Há três dias os jornais brasileiros falam de uma revolta dos presos da Papuda contra os “privilégios” oferecidos aos condenados da ação penal 470. O descontentamento seria tão grande que eles estariam preparando uma rebelião.
Foi por isso, explicam, que três membros da Vara de Execução Penal, que tem a função de zelar pelo correto cumprimento das penas de cada prisioneiro, teriam pedido afastamento de suas funções por causa disso.
Depois de investigar a denúncia, Claudio de Moura Magalhães, Subsecretário do Sistema Penitenciário, afirma, em entrevista ao Globo de hoje:
-- Eu até queria achar algo pesado, uma quadrilha que está articulando, para não desmentir a VEP (Vara de Execuções Penais). Mas não achei.
Conforme o subsecretário, está tudo dentro da normalidade nessa época do ano. A mesma informação encontra-se na Folha de S. Paulo, onde a Secretaria de Segurança informa que boatos de rebelião “acontecem” sempre mas nega qualquer fato novo neste final de 2013.
Conforme a Folha, de 20 familiares de prisioneiros entrevistados, apenas duas mulheres confirmam ter ouvido rumores sobre uma rebelião, “mas em outra unidade” da Papuda, ressalvam.
Nada é tão ilustrativo da situação como a confissão do subsecretário. Ele “até queria achar algo pesado para não desmentir a VEP...”
O que é isso?
Mesmo com uma imensa dose de boa vontade, a autoridade que teria a obrigação de apurar tudo nos mínimos detalhes e punir os principais responsáveis pela preparação de uma rebelião crime é obrigado a admitir que nada foi encontrado. Nada.
E lamenta: “eu até queria.”
Autoridades policiais não querem nem deixam de querer.
Em situação normal, não precisam lamentar o que encontraram ou deixaram de encontrar. Devem registrar os fatos e limitar-se a eles.
Mas não vivemos uma situação normal em torno dos prisioneiros da AP 470. E por isso podemos compreender muito bem as palavras de precaução do subsecretário.
Não há motivo para duvidar da palavra dos magistrados da VEP. Mas é bom admitir que a autoridade profissionalmente competente para buscar indícios e trazer provas nada encontrou. Embora até quisesse, como admitiu.
A explicação que encontrei junto a autoridades que segue o caso de perto é outra. Para elas, os juízes pediram afastamento pela mesma razão levou o primeiro responsável pelas execuções penais da AP 470 a entrar em conflito com Joaquim Barbosa no primeiro dia: falta de autonomia e excesso de interferência sobre seu trabalho.
Do alto de minha suprema ignorância nesses assuntos, gostaria de registrar que pelo simples bom senso há um elemento absurdo nessa hipotética revolta contra os “privilégios” dos condenados da AP 470. Pergunto, para começar: onde estão os privilégios?
Para ir ao ponto essencial da palavra: do ponto de vista do cumprimento da lei, privilegiado é quem escapa da Justiça, consegue ser inocentado apesar de provas de sua culpa, e utiliza de uma posição superior na sociedade para impor vantagens aos demais.
Será honesto dizer que isso ocorreu com os condenados da ação penal 470, julgamento criticado por um número cada vez maior de juristas e advogados de prestígio?
Os prisioneiros foram recolhidos num feriado, sem uma carta de sentença onde estaria definida suas condições de prisão. O esforço para garantir um bom espetáculo se demonstra por um fato impressionante. A notícia de que os mandados de prisão haviam sido expedidos chegou antes às emissoras de TV do que à delegacia da Polícia Federal em São Paulo. Quando os primeiros prisioneiros chegaram a PF, os delegados de plantão não sabiam de nada. Por coincidência, a internet estava fora do ar e um deles, após um certo esforço, conseguiu localizar o mandato – pelo celular.
Enquanto aguardava por uma decisão dos policiais, um dos prisioneiros ouviu um deles recusar um pedido insistente, feito pelo telefone, com as seguintes palavras: “Não sou funcionário da Globo.”
Quando os presos chegaram a Papuda, a Secretaria de Segurança do Distrito Federal se recusou a recebe-los por falta de documentação adequada. Em situação normal, presos nessa situação são devolvidos a Polícia, que resolve o que fazer com eles. Mas é claro que isso não ficaria bem do ponto de vista do espetáculo.
Imagine inaugurar o show com uma trapalhada logo na segunda cena.
Com autorização do Ministério da Justiça, os prisioneiros – inclusive aqueles que tinham direito a regime semiaberto – foram recolhidos a unidade federal de segurança máxima, dentro da Papuda, reservada exclusivamente para criminosos de altíssima periculosidade.
Como se sabe, são áreas feitas para condenados que integram “facções criminosas” em atividade no sistema prisional, que possuem esquemas clandestinos poderosos, capazes de promover fugas quando recolhidos a um presídio comum. Assim, os condenados “privilegiados” ficaram isolados na segurança máxima durante os primeiros dias.
O esforço para impedir que prisioneiros da AP 470 com direito a regime semiaberto possam deixar o presídio para trabalhar durante o dia levou a que se resolvesse organizar uma fila para examinar os pedidos de saída, por ordem de chegada no presídio. É claro que os recém-chegados foram colocados nos últimos lugares, medida que parece igualitária mas é, na prática, uma forma de prejudicar quem, como eles, teria maior facilidade para encontrar emprego do lado de fora. Criou-se assim, uma fila com casos demorados, complicados, muitas vezes sem solução – infelizmente poucas pessoas se dispõem a empregar pessoas presas, como sabe qualquer pessoa que já tentou ajudá-los – cujo efeito foi atrapalhar o caminho de quem tinha uma saída ao alcance da mão.
Entre o primeiro dia e o fim do primeiro mês, nenhum prisioneiro com direito ao semi aberto teve acesso a esse regime, ainda que isso tenha sido definido pelo próprio STF, a mais alta corte do país. Não há a mais remota previsão para isso acontecer. A perspectiva é tão ruim que muitos condenados que poderiam estar trabalhando fora do presídio já começaram a trabalhar atrás das grades, o que pode até diminuir suas penas mas é muito desvantajoso.
Advogados dos prisioneiros denunciam que, para impedir que eles tenham direito a visitar suas famílias no Natal e no Ano Novo, tradição de nosso sistema prisional, foram definidas regras extremamente duras para que fossem liberados. Tem-se como certo, hoje, que todos os condenados da AP 470 passarão esses dias longe de suas famílias.
Vamos brindar ao privilégio com peru, presunto tender e champagne, certo?
A conversa sobre os privilégios começou de forma distorcida. Nos dias seguintes a prisão, havia um numeroso contingente de parlamentares interessados em visitar os condenados da AP 470. É natural e é um direito deles, como sabe toda pessoa que se interessava pela sorte dos presos políticos durante o regime militar. Num comportamento que honrava o mandato que possuía, naquele tempo o senador Teotônio Vilela batia à porta dos presídios, apresentava-se como Senador da República e ia em frente.
Foi apenas para impedir que o excesso de visitantes parlamentares à Papuda acabasse por aumentar a fila das famílias dos demais prisioneiros que se criou um dia especial para que os presos da AP 470 fossem visitados. Era uma solução obviamente conveniente para as partes.
Não funcionou por uma razão política.
Interessava – e vai interessar sempre – denunciar toda tentativa dos prisioneiros da AP 470 de defender direitos previstos em lei como uma tentativa de proteger privilégios.
Num comportamento estranho para observadores que acham muito chique falar mal do populismo de estadistas que tem ideias que detestam e votos que tanto invejam, essa motivação oculta pautou o debate sobre descontentamento de familiares dos demais presos da Papuda. Essa famílias têm, sempre tiveram e sempre terão motivos de sobra para queixar-se do presídio. E como sabe qualquer cidadão que entrar numa prisão, dificilmente será possível encontrar, em pessoas aprisionadas, qualquer motivo razoável para elogiar a jaula em que foram colocados. Sempre haverá um motivo de queixa, uma causa para apontar uma injustiça. Pense no condenado mais cruel que você já ouviu falar. Se perguntar, ele vai reclamar uma coisa, pedir uma reivindicação, clamar por justiça.
Numa típica argumentação que procura apoio numa retórica progressista para realizar uma proposta reacionária, o objetivo é mostrar que os presos “populares” sentiam-se “revoltados” com os “privilegiados.”
Essa esforço guarda um parentesco direto com o argumento, tão comum no julgamento, de que todo pedido de recurso, todo esforço para um exame mais acurado da acusação, não passava de uma manobra protelatória. O que se pretende, na nova fase do espetáculo, é garantir um ambiente político para o julgamento dos embargos infringentes, a última esperança dos réus obterem uma redução significativa das penas.
Do ponto de vista jurídico, o ambiente é hoje favorável aos recursos. Mas a rigor ninguém sabe o que pode ocorrer – num novo ambiente político, semelhante às execuções pela TV do ano passado.
O esforço para confundir fatos e versões, nessa matéria, é muito antigo. Nos primeiros anos da democratização, a defesa dos direitos humanos era uma questão essencial da vida dos brasileiros – e incomodava em particular os herdeiros da direita militar, que gostariam que a tortura e todos aqueles abusos fossem esquecidos.
Entrevistando essas pessoas em bairros de classe média de São Paulo, o professor Antônio Flavio Pierucci registrou, ali, o nascimento de uma nova direita, extremista, radical, que denunciava o regime democrático por defender os direitos dos presos (chamados de “mordomias”) e não era capaz de oferecer uma proposta política para a maioria dos brasileiros. Sua retórica, assim, era a porrada, a violência contra direitos. Vale a pena ler o professor que, em dezembro de 1987, deixou um parágrafo tão valioso para o Brasil de 2013. Vale a pena registrar que ele não está falando de um conservadorismo tradicional, que respeita os limites da democracia. Pierucci fala da extrema direita:
“Eis porque a nova cara da extrema-direita no Brasil é o que é: despolitizada. Despolitizada a ponto de não lhe restar como via de ancoragem nas massas senão a demagogia do moralismo. E tanto mais despolitizada por insistir na velha astúcia de não dizer-se, ou por não querer reconhecer que a bandeira da intolerância em moral é, na verdade, o último trunfo para conseguir legitimar-se de voto popular numa sociedade periférica em que o liberalismo econômico não tem audiência de massa, não mobiliza o voto, não é bom de palanque. Que dizer então do neoliberalismo, do mito do ‘Estado mínimo’!
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