O presidente da República venceu a inércia e intercedeu pela mulher condenada a morrer apedrejada no Irã, por “adultério”. Antes tarde do que nunca. Por certo sua excelência mediu os prós e contras e concluiu que num ano eleitoral não ficava bem deixar a bola pingando para os adversários chutarem.
Mas assim anda a política. No frigir dos ovos, graças também aos gestos de Luiz Inácio Lula da Silva, as perspectivas da condenada são hoje algo menos piores que ontem, e isso é bom. Ainda que se possa discutir a abordagem meio torta do tema pelas autoridades brasileiras.
Teria sido mais simples e objetivo se Lula pedisse ao amigo Mahmoud Ahmadinejad a abolição dos castigos cruéis, por razões de ordem humanitária. Fazer o simples, o arroz com feijão.
Do jeito que foi dito, com a sugestão de asilo, introduziu-se um viés abertamente político. E aí sim a coisa pôde ser lida em Teerã como ingerência nos assuntos internos deles. O imediato apoio de Washington à iniciativa brasileira não foi à toa. Tampouco é fortuito Lula ter agora relativizado a oferta e enfatizado o aspecto humanitário.
Ainda mais por não haver qualquer vetor político envolvido. É um caso exemplar de puros direitos humanos.
Entrar desajeitado num assunto e tentar corrigir em andamento não é trivial. Especialmente para uma administração acostumada a praticar o relativismo.
Quando interessa, recorre-se até à suposta supremacia das leis internacionais sobre as de cada país nos direitos humanos. Foi assim no debate sobre a Lei de Anistia. Quando não, deixa-se para lá, a pretexto da autodeterminação das nações. Desde que não implique prejuízo político caseiro.
De todo modo, é preciso sempre dar um desconto. País nenhum faz política externa com base principalmente nos direitos humanos, e seria hipocrisia pedir ao Itamaraty inaugurar a moda.
Mas se governos estão de vez em quando, digamos, contingenciados por interesses de Estado, a mesma desculpa não é aceitável quando se observam as organizações partidárias e sociais.
O espantoso aqui não é o governo brasileiro andar cheio de dedos numa questão diplomaticamente complicada. Ensurdecedor no Brasil é o silêncio dos partidos autodenominados progressistas e dos movimentos sociais, especialmente os dedicados a causas femininas, ou feministas.
Será que no multicultural “outro mundo possível” apedrejar até a morte (ou enforcar) mulheres “adúlteras” vai ser permitido? Quem pode esclarecer?
Esquematicamente, o raciocínio oculto permite ser lido mais ou menos assim: “Se Ahmadinejad é aliado de Lula, então as violações dos direitos humanos no Irã, especialmente contra as mulheres, talvez devam ser compreendidas no âmbito da luta global contra o imperialismo norte-americano”.
No jargão clássico, estaríamos diante de uma contradição secundária.
E portanto exigir do regime dos aiatolás que não mate a pedradas (ou na forca) mulheres condenadas por relações extraconjugais seria, nessa lógica, dividir a frente mundial contra os Estados Unidos. E fazer o jogo dos Estados Unidos.
Parece-lhe bizarro? Pois é.
Políticos e governantes que cedem à tentação de posar como moralmente superiores candidatam-se a cair no ridículo. Manejar o discurso dos direitos humanos no terreno das relações internacionais exige cuidados e sofisticação.
Já as organizações da sociedade não estão tolhidas por certos freios, têm mais liberdade para falar e agir.
Assim como têm a liberdade para permanecer no mais desmoralizante dos silêncios.
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