Nelson Rodrigues nunca revelou algo interessante sobre o comportamento humano. Nadinha. Não se é um escritor da "natureza humana" por ser escroto, ainda que se possa ser genial sendo um escritor escroto. Nelson é genial, mas "mulher gosta de apanhar" não é algo para ser complementado com "só as normais" e, sim, com o seguinte adendo: essa frase de Nelson não é para ser repetida por quem quer escrever filosofia ou literatura. Não é para ser repetida por filósofos porque estes podem fazer frases melhores, também não por literatos porque ela só tem sentido se nos imaginarmos em bailes de um passado distante quando, estando só entre rapazes, dizíamos "vou contar um chiste para homens", no estilo de Fernando de Azevedo.
Rubem Fonseca é diferente. Aí sim há alguém capaz de falar do drama humano. Aliás, Rubem Fonseca é tão bom que ao falar dele como quem é um escritor da "natureza humana", tenho vontade de utilizar essa expressão sem o uso das aspas, como se faria ou se fez no século XVIII ou mesmo XIX. Ele é genial para além do que um escritor é aceito como genial. É um escritor nota dez porque diz que vai terminar um conto de uma tal maneira e, cumprindo o prometido, ainda assim consegue surpreender. Li um conto dele recentemente em que um homem que aprecia morder, ao final do conto diz que gostaria de matar o assassino de sua amante com mordidas, e então cai em si confessando "mas eu só sei dar mordidas de amor" – e de fato são essas as mordidas que aparecem durante o conto, como fio condutor da história.
Prazer e sexo, amor e felicidade – essas duplas são legítimas?
Essa capacidade de Rubem Fonseca de escrever de modo a não poder ser aproveitado por nós, filósofos, é o que o põe uma esquina a mais em relação a Nelson Rodrigues. Este, para a nossa desgraça, a dos que gostam de seus escritos, tentou dar ao carioca a sensação de que houve alguma filosofia no clima espiritual do Rio de Janeiro, o que é uma mentira. Ou ao menos soa falso se depositada no altar da "compreensão do que é a mulher". Pois se houve alguma coisa que Nelson não entendeu, foi justamente essa coisa de "homem e mulher". Tipos são bons para a sociologia, mas na literatura eles podem atrapalhar. Mesmo no folhetim, tipos só servem se nosso trabalho é com teledramaturgia em horário nobre.
O que estraga Nelson Rodrigues é exatamente o que enobrece Rubem Fonseca: sexo. Só o segundo sabe usar o sexo na literatura. Nelson é como Sade, enquanto que Rubem Fonseca é como Nietzsche, no quesito de enfrentamento da terminologia que envolve sexo. Sade empapuça enquanto Nietzsche desperta.
Poderia dar mil exemplos, mas não é o caso aqui. Por hoje, um só basta.
Nietzsche escreve que Sócrates "é Platão na frente e Platão atrás". Sabemos que Sócrates é isso – no sentido literal, no metafórico e, de volta, no sentido literal. Sócrates não escreveu, e o que sabemos dele, de sua filosofia, se é que sabemos alguma coisa, tem em Platão o maior informante. Não há Sócrates, há Platão. Mas não há Platão, sabemos bem, o que há é Sócrates. Esse fuzuê na literatura filosófica fez com que os historiadores da filosofia forçassem os filósofos a criarem a figura Sócrates-Platão-Sócrates e a figura Platão-Sócrates-Platão. Atrás e na frente. Nietzsche se diverte. Mas não sem razão ou sem profundidade.
Para o bom leitor de filosofia antiga, é difícil não supor que Platão pode ter sentido ciúme de Alcibíades, o general jovem que passou para a história como tendo sido o único a quem Sócrates amou de verdade. Nos escritos de Platão, Sócrates não cede sexualmente aos encantos de Alcibíades. É difícil não ver aí uma pontinha antes de ciúme do que de vontade de dizer a verdade da filosofia de Sócrates, ainda que a verdade da filosofia de Platão dependa, sim, de um Sócrates que não cede sexualmente. Essa pontinha de ciúme, Nietzsche a pinta de pink ao escreve como escrever sobre o sanduiche com Sócrates no meio do pão.
Nietzsche sabe perfeitamente que o trenzinho sexual é algo que se faz, mas não se fala, uma vez que falado é coisa de "moleque de rua". Ora, Nietzsche está longe de quem escreve como um escroto. Ele não é Nelson Rodrigues. Ele também não é Rubem Fonseca, mas dá a deixa para que eu possa dizer que o modo como ele faz é o que Rubem poderia fazer e, não raro, faz mesmo.
Não estou comentando aqui o uso das palavras. Nelson e Rubem usam todas as palavras necessárias e mais um pouco. Não são bocós. Só bocós evitam palavras. Mas a questão aqui é que Rubem conduz a trama de um modo que paga pau para o tirocínio de Nietzsche. Trata-se de uma riqueza na condução das possibilidades dos personagens, que é uma característica que os melhores textos dos bons escritores oferecem para nós, quando se envolvem com amor, sexo e morte – temas recorrentes em Nelson Rodrigues, Rubem Fonseca, Nietzsche e Platão.
Rubem Fonseca nos lembra dos filósofos, os bons filósofos. Mas é tão bom escritor que dele não arrancamos nenhuma filosofia que, se arrancada de escritores, pode virar apenas pseudofilosofia.
Nietzsche gostava de sexo. Nelson não sabia nada sobre o sexo, era apenas um fanfarrão de boteco falando das trepadas que jamais deu. Genial nisso. Mas vazio. Rubem, como Nietzsche, sabe mais do que sexo no sexo. E isso, tendo ou não alguma sífilis. Mesmo que não fosse genial, no mínimo empataria com qualquer outro escritor genial. Aliás, como Nietzsche, pois este é um escritor que, quando faz seu pior empata com o que muitos fizeram no seu melhor.
Paulo Ghiraldelli Jr., 56, filósofo, escritor, cartunista e professor da UFRRJ
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