Faz tempo que não te vejo, hein? É, não te ver com frequência não faz lá muita diferença na minha vida interessante e ocupada. Mas e aí, como tá, tudo bem? Perguntei, mas na real não quero mesmo saber. A verdade é que essa é a deixa perfeita pra eu começar a falar de mim. Isso, de mim. Agora você me pergunta como vão as coisas e eu começo a contar, com um ar disfarçadamente tranquilo e uma pitada de superioridade desinteressada. Tô bem, tô bem, depois que me separei e fui promovido e comprei um apartamento na zona sul e tô comendo a estagiária gostosa que acabei de contratar. Pois é, pois é, me separei, me separei, cara. Não te contei porque ando bem atribulado desde que virei diretor lá na empresa. Valeu, cara, obrigado, obrigado. Era o esperado, nada fora do esperado. Foi mês passado, logo depois do divórcio. Então, parece que, de algum jeito, ela tava bloqueando fluxos, empatando a minha vida, impedindo que coisas boas acontecessem pra mim, sabe? A gente tava junto há muito tempo, tempo demais, e ela era um pessoa difícil, pesada, egocêntrica, dessas que te emperra, engessa, te puxa pra trás, sabe? Oi? Não, não, cara, não é bem disso que tô falando, meu caso é bem diferente e não tem nada a ver com esse exemplo que você começou a dar. Ainda que eu não tenha ouvido nem a primeira frase que saiu da sua boca, eu sei bem o que você ia dizer, sei bem, e, realmente, não faz muito sentido no meu caso, que é bem específico e singular e nunca ninguém viveu nada parecido.
Essa minha história é única, ouve bem. Ah, é? Você também se separou há pouco tempo, cara? Não sabia, não. Pena, pena, pena. Não sei bem como te dizer isso mas não me importa muito o que te aconteceu, só quero voltar a vomitar desabafos detalhados da minha vida estupidamente interessante enquanto você ouve sem dizer nada, sem dizer nada. Isso, assim, atento. Pois então, voltando ao assunto, a decisão foi minha e fiz muito bem, fiz o que tinha de ser feito, entende? Como diz aquele ditado, a man’s gotta do what a man’s gotta do. Ela começou a reclamar demais, exigir demais, falar demais sobre as coisas dela, as neuras dela, obsessões só dela. Calma, ainda não acabei, cara. Me ouve. As nóias eram dela, eu não tinha nada a ver com isso, não adianta querer vir me jogar nenhum argumento que contrarie essa frase, não quero ouvir, não tô interessado. Ei, olha pra mim. Não terminei e o que tenho pra contar é muito relevante e precisa ser dito. É muito sério e vai te deixar perplexo. É muito engraçado e vai te fazer rir.
Só ouve. Você não tá prestando atenção, eu consigo ver que não, mas vou continuar falando mesmo assim. O caso é muito bom, muito bom. Depois que separamos ela não me ligou mais, estranho, todo mundo achou estranho, sei que ela ainda me ama, ainda tá envolvida, quer voltar, tentar de novo. Fiquei sabendo que ela viajou com as amigas pro litoral fim de semana passado, deve estar tentando tirar a cabeça de mim, da separação, desanuviar e tal. Então, aí um amigo em comum me disse que no caminho o pneu furou e ela começou a chorar. O que? Você não tá passando bem? Vem, vem, vamos sentar aqui que passa, vem. Então, diz que ela começou a chorar, acredita?...
Foi isso, tô ótimo, ótimo, cara. Bem demais. Adorei conversar contigo. Mesmo. Saudade de te encontrar e bater papo assim. Ainda que eu não faça a mínima ideia de como você tá de verdade, do que tem se passado na tua mente, na tua vida, teus sonhos, teus interesses, teus anseios. Na verdade nem sei se gosta de mim, se me quer bem. Nem sei, mas foda-se.
O que importa é que você sabe dos meus lances, agora.
Que eu extravasei, agora.
Estou mais aliviado, agora.
Me sentindo grande, gigante.
Conversa boa, muito boa. Bem boa. Vamos repetir outras vezes, vamos vamos vamos sim. Abração, falou, cara.
ANNA HADDAD
É advogada faz-tudo. Inventa, planeja, provoca e escreve. Entrou em crise com o mundo dos diplomas e fundou a plataforma de crowdlearning Cinese. Acredita em Deus, no Mário Quintana, no poder de articulação das pessoas e em uma educação livre e desestruturada. Tá por aí, mais nas ruas do que nas redes.
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