por Luis Fernando Verissímo



Quando o grampo telefônico e a minicâmera escondida ainda não eram instrumentos de denúncia e moralização, o político corrupto podia contar com uma certa tolerância tácita dos seus pares e do público.
Mesmo quando não havia dúvidas quanto a sua corrupção, havia a disposição de perdoá-lo, até de folclorizá-lo — e o político que roubava mas fazia tinha o privilégio do artista, de ser um canalha em particular se sua obra o redimisse.
Uma única gravura do Picasso absolve uma vida de mau-caráter. A obra do Marquês de Sade é estudada com a mesma isenção moral dedicada à obra de Santo Agostinho — que nem sempre foi santo — e ninguém quer saber se o escritor engana o fisco ou bate na mãe se seus livros são bons.
Ou querer saber, queremos, mas só pelo valor de fuxico.
A absolvição custa um pouco mais quando o pecado do artista é o da ideologia errada. Pois se se admitia no político a perversão privada do artista, a única inconveniência intolerável no artista era a incorreção política.
Assim um Louis Ferdinad Céline e um Wilson Simonal tiveram que esperar a remissão que o tempo acabou dando a Kipling, Claudel, Nelson Rodrigues, Jean Genet, etc. Mas a receberam.
O político que declaradamente roubava mas se redimia fazendo tinha um pouco desta imunidade de artista. Sua obra justificava seus pecados, quando não era uma decorrência deles.
Todo o sistema de conveniências e deixa-pra-laísmo que domina o Congresso brasileiro e que está sendo testado agora presume a mesma desconexão entre moral privada e moral aparente. A cultura do clientelismo, onde o suposto proveito político substitui a ética, está baseada nela.
O que causou a atual revolta contra a roubalheira e a tolerância com a corrupção no Brasil, além das modernas técnicas de averiguação, é a constatação crescente de que aqui não se tem nem a ética nem o proveito, rouba-se para poucos e não se faz para a maioria.
Em cleptocracias mais avançadas a obra dos artistas do desenvolvimento, todos bandidos, redimiu-os. Empresários corruptores e políticos corruptos fizeram dos Estados Unidos, por exemplo, o que eles são hoje.
O capitalismo selvagem americano domou a si mesmo depois de construir um país, ou controlou-se razoavelmente, mas nos seus tempos desinibidos escandalizaria até o Cachoeira. Aqui se tem o crime mas ainda não se tem o país.

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