação da mídia.
Em seu extenso artigo no jornal francês, Lula explica o porquê de sua candidatura, elencando resultados positivos de seus mandatos em relação aos do atual governo, reforçando que sua prisão é consequência de perseguição judicial aliada à sistemática campanha contra o seu governo movida pela mídia brasileira, em especial pelas Organizações Globo.[1]
A despeito deste importante jornal francês ser frequentemente citado na mídia brasileira, o texto de Lula, outro personagem onipresente nas páginas de nossa imprensa, foi praticamente ignorado, com exceção de uma matéria no Estadão[2] e de referências em pequenas notas divulgadas no portal do mesmo jornal, dedicado à cobertura das próximas eleições – R18.[3]
A Folha de S. Paulo não deu matéria sobre o assunto, exceto pela de Nelson de Sá que contém apenas foto da capa do jornal com uma legenda explicando que o artigo foi publicado pelo Le Monde.[4]
Já n’O Globo, não houve nenhuma menção à carta de Lula. É irônico notar que poucos dias antes, em 2 de maio, o jornal havia conferido grande autoridade ao Le Monde em matéria cujo título foi: Ex-diretor do ‘Le Monde’ diz que liberdade de informação está em risco.[5] Claro que nesse caso, a citação foi usada para reafirmar a apropriação que a grande mídia brasileira faz do valor da liberdade de expressão como se correspondesse à negação de qualquer regulação das ações daqueles que têm a propriedade dos meios de comunicação.
Ainda que possamos supor coincidência, no mesmo dia em que o Le Monde publicou o texto de Lula reafirmando a ocorrência de um golpe parlamentar no Brasil com suporte de uma campanha sistemática de difamação por parte da grande imprensa, o papa discursou sobre difamação e o papel da mídia em promover golpes de Estado. Ainda que o Sumo Pontífice seja um personagem de grande projeção, assim como Lula, com referências quase diárias na mídia, esse evento foi também praticamente ignorado. Em sua edição impressa, a Folha de S. Paulo publicou uma pequena matéria informativa – apenas texto – e sem nenhum destaque sobre a homilia do papa[6]. No dia anterior, na versão online,[7] uma matéria já havia sido divulgada, que destacava, em sua totalidade, trechos da fala acompanhados de uma foto, batida no dia 16 de maio 2018, que retratou o momento em que o vento havia levantado parte da roupa do papa e coberto o seu rosto. A imagem sugere confusão ou mesmo vergonha, e tem o claro intuito de desqualificar os argumentos de Francisco.
Uma foto semelhante foi o conteúdo exclusivo de uma nota publicada no portal G1,[8] em 2014. Mas, novamente, ainda que o papa Francisco seja um personagem de absoluta relevância, a ponto do vento em sua roupa ter merecido espaço anos antes no portal G1, O Globo não fez nenhuma menção à homilia do dia 17 e a sua crítica à mídia. Em vez disso, publicou uma matéria também sobre o pontífice, mas que abordava outro assunto: uma mensagem divulgada pelo Vaticano no mesmo dia 17 com críticas ao “capitalismo desenfreado”.[9]
Também o Estado de S. Paulo não publicou qualquer matéria sobre o discurso do papa. Apenas no portal BR18, uma matéria[10] afirmava que “lideranças dos partidos de esquerda no Brasil estão utilizando o sermão do papa Francisco em missa no Vaticano nesta quinta-feira para reforçar a ideia de que ocorre no País um ‘golpe parlamentar-midiático’”.
O lema do jornal New York Times, All the News That’s Fit to Print, traduz um princípio fundamental do jornalismo moderno que a grande mídia brasileira declara, repetidas vezes, emular. Contudo, como os exemplos comentados acima mostram ela falha fragorosamente nesse quesito. Vemos aqui duas evidências claras de agendamento, ou seja, da prática de escolher, de acordo com interesses corporativos ou políticos, as matérias que são e as que não são publicadas, mesmo quando seu potencial noticioso seja óbvio. Do ponto de vista da saúde do debate público em nosso pais o problema é mais grave, contudo. A propriedade dos meios de comunicação no Brasil é altamente oligopolizada. Quando os três principais jornais do país, e as empresas de comunicação a eles ligadas, agem em grupo, o que tem sido a regra, o potencial de distorção na formação da opinião pública é enorme. É vão esperar que empresas privadas possam prestar contas em público de suas práticas de agendamento e de enviesamento do noticiário. A solução para problema só pode vir pela pluralização e democratização da comunicação. A questão é como chegaremos lá.
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