A ditadura conseguiu mais do que impor a censura cultural no país. Conseguiu, também, uma coisa amarga, que foi cortar a solidariedade entre os artistas. Essa é uma lembrança que o teatrólogo, roteirista de cinema e autor de novelas Lauro César Muniz guarda até hoje do período de 21 anos do regime militar. Neste 2014 em que se completam 50 anos da quartelada de 1º de abril no país, em entrevista que gentilmente concedeu a este blog, Lauro faz um balanço do legado maldito do golpe de Estado na produção artística brasileira.
Antes de se tornar um dos mais conhecidos autores de novela do Brasil, Muniz era um grande agitador cultural dos anos 60. Produziu peças marcantes e que ficaram na historia do teatro brasileiro. É dele uma das principais peças censuradas pelos militares, “Sinal de Vida”. Lauro fez parte do que Augusto Boal – o fundador do “teatro do oprimido” – consagrou como “guerrilha teatral”, uma forma de resistência da classe artística à ditadura.
Poucos autores de novelas – se é que há algum – foram tão felizes e precisos quanto Lauro em expor, apenas num titulo de uma de suas novelas uma das mazelas a que os brasileiros muitos vezes se expõem – a de votar em salvadores da pátria. Ele é o autor da novela Salvador da Pátria exibida pela Rede Globo, em que o personagem de Lima Duarte, Sassá Mutema foi muitas vezes visto como uma parábola positiva de Lula. Isso incomodava a direita que queria eleger Collor.
Lauro já fez novelas com tramas complexas, surpreendentes, repleta de reviravoltas e fatos inusitados. Mas nunca ousou fazer o que, em suas palavras, o Supremo Tribunal Federal (STF) fez: construir a figura de um vilão sem nenhuma prova, sem nenhum fato concreto.
Em conversa com este blog, Lauro critica a condenação de Dirceu com base na teoria do domínio do fato. “Nessa teoria, a justiça se faz a partir da subjetividade de um juiz?! Nem em dramaturgia eu convenço ninguém usando apenas o fator subjetivo em um personagem. Tal personagem é negativo se eu provar ao espectador que as ações objetivas dele são criminosas ou absurdas!”, afirma o autor. “Os juízes deveriam ler um pouco de teatro para conhecer melhor como devem julgar”, acrescenta Lauro.
Nesta entrevista, parte de uma longa série que o blog programa publicar, Muniz também conta algumas passagens de sua intensa juventude vivida sob os anos de chumbo.
Você teve uma peça, Sinal de Vida, proibida pela ditadura militar. Na prática, qual o impacto da censura no resultado do que se produzia na época? Ainda mais para você, que vinha do PCB?
[ Lauro César Muniz ] Sinal de Vida ficou proibida de 1972 até 1979. Premiada em um concurso promovido pela Companhia Teatral de Beatriz e Maurício Segall, a peça chegou a ter programação encenada, no entanto a situação do companheiro Maurício era bastante complicada na época. Enviada depois por Ruth Escobar à censura, foi proibida. Com a abertura (gradual), foi liberada em 1979 com cortes. Com Antônio Fagundes no papel central foi um grande sucesso, permanecendo um ano em cartaz no Auditório Augusta.
Foi uma das primeiras peças liberadas, juntamente com “Rasga Coração”, do Oduvaldo Vianna Filho, e muitas outras que sofreram a mesma interdição. O teatro político permaneceu anos sufocado pela ditadura. Mesmo as peças que buscavam disfarçar a postura antirrepressiva usando linguagem metafórica. Alguns empresários abandonaram projetos mais arrojados, substituindo-os por peças leves, que não se expressavam sobre a realidade mais contundente do país.
Como era a relação entre teatro e o movimento estudantil na época? Quem alimentava quem? E com o movimento operário?
[ Lauro César Muniz ] Durante a ditadura militar e principalmente depois de dezembro de 1968, com a implantação do AI-5, o movimento estudantil – assim como o teatro político e reuniões de grupos – foi vigiado e sufocado. A primeira peça de Consuelo de Castro, “À Prova de fogo” sobre o movimento estudantil, foi proibida pela censura, mas foi encenada várias vezes, clandestinamente, em claro sinal de desobediência civil. Houve um espetáculo lindo de Tim Urbinatti que a polícia chegou a invadir!
Consuelo teve de esperar até 1993 para estrear essa peça, profissionalmente. Foi encenada no mesmo local onde se passava a ação teatral, a Faculdade de Letras da USP, na Rua Maria Antônia. A ditadura matou na nascente uma obra prima. Um movimento criado na UNE, no Rio, o Centro Popular de Cultura (CPC) encenou vários espetáculos nas portas das fábricas, com peças com preocupação mais didática do que estética. Os operários assistiam às peças exemplares com vivo interesse, mas depois de 1964 a ditadura investiu contra a UNE, e o CPC foi proibido. Bem mais tarde, em 1980, um grupo fez nítida autocrítica sobre o movimento do CPC, por seu didatismo explícito e baixo nível artístico.
A relação entre o Teatro e os movimentos estudantis foi muito forte e profunda até 1968, ainda por quatro anos depois do golpe de 1964. Peças de caráter político foram ainda encenadas, com certa tolerância para as que tinham uma estética metafórica. Nesse período cresceu em São Paulo um grupo de teatro que fazia bons espetáculos gratuitos visando a classe operária: o Teatro Popular do SESI (Serviço Social da Indústria, de cunho patronal). Sob direção do Osmar Rodrigues Cruz, ele apresentou um repertório popular de qualidade, mas sem o didatismo do engajamento político. No repertório, “O Milagre de Anne Sullivan” talvez tenha sido o grande sucesso no início dessa companhia. Mais tarde, com a lenta abertura (política), passou a encenar apenas textos nacionais que falavam mais diretamente aos operários e a um público sem hábito de ir ao teatro: “A Falecida” de Nelson Rodrigues; “O poeta da Vila” de Plínio Marcos; “O Santo Milagroso” de minha autoria e “Chiquinha Gonzaga” de Maria Adelaide Amaral. Mas aí a ditadura militar já estava acenando para uma abertura lenta e gradual.
Grupos populares surgiram com propostas de teatro levadas diretamente ao público, em excursões aos bairros mais periféricos e cidades do interior. Destaca-se então o Teatro União e Olho Vivo, organizado e escrito por César Vieira (pseudônimo de Idibal Pivetta, um grande advogado, ferrenho defensor dos prisioneiros da ditadura). Este grupo mantém até hoje suas atividades.
Impossível saber, mas muitos dizem que, sem a ditadura, nossa produção cultural seria muito diferente. Como você avalia isso? O que a ditadura causou de danos à cultura brasileira? Qual o maior mal causado a sua área por aquele nefasto regime? E ao país, num balanço no ano em que o golpe completa meio século?
[ Lauro César Muniz ] Analisando as peças encenadas no período ditatorial fica fácil entender que o teatro estava fechado às grandes encenações. Os próprios produtores buscaram caminhos alternativos para não encerrar suas atividades. Tive uma peça, “Este ovo é um galo”, programada neste período, noticiada nos jornais, mas o produtor recuou, me informou que, apesar de liberada, ela tinha um cunho de provocação ao governo (ditadura). Foi substituída por outra peça nacional ligeira, sem nenhuma conotação política. Até a solidariedade de classe e a ética entre os autores se esvaziava…
As premiações de teatro também foram distorcidas. Vimos coisas absurdas, peças excepcionais (“Arena conta Zumbi”, por exemplo) perder prêmios para peças inócuas: a crítica, que premiava, fazia o jogo da ditadura… Não apenas os valores teatrais foram abafados neste período (1964 até por volta de 1985), mas também o cinema nacional e mesmo o internacional – filmes importantes proibidos pela censura (de serem feitos ou exibidos aqui). Isso atingiu, óbvio, programas de televisão, trechos de novelas, etc… E a ditadura se apoiava na vitória da seleção brasileira na Copa do Mundo…
Como foi a sua relação com a censura naqueles tempos? Quantas peças, textos, novelas censuradas? E em quanto dessa produção você conseguiu burlar a mão pesada e ignorante da tesoura dos censores?
[ Lauro César Muniz ] Um dos grandes acontecimentos de 1968 no teatro paulista foi o enfrentamento da censura e o que chamamos depois de guerrilha teatral: a Feira Paulista de Opinião organizada e dirigida por Augusto Boal. A Ditadura em 1968 recrudesceu seu cerco à cultura e os autores, antes tão unidos, ficaram isolados. Osmar Rodrigues Cruz, diretor do Teatro Popular do Sesi, teve a sensibilidade de sentir o esvaziamento do nosso teatro e nos convidou para um jantar. Talvez até tivesse na época o apoio de alguns empresários que já se ressentiam da mão de ferro dos militares. Os principais autores e diretores do teatro paulista estavam naquele jantar fechado, em sala especial, de um restaurante de São Paulo. Nessa reunião eu lancei uma ideia: reunir todos os autores numa ação de resistência, onde cada um escreveria uma pequena peça.
A minha ideia, que já tinha a simpatia do José Celso (Martinez Correa), era que escrevêssemos uma peça chamada Os Sete Pecados Capitalistas. Cada autor trabalharia um pecado.Boal não hesitou e disse, na hora, que o Arena produziria a peça! Mais ainda, ampliou a ideia: vamos incluir outras áreas, música, com compositores importantes, artes plásticas! Fazer uma feira! A feira paulista de opinião. A censura terá de proibir a arte paulista! Voltamos a nos reunir! A dialogar! Seis autores foram escolhidos: Augusto Boal, Gianfrancesco Guarnieri, Plínio Marcos, Jorge Andrade, Bráulio Pedroso e eu. Claro que a Feira de Opinião foi proibida, mas estreamos com uma liminar, dada por um juiz que, mais tarde, soubemos que pertencia a uma organização guerrilheira. Mas era um juiz em plena função e nós estreamos, com um brado de guerra: não há mais censura no Brasil!
Isso foi em agosto de 1968, no Teatro Ruth Escobar! Feira de Opinião na sala Gil Vicente e o Roda Viva (musical) do Chico Buarque, no Galpão. E aí o Comando de Caça aos Comunistas (CCC) começou a baixar o pau, invadir o teatro e bater nos atores de Roda Viva, um teatro mais fácil de invadir. Então, os atores da Feira e de Roda Viva resolveram se armar para enfrentar o CCC. Os atores atuavam com medo que viesse da plateia algum tiro, uma pedrada, uma bomba molotov. Começamos a ter proteção dos estudantes mais fortes que faziam nossa segurança. O espetáculo fazia enorme sucesso e nossa liminar acabou cassada, mas continuamos fazendo o espetáculo em atitude de desobediência civil. A polícia intervinha, impedia, fechava, e os atores se deslocavam para outros teatros, que interrompia seu espetáculo. Toda a classe teatral estava mobilizada contra essa repressão. Fernanda Montenegro estava em cartaz no teatro Maria Della Costa. Ela interrompeu seu espetáculo, explicou à plateia que o grupo estava sendo perseguido pela polícia política, deu o palco para nossa Feira de Opinião, os atores cantaram alguma canção da peça e denunciaram a brutalidade da polícia. Depois os atores foram para outro teatro e Fernanda continuava seu espetáculo. Em outro dia a Feira foi a São Bernardo e lá chegaram a apresentar o espetáculo completo.
Era uma verdadeira guerrilha teatral, segundo expressão do Boal em sua autobiografia, “Hamlet e o Filho do Padeiro”, onde essa história é contada com detalhes, muito bem contada…
Houve então, logo depois, uma assembleia, no Teatro Ruth Escobar, que Cacilda Becker apoiou, com discursos contra a violência militar. Aquele foi um grande momento de resistência cívica do teatro paulista. Isso até a decretação do AI-5 (13 de dezembro de 1968), quando a ditadura se impôs, deixou cair a máscara: a partir daí não havia nenhum instrumento jurídico possível para enfrentar os militares no poder.
Você participou de atividades políticas durante a ditadura. O que isso tudo impregnou seu trabalho de então, e o que impregnou para o seu trabalho de até agora?
[ Lauro César Muniz ] Participei como militante raso do Partido Comunista Brasileiro (PCB) em célula ligada ao teatro e alguns estudantes. Heitor (codinome) era nosso mentor. Estávamos estudando, discutindo conceitos de economia, ética. Teorias marxistas! Nunca de ação armada. O Partidão era contra. A dialética hegeliana, ferramenta usada por Marx me encantava. Eu era um cara de gabinete, não de ação. Mas participei de manifestações estudantis comandadas pelo Zé Dirceu e o Wladimir Palmeira. Fiz alguns discursos de passeata, em avenidas do centro de São Paulo, subindo em parachoque de carros, estimulando a ação: bolinhas de gude para derrubar os cavalos (a cavalaria da PM era nosso principal inimigo). Alguns dos companheiros deixaram o grupo de discussão e foram para a ação urbana de AGIPROP (agitação e propaganda): “Fora Milicos! Liberdade!”.
Em 1968 eu fui a URSS, a Moscou, por minha conta. Conheci Praga antes de seguir para Moscou e fiquei encantado com as possibilidades de um socialismo liberal. Era a Primavera de Praga! O grande líder Alexander Dubcek era louvado nas cervejarias deliciosas de Praga. Ao chegar a Moscou senti um clima fechado, sombrio. Assisti ao desfile (do 1º de maio) da janela de um hotel na Praça Vermelha e comecei a filmar. Meu quarto foi invadido por mulheres russas, fortes, gritando comigo em russo. Fecharam as janelas do meu quarto e me tomaram a câmera de filmar. Mais tarde fui à gerência, me pediram desculpas e me devolveram a câmera sem tirar as imagens filmadas. Explicação: a lente de minha câmera, vista de longe, parecia ser uma arma… Em agosto, inverno, Praga foi invadida pela União Soviética e eu via tudo pela TV, já em São Paulo (a invasão da URSS pôs fim a Primavera de Praga, abertura liberal do regime tcheco).
Você perdeu amigos na tortura, nos assassinatos cometidos pela ditadura? Colegas, amigos precisaram se exilar? Como manteve contatos com eles naquele período?
[ Lauro César Muniz ] O Ato Institucional nº5 (AI 5) estilhaçou o país. Não havia mais oposição, partido, nada. Ninguém se comunicava. Não recebíamos mais informações sobre onde seria a reunião do partido, onde encontrar as pessoas. O meu apartamento já tinha sido invadido em 1965 pela polícia, para procurar coisas e eu já havia escondido ou jogado fora os meus livros “subversivos” (Marx, Lênin, Leôncio Basbaum, Caio Prado Júnior).
Acabou tudo, nunca mais tive contato com ninguém, nem soube mais do Heitor (codinome) ou de alguns companheiros. Uns foram para a luta armada e morreram. Eu não sabia o nome verdadeiro deles. Convivi com a Heleny Guariba na Escola de Arte Dramática e no Arena, onde ouvia rumores de que ela fora presa tentando sair do país. Foi morta e seu corpo nunca foi encontrado. Em 1971 / 72 escrevi a primeira versão de “Sinal de Vida” pensando na Heleny e refletindo sobre a minha omissão nos dois, três últimos anos. Eu estava na televisão, acomodado.
Na primeira parte da entrevista, até agora, falamos sobre a ditadura e os impactos na cultura. E sobre as passeatas de rua? Você chegou a participar ao lado de José Dirceu de várias delas, certo?
[ Lauro César Muniz ] José Dirceu era o grande líder, comandante da ação estudantil! Tinha um carisma impressionante: jovem, bonito, cabelos longos, barba por fazer, usava sempre uma capa três quartos, que esvoaçava durante suas explosões verbais e lhe dava um aspecto mitológico, quase irreal, que fascinava as garotas e nos impunha o dever de salvar as liberdades democráticas! Ia sempre à frente das passeatas.
Como conheceu Zé Dirceu, como foi a aproximação com ele, como passaram a fazer política juntos e mantêm-se amigos até hoje?
[ Lauro César Muniz ] Conheci o Zé Dirceu em reuniões coletivas. Algumas pessoas do teatro se uniram aos estudantes. Lembro-me dele sempre agitado, caminhando de um lado para outro, recebendo informações importantes que nem sempre podia nos revelar. Depois o encontrei no Teatro de Arena, algumas vezes, com os atores e diretores. Ele parecia bastante ligado e interessado nas ações do teatro. Cheguei a pensar que ele logo se destacaria em uma peça do Arena. Por sua presença forte e marcante daria um ótimo ator!
Naquela agitação do ano de 1968 eu soube que ele foi preso em Ibiúna no Congresso da UNE. Acompanhei com interesse por informações de amigos e comemoramos vivamente, o sequestro do embaixador americano e a libertação de 15 presos políticos, entre eles o Zé Dirceu. Daí em diante ninguém mais teve notícias dele.
E depois?
[ Lauro César Muniz ] Anos mais tarde, no final da década de 1980, em pleno estado de direito, ele frequentou a Pizzaria Paisá, que a minha mulher, naquela época, era sócia. Eu o reconheci de imediato pelo tom mineiro da voz, pelo carinho de suas palavras. Eu sabia que ele havia feito uma cirurgia plástica, mas acho que a cirurgia foi mal feita, porque lá estava o mesmo Zé das passeatas, um pouco mais gordo, mas era ele! Ali trocamos algumas ideias rápidas sobre as próximas eleições, a candidatura de Lula (a presidente da República em 1989), a postura da televisão com relação ao Collor. Eu escrevia “O Salvador da Pátria”, na TV Globo, em que o personagem Sassá Mutema, muitas vezes era visto como uma parábola sobre o Lula. Mas o Zé Dirceu, naqueles encontros, não mencionou nunca a novela.
Você ainda mantém o plano de escrever um filme sobre moradores de São Paulo que lutaram contra a ditadura?
[ Lauro César Muniz ] Sou um ficcionista muito experiente: fiz mais de 20 telenovelas, 16 peças teatrais e tive 13 roteiros filmados. A grande maioria de meus trabalhos fez sucesso. Então eu me sinto um catedrático para dizer: um filme sobre José Dirceu pode arrebatar o País, obrigar à revisão de uma série de conceitos caducos! Isso eu disse a ele, Zé, quando me convidou para jantar em seu apartamento, com o meu querido (Antônio) Abujamra, um grande diretor e intelectual do teatro brasileiro. Uma noite inesquecível! E naquele jantar ainda não sabíamos do resultado assustador, da condenação dos réus do “mensalão”.
Com o julgamento e a prisão do Zé e companheiros, o filme muda o Brasil. A neta do Barretão (Luiz Carlos Barreto), Júlia, me procurou com seu marido, Daniel Tendler, para fazermos um filme (com desdobramentos em capítulos para uma minissérie curta) sobre a guerrilha urbana de São Paulo, contra a ditadura. Achei ótimo, mas nosso papo girou muito mais em torno do José Dirceu do que das generalizações da guerrilha urbana paulista. Por quê? Por que o Zé (Dirceu) é um grande personagem! Qualquer ficcionista sabe que um grande personagem vale mais que um exército, para mobilizar uma plateia.
Um motorista de táxi me disse: o homem comprou votos! Por isso ele tá preso! O povo tenta simplificar tudo em uma frase! Que adianta dizer a ele: o José Dirceu foi condenado sem provas, com o uso de um instrumento inédito no Supremo Tribunal Federal (STF), a corte de Justiça mais alta do país: “o domínio do fato”. O senhor é um advogado? Não! Sou escritor de histórias. O taxista sorri: aqueles homens de capa preta sabem tudo…Será?!
O que é o domínio do fato?! Como leigo, eu nada sabia sobre isso até que um amigo, advogado, me deu uma explicação e eu fiquei tonto, assustado! Bastam indícios e presunções de um delito para se condenar? A prova não é a base para toda condenação?! Nessa teoria, a justiça se faz a partir da subjetividade de um juiz?! Nem em dramaturgia eu convenço ninguém usando apenas o fator subjetivo em um personagem. Tal personagem é negativo se eu provar ao espectador que as ações objetivas dele são criminosas ou absurdas! Nem em novela Dirceu seria condenado! Os juízes deveriam ler um pouco de teatro para conhecer melhor como devem julgar. Para meu espanto, li uma entrevista de um grande jurista, na coluna da Monica Bérgamo, na Folha: Ives Gandra Martins! É um homem ponderado e só se pronuncia quando tem convicções bem sólidas e conhecimento profundo das ações. Pois peço licença à Mônica e ao Dr. Ives para transcrever um trecho de suas palavras:
Ives Gandra Martins – Do ponto de vista jurídico, eu não aceito a teoria do domínio do fato. Com ela, eu passo a trabalhar com indícios e presunções. Eu não busco a verdade material. Você tem pessoas que trabalham com você. Uma delas comete um crime e o atribui a você. E você não sabe de nada. Não há nenhuma prova senão o depoimento dela – e basta um só depoimento. Como você é a chefe dela, pela teoria do domínio do fato, está condenada, você deveria saber. Todos os executivos brasileiros correm agora esse risco. É uma insegurança jurídica monumental. Como um velho advogado, com 56 anos de advocacia, isso me preocupa. A teoria que sempre prevaleceu no Supremo foi a do “in dubio pro reo” [a dúvida favorece o réu].
E logo entendo: preciso no meu filme de um personagem semelhante ao Dr. Ives.
Qual a sua análise do julgamento e da prisão dele, num processo político assim, marcado por ilegalidades do começo ao fim?
[ Lauro César Muniz ] O Zé não falou no celular de ninguém, até onde fui informado (uma das histórias levantadas contra ele mais recentemente) Não há provas?! A voz dele gravada? Nada?! Presunção outra vez? Ele tem direito a regime semiaberto e está fechado por causa dessa hipótese?! Isso me lembra as arbitrariedades do regime militar! Estamos vivendo este inferno outra vez?!
Você, que tanto luta no seu campo por um país digno e em que o povo tenha dignidade, melhor qualidade de vida e prosperidade, está otimista com o Brasil, com o futuro?
[ Lauro César Muniz ] Não! Estou assustado! O PT “está no governo” há 11 anos. Onde estão os grandes líderes deste partido que não agem e nada fazem? Seria um erro presumir que o Lula tinha conhecimento desse “caixa 2” (não é mais que isso). Pela lógica há essa presunção… Mas seria presunção e não prova! Claro que o grande presidente Lula jamais poderia ser condenado por presunção! Mas o Zé Dirceu foi! O Genoino foi! Outros foram!
Confiram as entrevistas anteriores do nosso especial 50 anos do Golpe:
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