Agora que a tragédia da Escola Pública de Realengo vai sumindo da mídia, como soe acontecer no minguar de fatos novos e na indigência das últimas cenas, cabe-nos abrir a grande angular para alcançar esse universo vazio em que nossos filhos e nossos netos patinam ensimesmados na angústia de resolverem suas vidas sozinhos, na fogueira dos conflitos inflados pela individualização do triunfo.
Deploro do fundo d’alma que essas gerações imaturas tenham sido jogadas na modernidade mais farta em liberdades, em descontração e em conquistas tecnológicas sem que, ao mesmo tempo, salvaguardassem os valores mais nobres da natureza humana.
Ao contrário, a força potencializadora emanada dos incomensuráveis avanços no plano da informação e a liberalização saudável do corpo e da mente parece ter sido usada na determinação estratégica da bestialização imobilizadora dos focos susceptíveis à indignação e repulsa.
Mesmo admitindo que historicamente o envolvimento de jovens nas causas humanitárias, distantes do seu interesse pessoal, e na despojada contestação dos desatinos limitou-se a uma minoria mais esclarecida, é difícil hoje ver jovens mobilizados por puro idealismo, tal como naqueles idos em que se alçavam alguns até para condenar a câmera de gás que executou em 1960 Caryl Chessman, o bandido que se fizera escritor brilhante no corredor da morte de San Quentin, na Califórnia.
A grosso modo, é deprimente constatar uma insolente inversão dos papéis: é mais fácil ouvir o esperneio dos avós premidos nos limites de sua capacidade física do que o grito sonoro dos peitos juvenis.
O bullyng das agressões interpessoais
Esse processo insidioso de redirecionamento dos ímpetos de uma idade ainda não contaminada pelo pragmatismo arrivista está dando na formação de hordas de solitários ególatras, confinados num ambiente em que cada um deve tratar exclusivamente de si, sem qualquer elo com seus iguais: antes, aliás, mais propensos a tratarem de serem mais desiguais possíveis, sob pressão da idéia de que não há espaço para todos.
Isso leva inevitavelmente a descobrir futuros competidores no seu meio e a buscar a própria afirmação na exploração da eventual deficiência e na timidez dos outros. Essa síndrome de uma “agressividade competitiva inconsciente”, que se manifesta nas escolas de primeiro grau com maior frequência, com o nome importado de BULLYNG por repetir práticas da matriz cultural, está intrinsecamente ligada ao processo de recanalização do potencial rebelde dos jovens, sujeitos a perfis degenerativos.
Sabem as autoridades educacionais da proliferação de grupos de alto teor de agressividade, verdadeiras gangues, que impõem suas vontades com tal petulância que chegam a encurralar professores, sujeitando-os ao seu comando, inclusive na imposição de notas.
Gangues nas escolas e o silêncio dos mestres
Se o morticínio de Realengo expôs uma personalidade esquizofrênica e conscientemente envolvida na gestão de um ato brutal, seriam honestas a direções das escolas, sobretudo, infelizmente as públicas de áreas conflagradas, se tivessem coragem de coibir abusos de gangues, algumas auto-proclamadas como sob a proteção de bandidos de suas áreas.
De um modo geral, sem esperança de que um gesto possa produzir efeitos positivos, os professores calam mesmo quando são afrontados em plena sala de aula. Mas nenhum deles pode negar a existência de uma cultura de violência banalizada, coisa que não é exclusiva das periferias pobres. Em escolas de ricos é comum professores serem alvos de bolinhas de papel quando estão de costas para a turna.
Ali mesmo na capital federal não é rara a exibição de meninos de classe média na prática de atos perversos e nos conflitos intergrupais. Lá a proliferação de gangues de condomínios e de certas escolas é pública e notória.
Até uma pesquisa realizada no Rio de Janeiro mostrou o grau de insuficiência no trato com o bullyng. O Instituto INFORMA revelou, em matéria publicada com destaque por O GLOBO, um grande percentual de vítimas dessas práticas entre os 830 estudantes ouvidos. Curiosamente, nenhum dos entrevistados admitiu ter praticado ele próprio esse tipo de violência cada vez mais perversa.
Não seria forçado associar tais práticas aos trotes que ainda fazem parte da crônica juvenil. A única diferença é que esses parecem integrados ao currículo escolar, no processo de iniciação dos novos alunos, tal como acontece em algumas seitas e sociedades fechadas.
Jovens no descaminho manipulado
De fora do ambiente escolar, o progresso tecnológico da mídia e dos games se encarrega de oferecer insumos à substituição dos impulsos motivacionais, levando em última instância à forja de um jovem moderno “sem saco” para os atos que afetam o sistema de castas cristalizado através da pirâmide social intocável.
Em troca, os anabolizantes mentais oferecem a esse mesmo jovem sensações compensatórias, primeiro no plano da afirmação de um egoísmo hipertrofiado; num segundo momento, na indução a atitudes mais radicais, como o uso de drogas cada vez mais facilitado até mesmo por seus preços popularizados.
Os jovens se movem a pilhas novas, com cargas em excesso. Ao exacerbarem seus fins pessoais, correm o risco do próprio curto circuito. Assuntos pessoais, inclusive de ordem sentimental, são maximizados e viram torturantes cavalos de batalha. Há uma grande possibilidade de que o vírus narcisista se volte contra eles próprios, na medida em que seu egocentrismo não se realize em toda a sua plenitude.
O sistema opera igualmente a seleção prévia dos seus nerds, seus meninos prodígios que escapam às conturbações angustiantes da idade para ingressar na nova elite dirigente. Isso em função de um elemento excludente de natureza existencial, tão influente como os limites de classe.
Aí entra outra frustração construída. O acesso à Universidade se tornou mais fácil com as ofertas de um varejão escolar, mas isso não significa necessariamente emprego na área de formação.
Há uma irresponsabilidade visível na proliferação de faculdades de baixo rendimento, em condições de oferecer não mais do que o diploma. Só na área do Direito, mais de mil cursos. Comunicação Social, um segmento que se desvaloriza e se estreita de ano para ano, atrai milhares de garotos cheios de sonhos, tendo como referência, em especial, os espaços televisivos, fomentadores de expectativas de ordem profissional e existencial, e o endeusamento de alguns raros “gênios” da propaganda.
A família perdida na mudança de hábitos
O arco midiático reproduz de tal forma o modelo da matriz norte-americana que até os hábitos alimentares foram incorporados, com previsões pessimistas das autoridades de saúde: em 13 anos teremos o mesmo percentual populacional de obesos dos Estados Unidos.
As televisões incrementam a dependência cultural com a massificação de enlatados norte-americanos. Quase todos os quase cem canais a cabo são dos Estados Unidos e refletem seu modo de vida, seus problemas típicos, suas idiossincrasias recheadas de hipocrisias. Dos 2.150 filmes em média exibidos mensalmente, mais de 70%, realçam cenas de violência e de crimes, muitos com formatos didáticos.
O conflito de gerações tem novas conotações e não se limita ao culto da rejeição aos discursos “ultrapassados”. Há inversão de hábitos. Antes, o neto ia buscar o chinelo da avó. Agora é a pobre velhinha que se sujeita à tirania de uma garotada prenhe de auto-afirmação e de prazer personalíssimo.
A pressão do cotidiano eliminou a ceia em família. Já não se faz consulta aos velhos: a garotada já “nasce sabendo” ou prefere se informar na feira da internet. Suas relações ocorrem agora com maior intensidade no Orkut e no faceboock.
Pode-se dizer que os filhos passaram a pautar os pais ou a cultivarem suas agendas paralelas, infensas a qualquer palpite paternal.
A alienação que exacerbou o individualismo
Os jovens que um dia foram contestadores dos estados atrabiliários tendem agora ao choque familiar, mesmo sem a explicitação dos atritos. A carga de informação recebida dos meios eletrônicos substitui tudo, do pai ao pároco. Os antigos valores tornam-se jurássicos, a cultura nativa cede à hegemonia dos metaleiros e dos roqueiros que entram em suas veias no bojo de uma excessiva bateria de clipes alucinógenos, acolitados pela facilidade com que se pode baixar qualquer música do mundo pela internet.
Tudo isso decompôs o ideal juvenil, extirpou aquela velha premissa de que o sucesso pessoal dependia do avanço conjunto da sociedade. Alastra-se como axioma a compreensão de que é cada um por si e nada mais.
No mesmo diapasão, gerações aflitas de pais apegados ao ganha-pão, qualquer ganha-pão, vão deixando de ser referência na “concorrência” desleal dos mitos massificados, heróis de laboratório que são mais poderosos do que a figura paterna, modelares em um passado esquecido.
Em suma, para ficar por aqui, é plausível admitir que o sistema venceu no seu projeto alienante. Mas tudo que diz respeito à espécie humana carrega em si o seu contrário, a possibilidade de um desdobramento fora da programação.
Nossos filhos, nossos netos e nossas escolas já não incomodam o Estado das elites dominantes. Mas suas energias subsistem e se voltarão contra os seus, os parceiros e até mesmo contra os próprios. É aí que reside o núcleo de aberrações traumáticas, como que gerou a tragédia da Escola Pública de Realengo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário