Na Brasília cinquentona, elefante voa e mídia é cega


A imprensa considera-se como uma instituição de múltiplas utilidades. É a voz de hoje, a guardiã do ontem e a fomentadora do amanhã. No limite, a imprensa se autoproclama a própria história. Afinal, é nas suas páginas que a historiografia vai buscar a maior parte dos seus dados.

Pois bem, na história de Brasília, 50 anos, a imprensa ingressou tarde. Como numa peça shakeasperiana entrou no fim da relação dos papéis. Desceu àquela lista em que são mencionados os figurantes: mendigos, feirantes, prostitutas e etc. No drama de Brasília, a imprensa fez o papel de “etc.”.

Apenas compôs o fundo contra o qual se cumpriu o destino dramático da agora velha nova Capital. Elefantes voaram nos céus de Brasília. Elefantes dançaram o rebolation nas cercanias das arcas brasilienses. E a imprensa, vigilante, não viu.

Fora de suas cidades-sede, os meios de comunicação mantêm em Brasília suas maiores e mais aparelhadas redações. Descobriu-se que só tinham olhos para o Planalto, o Congresso e a Esplanada. Não viram a sede do governo local. Não viram a Câmara Legislativa.

No seu pedaço político, Brasília nunca inspirou confiança. O regime do "separa aí os meus 15%" começou com a chegada das máquinas das grandes empreiteiras.

Sempre se disse que aquela ilha, rodeada por coisa nenhuma, daria errado. Era como se a cidade de Juscelino convidasse ao delito.

A ausência de multidões seria um estímulo à "propinocracia". Não haveria quem gritasse "pega ladrão". A falta de esquinas facilitaria a fuga.

Mas a imprensa concentrou-se apenas nos malfeitores enviados a Brasília pelos eleitores de outros Estados. Súbito, a Capital ganhou autonomia política. E suas urnas passaram a mimetizar os vícios das urnas de alhures.

Sobrevieram rorizes, arrudas e seus durvais... Tudo como em outros quintais. E a imprensa, concentrada nos escândalos federais, frangou os locais.

A imprensa viu Collor. Pressentira nele um reforço do estereótipo de Brasília. Nascera no Rio. Fizera-se em Alagoas. Mas era como que um filho da Capital.

Collor passara a adolescência na cidade. Tivera os olhos vazados por aquele excesso de luz; as narinas invadidas por aquele ar seco. Enlouquecera. Chegara à Presidência com a ilusão de que presidiria. Não conseguiu administrar nem a própria loucura.

A imprensa viu FHC. Notou que, a pretexto de inaugurar o moderno, o tucano chafurdou no arcaico. Cavalheiro de uma nova ordem, FHC desfilou pelos salões de Brasília de mãos dadas com o centrão. Sabia que o parceiro não manejava bem os talheres.

Intuía que, cedo ou tarde, poderia submetê-lo a constrangimentos. Mas portou-se como se imaginasse que nada o atingiria.

O casamento fluiu tão bem que aquilo que parecia estratégia assumiu ares de comunhão de estilos. Vieram os jáderes e outros azares.

A imprensa viu muita coisa. Os desvios da Sudam, a “cota federal” da reeleição, as privatizações trançadas no “limite da irresponsabilidade”, isso e aquilo.

Nesse período, a imprensa também viu, pela primeira vez, José Roberto Arruda. Virou crise ao violar, em parceria com ACM, o painel secreto do Senado.

Arruda era, então, uma crise impossível de não ser vista. A crise ocupava a liderança do governo FHC no Senado. A crise tomava café, almoçava e jantava no Alvorada.

O soberano maquinava com a crise formas de estorvar uma CPI da corrupção que o assombrava no Congresso.

De repente, a crise renunciou ao mandato. E ficou invisível. Os repórteres foram cuidar de escândalos mais urgentes.

Pouco depois, a imprensa viu Lula e o PT. A ousadia do petismo custou ao presidente-operário a perda do apuro, da peseudocastidade.

Ainda no primeiro mandato, acumulou-se ao redor do neosoberano um formidável déficit estético. A rotina brasiliense concentrou-se em escândalo.

Num processo autofágico, o incômodo deu origem ao absurdo, que gerou o impensável, que produziu o inacreditável, que soltou a língua do Jefferson.

De repente, Arruda virou governador. E a imprensa não viu os primeiros passos da dança final. Não viu o crescendo devassidão.

Não viu que, sob as obras de Arruda, vicejava o malfeito. Não viu o sinistro balé de deputados enfiando maços de dinheiro em cuecas, meias e bolsas.

O país só tomou conhecimento do que se passava depois que um auxiliar de Arruda, autoconvertido em Silvério do governador, exibiu a cinemateca dos porões.

No festejo opaco dos 50 anos de Brasília, a imprensa deve desculpas à Capital. Frequenta o escândalo como pregoeira do fato consumado.

No necrológio da autocrítica, a imprensa de Brasília exibe uma nudez humilhante. Morreu muda e cega, envenenada pelas manchetes que não viu e silenciou.

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