Danuza Leão e o porteiro de FHC


Danuza Leão, que foi esposa de Samuel Wainer, o criador do Última Hora -- principal veículo de resistência ao cerco udenista contra Vargas nos anos 50, lamenta a ascensão do consumo de massa no Brasil. Não por ter restrições ao consumo. Mas porque ficou difícil 'ser especial' nesses tempos em que 'todos têm acesso a absolutamente tudo, pagando módicas prestações mensais', explica na coluna que assina na Folha. 


Musicais na Broadway perderam a graça, afirma, não pelo gosto duvidoso do que se oferece ali. "Por R$ 50 mensais, o porteiro do prédio também pode ir", lamenta-se. 

"Enfrentar 12 horas de avião para chegar a Paris, entrar nas perfumarias que dão 40% de desconto, com vendedoras falando português e onde você só encontra brasileiros - não é melhor ficar por aqui mesmo?", questiona desolada diante das cancelas decaídas. 

As raízes desse desencanto com o Brasil, personificado na elite caricatural assumida por Danuza, encontram uma explicação resumida no relatório da consultoria Boston Consulting Group (BCG)', divulgado nesta 3ª feira. 

O estudo compara meia centena de indicadores econômicos e sociais de 150 países , coletados junto ao Banco Mundial, FMI, ONU e OCDE. 

O Brasil emerge desse mosaico como a nação que melhor utilizou o crescimento econômico dos últimos cinco anos para elevar o padrão de vida e o bem-estar do seu povo. 

O PIB brasileiro cresceu a um ritmo médio anual de 5,1% entre 2006 e 2011. Mas os ganhos sociais obtidos no período se equiparam aos de um país que tivesse registrado um crescimento explosivo de 13% ao ano, diz a análise. Ou seja, para efeito de redução da pobreza as coisas se passaram como se o Brasil tivesse crescido bem mais que a China nos últimos cinco anos.

O salto na qualidade de vida da população, segundo a consultoria, decorre basicamente da prioridade implementada à distribuição de renda no período. Algo que Danuza Leão intui em meio às dificuldades crescentes para se distinguir do porteiro de seu prédio.

As diferenças entre eles naturalmente continuam abissais. Mas registraram a queda mais rápida da história brasileira nos anos Lula, quando a pobreza caiu pela metade e 97% da infância foi para a escola.

Nada disso é captado no visor histórico de quem está obcecado em preservar espaços de um privilégio socialmente patológico, incorporado à rotina da classe dominante como se fora a extensão da paisagem tropical. 

O desencanto inconsolável com o Brasil deixado por Lula inclui outras versões igualmente elitistas, mas de apelo não tão exclusivista. 

O porteiro do prédio neste caso é a 'corrupção de massa' que o PT teria promovido, segundo os críticos, num aparelho de Estado antes depenado com elegância pelos donos do país. 

Assim como o porteiro de Danuza, a corrupção no aparelho público agora comandado pelo PT também é real.

Não é o caso do que se convencionou chamar de Ação Penal 470 - ainda que a prática do caixa 2 de campanha, é disso que se trata, tenha igualmente nivelado o partido aos adversários, que todavia desfrutam da tolerância obsequiosa nos circuitos escandalizados com os forasteiros.

A atual operação Porto Seguro, a exemplo de outras desencadeadas pela Polícia Federal desde 2003, desnuda com generosa difusão midiática isso que antes era encoberto, pouco investigado e raramente punido. 

Não é necessário revisitar o personagem do 'engavetador geral da 
República', de bons serviços prestados à causa tucana, para contrastar o silencio de gavetas que agora são reviradas em agudos decibéis e cortantes editoriais. Porém há nuances que a esquerda não pode mais ignorar. 

A virtude que se cobra do campo progressista não é um dote imanente a porteiros que conquistaram o legítimo direito de viajar a prestação, tampouco a qualidade intrínseca de governantes eleitos pelos pobres.

Virtuosas --educativas-- devem ser as instituições, ancoradas em leis justas e indutoras da convivência solidária; no serviço público digno e transparente; na escola capaz de preparar cidadãos para o livre discernimento; nos bens comuns valorizados e desfrutados coletivamente; na informação plural e isenta etc. 

Para isso, o partido que pretende mudar a sociedade tem a obrigação de associar à luta econômica o combate por ideias emancipadoras que ampliem o horizonte subjetivo para além do consumismo individualista. Do contrário sobra o vale tudo por dinheiro.

Entenda-se por vale tudo aquilo que leva um jovem ao crime por um par de tênis de marca. Ou o funcionário público subalterno que concede 'favores' em troca de um cruzeiro à Ilha Grande, com direito ao show da dupla 'Bruno e Marrone'.

O mais difícil na luta pelo desenvolvimento é produzir valores que não aqueles negociados em Bolsas. Não apenas esse, mas sobretudo esse passo a esquerda deve ao Brasil. E não parece recomendável adiá-lo ainda mais.

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