Sou professor de uma universidade pública e sempre me posicionei contra as greves de minha categoria. Acho que as greves no serviço público envolvem um mecanismo imoral de pressão. O princípio é simples. Com a greve, não se atinge diretamente o governante, responsável direto pelo pagamento de meus salários. Atinge-se a população, que é usuária do serviço prestado. É através do sofrimento imposto à população que a greve do funcionalismo público surte efeito. Isso fica particularmente claro quando a greve atinge setores essenciais, como a medicina e a segurança pública. É moralmente correto que policiais se retirem da rua, deixando a população à mercê dos bandidos, para negociarem com o Governo em posição de força? É moralmente correto que um paciente com um braço quebrado seja mandado de volta para casa porque seu caso não foi considerado "urgente" pelo funcionário do comando de greve responsável pela "triagem" na porta de um hospital durante uma paralisação? Na minha opinião, isso é moralmente condenável, e por isso acho que a greve no serviço público deveria ser proibida por lei.
Antes de colocar as greves do funcionalismo na ilegalidade, porém, é preciso criar algum outro mecanismo que garanta a manutenção do poder aquisitivo dos servidores. A melhor opção, a meu ver, é a indexação dos salários. A partir de um certo patamar de perda salarial (digamos, 10%), a reposição deve ser automática e imediatamente exigível. A determinação de critérios transparentes e simples, e a criação de mecanismos ágeis de exigência da reposição das perdas inflacionárias seria a contrapartida dada aos servidores pela retirada de seu direito a fazer greve. Teria, a meu ver, uma eficácia igual ou maior do que a greve vem tendo historicamente, evitando a situação moralmente insustentável criada por uma paralização de servidores.
O governo petista está prestes a sentir na carne a necessidade de rediscutir esse problema. O fato de a esquerda estar no poder nos obriga a repensar determinados dogmas que foram se impondo pela repetição, e que sobrevivem numa época na qual já não existem os fatores que tornavam esses dogmas, se não aceitáveis, pelo menos racionalmente compreensíveis numa época anterior. A defesa do direito amplo e irrestrito de greve está ligada a uma certa concepção de qual seria o papel das "classes trabalhadoras" no desenvolvimento histórico do capitalismo.
Tomada em si mesma, uma greve no funcionalismo público não significa outra coisa, em termos políticos, senão a luta de uma determinada categoria para abocanhar uma fatia maior do orçamento público. É uma briga por alocação de recursos que não leva em conta nenhum tipo de projeto político mais amplo. As motivações do grevista, consideradas no âmbito restrito da greve, não vão além do seu próprio bolso. Quer ganhar mais, e por isso para de prestar serviços à população. A greve só adquire um sentido político mais amplo se acreditarmos que existe um processo mais amplo em curso que, se devidamente compreendido, pode levar à tomada do poder pelas classes trabalhadoras. A greve se transforma, então, em algo muito mais amplo do que um mero instrumento para ganhar um salário maior. Ela é um momento privilegiado para os trabalhadores tomarem consciência da própria força e compreenderem que, unidos, podem almejar outros resultados muito mais ambiciosos do que a mera conquista de um salário um pouco maior.
Essa estratégia é tributária de uma desconfiança com relação à democracia como instrumento de mundança social. As grandes mudanças seriam operadas por movimentos de massa, e não por representantes democraticamente eleitos. É por isso que a greve teria um valor estratégico na luta histórica pela superação do modo capitalista de produção. Essa superação jamais será conseguida por meio de modificações obtidas pelas vias institucionais. A ruptura é um movimento que irá se dar necessariamente fora das instituições, e a greve prepara os trabalhadores para eventualmente atuarem fora dos marcos institucionais. Embora ela mesma seja uma ação institucionalmente prevista, ela tem um potencial de ruptura que lhe empresta um significado político muito mais amplo, e é em defesa DESSE significado mais amplo que as greves são organizadas pelos trabalhadores mais conscientes de seu papel histórico.
O problema é que grande parte do PT (e da esquerda) NÃO acredita mais nessa narrativa histórica. O PT, como partido no poder, não tem como patrocinar essa "desconfiança" em relação à democracia sem uma boa dose de má-fé. E, de boa fé, a maioria dos petistas aposta em saídas INSTITUCIONAIS. A maioria dos petistas NÃO está comprometida com enredos revolucionários. A maioria está comprometida com a sustentação de um governo democraticamente eleito e com seu programa de reformas. Não há nenhuma razão, portanto, para o PT continuar avalizando essa narrativa revolucionária de ALGUNS de seus membros. O PT é um partido que prega REFORMAS INSTITUCIONALMENTE CONDUZIDAS. Do ponto de vista de quem pensa assim, uma greve é só uma greve, e nada mais. Ela não tem nenhuma dimensão política mais ampla. Ela objetiva um certo ganho salarial pretendido por uma categoria. Se tivermos motivos (como creio que temos) para considerar que uma greve de servidores públicos é IMORAL, e se tivermos alternativas (como creio que temos) para garantir a reposição das perdas inflacionárias dos servidores, não temos mais motivo algum para defender o direito de greve dos servidores públicos.
por Jotavê
Lamentavelmente a greve não é a única imoralidade no serviço público.
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