Profetas da chuva


Corro a mão na estante, ao acaso, e dou com o livro "Profetas da Chuva", interessantíssimo trabalho organizado por Karla Patrícia Holanda Martins (Editora Tempo d´Imagem). Um dos muitos favores que me fazia o amigo Celso Machado, então na chefia de gabinete do governador Lúcio Alcântara. Uma delícia, o livro. 

Celso, de respeitável e tradicional família política de Quixeramobim, gostava de cobrir-me de mimos, principalmente livros para consultas que atravessam os tempos, como o episódio de Canudos, do massacre de Antônio Vicente Mendes Maciel (1830-1897), o Antônio Conselheiro e de seus seguidores. Devo-lhe grandes títulos. Agia com essa atenção -- em nome de uma amizade da qual muito me orgulho -- tanto aqui quanto em Brasília, onde chefiou o gabinete do senador Lúcio Alcântara com a competência e a dignidade costumeiras.

A obra que agora releio é dos exemplos mais expressivos de quanto pode o talento congênito aliado à perseverança no estudo e no trabalho desses profetas abençoados pelos céus. O que o leitor mais respira no texto, além das fotografias em P&B saídas da lente iluminada de Tiago Santana, é o forte e pungente sentido humano, vazado num estilo harmonioso, em linguagem fluente, desataviada. 

Os profetas são genialmente caracterizados por entrevistas com Antônio Lima, Peroara, Chico Leiteiro, Chico Leite, Francisco Mariano, João Ferreira Lima, Jacaré, Joaquim Muqueca, Luis Bernaldo, homens que, em pacto com a natureza, olham pro céu, pra aroeira, pro chão rachado, ouvem o canto do sabiá (por decreto de FHC, a ave-símbolo do Brasil), da acauã, olham o ninho do joão-de-barro e fazem notáveis conclusões que os cientistas da chuva não encontram explicações em seus laboratórios sofisticados. 

E diz o Antônio Lima: "Quando vai chover, as formigas se assanham, a terra fica quente, parece mudar de lugar; a formiga vai e tira seus filhos, bota noutro canto alto porque, se chover, vai molhar; os passarinhos pegam a cantar nas suas moradias porque se alegram elogiando a Deus que vai mandar o melhor; o sapo que mora naquele buraco seis meses vai também se alegrar porque vai chover".

Diz o Chico Mariano de Quixeramobim: "O mandacaru quando flora na seca é sinal de chuva. Se não florar, aí não temos chuva". E tem mais: o joão-de-barro, se faz sua casa voltada para o nascente, é seca na certa; se faz para o poente, teremos chuva. Os profetas são respeitados. O povo crê que eles têm um dom quase divino.

Karla Patrícia observa no seu prefácio: "Este sopro, que torna livre o movimento das nuvens, atravessa as narrativas produzidas no sertão. Tais narrativas, ao se deslocarem no sentido da impotência, em nome da importante capacidade de se iludir, de produzir ação e continuidade, reeditam um testemunho de esperança, desejo e sonho". Eu mesmo, nas minhas muitas andanças pelo sertão, em tempos de eleições, puxei conversa com um desses profetas, mascando seu fumo. Era tempo de seca. Mas ele me consolou: "Vai chover, doutor, e muito". 

E choveu, a bem de Deus e do velho sertanejo que depois foi colher seu milho e a sua mandioca. Era de ver a sua alegria de criança sadia e de barriga cheia, entre a queda de cúmulos-limbos e os primeiros raios do sol morno de um bom inverno. Os profetas da chuva, por essa condição, não estão livres do drama do caboclo nordestino, castigado pela caatinga e pela seca, desamparado na sua miséria sub-humana, carregando um fatalismo atávico, e assimilando da terra árida e requeimada, uma sequidão de traços físicos e morais que os insulam no seu mutismo e os nivelam quase com os bichos, plantas e coisas. E eu vos digo: os profetas profetizam; os governos mentem e escondem covardemente sua indiferença e seu descaso pelos nordestinos sob os longos tapetes de Brasília.


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