Câncer

O novo dilema no combate
As drogas que atacam os tumores podem comprometer a saúde do coração. Como evitar que os doentes morram de infarto
CRISTIANE SEGATTO
Rogério Cassimiro
UM EXEMPLO DO DILEMA
José Alencar e a presidenta Dilma no Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo, na quinta-feira. Em novembro, ele infartou por causa do tratamento do câncer
O câncer é traiçoeiro e exige vigilância. Não há, no horizonte, sinal de que um dia surja a cura universal (leia mais). Ainda assim, o avanço do conhecimento sobre a biologia dos tumores e a criação de drogas poderosas deslocaram várias formas de câncer para o rol das doenças crônicas. Em vez de matar em poucos meses, a maioria dos tumores pode ser vencida ou controlada por longos períodos. Desde, é claro, que o doente tenha acesso a diagnóstico precoce e a tratamento de qualidade. Em muitos casos, no entanto, a sobrevivência cobra um alto preço. As drogas contra o câncer podem provocar danos cardiológicos tão graves quanto a própria doença. Um novo dilema se coloca diante dosmédicos: vencer o câncer ou proteger o coração?
Os efeitos indesejados da quimioterapia, da radioterapia ou da cirurgia podem aparecer imediatamente ou anos depois do tratamento. Um dos mais sérios é o comprometimento cardíaco. “Ou cuidamos direitinho do coração do doente de câncer ou o tratamento não adianta nada. Ele deixa de morrer de câncer para morrer do coração”, diz o cardiologista Roberto Kalil Filho, do Institu-to do Coração (InCor) e do Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo.
Famoso por cuidar da saúde dos figurões da República (presidenta Dilma, Lula, José Serra, José Alencar...), Kalil diz viver esse dilema diariamente. Para tentar amenizar o problema, que se tornou uma das grandes preocupações atuais da medicina, ele liderou a criação do primeiro consenso nacional de cardio-oncologia. Os mais influentes médicos das duas especialidades se reuniram para avaliar, com base em evidências científicas, como as drogas oncológicas podem prejudicar o coração. Chegaram a uma diretriz que será adotada em todo o Brasil. ÉPOCA publica com exclusividade as principais conclusões dos especialistas (leia o quadro no fim da reportagem).
Os efeitos indesejados da quimioterapia podem aparecer imediatamente ou anos depois do tratamento
O consenso deverá ser divulgado nas próximas semanas. Ele vai se transformar num livro que será distribuído aos 14 mil membros da Sociedade Brasileira de Cardiologia e aos 1.500 filiados à Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica. As entidades vão pedir ao Ministério da Saúde que as diretrizes sejam adotadas em todas as unidades do SUS. O objetivo é ajustar a dose do quimioterápico, escolher a melhor opção e apontar de que forma deve ser feito o acompanhamento cardiológico do paciente. “As diretrizes brasileiras serão as primeiras publicadas no mundo no campo da cardio-oncologia”, diz Jean-Bernard Durand, cardiologista do MD Anderson Cancer Center, um dos principais centros americanos de tratamento do câncer. “Estamos tentando fazer o mesmo nos Estados Unidos, mas ainda não conseguimos chegar a um consenso porque há diferentes grupos trabalhando nisso. O Brasil fez muito bem em criar um único grupo para analisar todas as evidências científicas disponíveis”, afirma.
Segundo Kalil, cardiologistas e oncologistas vivem batendo cabeça porque não falam a mesma língua. “Todo dia minha equipe é chamada na oncologia do Sírio-Libanês porque algum paciente infartou ou teve algum comprometimento cardíaco por causa do tratamento do câncer.” Um deles foi o ex-vice-presidente José Alencar. Em novembro, ele se internou para mais um ciclo de quimioterapia contra o sarcoma na região abdominal. Como vários esquemas de quimioterapia falharam, o oncologista Paulo Hoff decidiu adotar a droga oral Glivec. Do ponto de vista oncológico, o tratamento foi razoavelmente bem-sucedido: o tamanho dos tumores diminuiu. Do ponto de vista cardiológico, não. Alencar infartou.
Os médicos protagonizaram uma cena de cinema. Ao ver que o paciente suava frio e tinha a pressão muito baixa, Hoff percebeu que ele estava infartando. Ligou imediatamente para Kalil. Embora Alencar tivesse dois stents (dispositivos metálicos para desobstruir as artérias) no coração, apresentava boa condição cardíaca. Kalil não tinha nenhuma razão para suspeitar que ele pudesse infartar. Mesmo assim, correu até o apartamento 1.106. Quando percebeu a gravidade da situação, ele e Hoff voaram pelos corredores do hospital, empurrando a maca em direção à UTI. Os seguranças tentaram deter os médicos que pareciam querer sequestrar o paciente. Em janeiro, dois meses depois do susto, Alencar se divertia com a história. “O Kalil e o Paulo arrancaram a minha cama, derrubaram uma mesa cheia de garrafas e me enfiaram no elevador”, disse a ÉPOCA. “Aquilo poderia ter sido grave, mas eu não sabia. Não tinha noção. Estava tranquilo.” Socorrido a tempo, verificou-se que ele não tinha obstruções importantes.
Rogério Cassimiro
UMA NOVA BATALHA
Marli, de 52 anos, diante do painel do artista Romero Brito no Icesp, em São Paulo. Ela enfrentou o câncer de mama, mas o coração sofreu
Os médicos atribuem o infarto ao tratamento do câncer. “Sem o Glivec, ele não teria infartado”, diz Hoff. Alencar continuou o tratamento com o mesmo remédio, mas passou a tomar também uma droga para prevenir vasoespasmos (redução do calibre dos vasos que compromete a passagem adequada de sangue). O caso de Alencar é exemplar. Se até um paciente cercado de cuidados extraordinários e tratado pelos mais renomados especialistas sofreu as consequências do conflito entre a oncologia e a cardiologia, o que não pode acontecer à maioria?
“A incidência de complicações cardiovasculares provocadas pelo tratamento do câncer não é baixa. Pode afetar de 10% a 35% dos pacientes”, diz Durand. Foi o que aconteceu com a professora Marli de Andrade Nascimento Lago, de 52 anos. Ela descobriu um tumor de 6 centímetros na mama direita em 2009. Passou por cirurgia e 28 sessões de radioterapia. Fez quimioterapia com doxorrubicina, uma das drogas mais usadas em casos como o dela. O remédio faz parte da família dos antracíclicos.
Segundo alguns estudos, as drogas desse grupo podem provocar insuficiência cardíaca (incapacidade de bombear o sangue adequadamente) em até 26% dos pacientes. Em dezembro passado, Marli sentiu falta de ar e foi levada ao hospital. “A cardiologista disse que a quimioterapia lesou meu coração e agora vou ter de tomar remédios e cuidar dele para sempre”, afirma. “Estava tão animada porque havia superado a quimioterapia. Não sabia que isso poderia acontecer.” Com a divulgação do consenso, espera-se que danos desse tipo sejam reduzidos.
A maioria dos pacientes se cura do câncer sem dano cardíaco, mas a parcela que tem problemas é grande
“A importância do consenso é que agora até os oncologistas que trabalham numa cidade sem recursos terão uma fonte confiável para saber de que forma devem acompanhar o coração do paciente, que exames pedir e durante quanto tempo”, diz Hoff. O que os médicos pretendem com o consenso é que todo paciente seja avaliado por um cardiologista antes, durante e depois do tratamento. E também tenha acesso aos exames que, ao longo do tratamento quimioterápico, podem apontar se a droga está prejudicando o coração.
Apesar das boas intenções, é difícil acreditar que o consenso seja aplicável a todas as unidades do SUS. “O papel das entidades médicas é divulgar o que a ciência sabe e despertar cada médico para que brigue para ter o necessário no SUS”, diz Jadelson Andrade, presidente eleito da Sociedade Brasileira de Cardiologia. O básico do básico é fazer uma avaliação cardiológica do paciente antes do início do tratamento. “Algumas drogas são tão tóxicas que se o doente já tiver algum problema cardíaco é melhor nem usá-las”, diz Enaldo Melo de Lima, presidente da Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica.
   Reprodução

A maioria dos pacientes se cura do câncer sem sofrer nenhum dano no coração, mas a parcela que tem problemas é grande. “Num país como o Brasil, que tem 500 mil casos de câncer por ano, muita gente pode estar sob risco”, diz Hoff, que também é diretor-geral do Instituto do Câncer do Estado de São Paulo (Icesp).
Eugenio Savio
SUSTO 
Almedro de Souza em sua casa, em Belo Horizonte. Ele teve angina durante a aplicação da quimioterapia. “Achei que já estava no céu”, diz 
Como em toda nova área, muitas questões ainda precisam ser respondidas: qual é a real incidência do problema no Brasil? Quais são os mecanismos que explicam de que forma as drogas contra o câncer agridem o coração? A partir de que dose, ou de que tempo de uso, os danos começam a ocorrer? Para tentar responder a essas questões, começará no Icesp, ainda neste ano, um estudo com 1.500 pacientes de câncer de mama e câncer de cólon. A condição cardiológica deles será acompanhada detalhadamente. É a nova linha de pesquisa da equipe de Kalil.
“A maioria dos pacientes tem câncer numa idade avançada, quando já tem outros fatores de risco cardíaco inerentes à idade”, diz a cardiologista Ludhmila Abrahão Hajjar, coordenadora da UTI cirúrgica do InCor e da UTI do Icesp. Nesse caso, os cuidados devem ser redobrados.O comerciante aposentado Almedro Ferreira de Souza, de 68 anos, chegou aos 65 com um coração invejável. Nada de hipertensão, diabetes, problemas nas artérias, colesterol ou triglicérides elevados. “O cardiologista dizia que eu ia morrer de qualquer coisa, menos do coração”, afirma.
Há três anos, ele descobriu um tumor e precisou extrair o rim esquerdo. Logo depois, recebeu o diagnóstico de câncer de intestino. Um pedaço do órgão foi retirado. Para prevenir a volta do câncer, Almedro deveria passar por 12 sessões de quimioterapia na Santa Casa de Belo Horizonte. Na sexta sessão, começou a passar mal no exato momento em que a droga Folfox 6 era aplicada. Foi socorrido pelo oncologista e pelo cardiologista. “O mal-estar é incalculável. Não senti só falta de ar. Senti falta de tudo. Achei que já estava no céu.” O objetivo do consenso é permitir que pacientes como Almedro vivam mais (e melhor). Com os dois pés no chão.

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