Nostalgia de tiozão é uma merda
Comida suficiente para alimentar um destacamento completo do exército, tias discutindo os últimos acontecimentos do folhetim das 21h, priminhos correndo num zigue e zague do inferno e tomando Coca-Cola como se fosse água. Mãe, pai, avô, avó e aquele namorado mal encarado da sua prima só se preocupam com a comida.
No meio dessa trama há, houve e sempre haverá aquele tio que você não vê com frequência, não conversa muito e nem tem intimidade suficiente. Vive nesse personagem – como se fosse um segundo coração a pulsar – a insistência em puxar os assuntos mais constrangedores nos momentos errados.
É dar espaço e ele vai dizer que está tudo acabado para o “cidadão de bem”, que a saída possível é amarrar todo mundo no poste e descer o porrete. Em dado momento da noite, ele – sempre ele – vai se ver no papel de dizer que “não tem preconceito, mas…”
No entanto, nada é tão frágil ou me atinge mais do que aquela velha muleta lógica “no meu tempo”, “na minha época”, “naquele tempo”. Esse gosto por amar o retrovisor é comum tanto na cena horripilante do jantar de família quanto no papo de boteco. Você não sabe de onde vem, mas em dado momento alguém saca do bolso as glórias de décadas que morreram de velhice.
Lembro do dia em que estava numa dessas festas de apartamento, conversava sobre cinema e televisão e um tiozão precoce, três ou quatro anos mais velho que eu, sacramentou: “Tá aí… Taxi Driver. Não se faz mais filmes assim!”
Fiquei incomodado.
Não pelo filme, um Scorsese fodão, puro sangue, coisa fina em todos os sentidos. Mas pela sentença prepotente, unilateral, rígida.
Retruquei: “Pô, beleza, mas o que você tem visto de novo?”
A resposta foi tão vaga quanto se podia esperar: “Ah, não tenho mais saco para esses filmes de hoje em dia”.
Lá estava mais uma vez um caixote, um fardo, como se nada pudesse ser produzido de bom nesses dias em que a Terra insiste em continuar girando.
“Um ponto importante da sabedoria de vida consiste na proporção correta com a qual dedicamos a nossa atenção em parte ao presente, em parte ao futuro, para que um não estrague o outro”.
Não se sabe se ele ficou puto numa cervejada na Alemanha cercado por um bando de saudosistas, mas o conselho aí em cima é do Arthur Schopenhauer.
O filósofo alemão citava a impossibilidade de alterar o que passou, já que somos apenas expectadores e que nada que a gente faça vai fazer o tempo voltar. Daí viria essa sensação de que tudo já foi lindo, tranquilo e bom para o cidadão bípede pagador de impostos que o tio chato tanto adora.
Jorge Luis Borges, mítico autor da literatura sul-americana, deve balançar o esqueleto cada vez que um tio chato desabrocha a falar.
“Uma das escolas de Tlön (planeta imaginário criado por Borges) chega a negar o tempo: razão em que o presente é indefinido, que o futuro não tem realidade senão como esperança presente, que o passado não tem realidade, mas, sim, como eu lembro disso.” –Jorge Luis Borges
Quando olhamos pra trás, vemos uma amostra melhorada do que existia. Só a nata sobrevive diante da seleção natural feita pela memória e pela história.
Saiba apenas que para cada Beatles houve outras mil péssimas intenções de se fazer música pop vindo da Inglaterra. Nos EUA, por exemplo, The Monkees empilhavam dólar em cima de dólar com um punhado de canções que não eram cantadas por eles. Cada noite gelada no Village, em Nova York, era uma tentativa frustrada de encontrar um novo Bob Dylan no começo dos anos 1960 (alguém aí lembrou de Inside Llewyn Davis, dos Coen?)
Não se engane: para nascer um 2001 – Uma Odisseia no Espaço, outros 500 filmes espaciais execráveis foram filmados naquele distante 1968.
Para cada Pelé havia uma infinidade de pernas de pau. No futebol, em específico, aliás, temos aí Cristiano Ronaldo e Lionel Messi desfilando arte semanalmente numa constância pouco vista nas quatro linhas. Não vale cair na armadilha de tentar colocá-los nos pastos e nas chuteiras que não davam condição de jogo nem ser falacioso ao ponto de defender que bastava transportar Maradona, Cruyff, Di Stefano, Zizinho ou qualquer outro gênio do esporte bretão de décadas passadas e eles dominariam o esporte atualmente. Se precisasse dar um palpite, o tiozão diria que craque é craque. Eles se adaptariam em qualquer época, sob qualquer dificuldade.
O bom e velho tio ignóbil possivelmente afirmaria, já meio embriagado de vinho barato, que as escolas públicas eram melhores na época dele, ignorando completamente os castigos físicos, os professores carrascos e as características intrinsecamente antidemocráticas do regime que matou e reprimiu outros tantos estudantes entre as décadas de 60 e 80.
E a qualidade de ensino? Bem, a rede pública era mínima, não atendia nem metade da população e a rede privada era ainda incipiente, não conseguia roubar as melhores cabeças das escolas com salários e condições de vida mais favoráveis. Mas se tudo isso significar que tudo era melhor antigamente para você, ok.
Isso dito, chegamos a mais um chavão: “no meu tempo, as pessoas iam para rua”. Bem, ainda que se tente, sob chuva de cassetetes, bombas, pescotapas e absurdos em geral, o fato é que o estado de convulsão nas alamedas, vielas, ruas e avenidas poucas vezes foi tão grande.
É um cheiro de maio de 1968 espalhado no ar. Ucrânia, Turquia, Egito e para todo lado que se olhe com a mínima atenção. Por aqui, o fatídico dia 20 de junho de 2013 colocou 1,25 milhão de pessoas nas ruas. Se há uma luta justa, se as pessoas estão sabendo realmente o que querem ou se caminham bovinamente, aqui ou em qualquer outro lugar do globo, não estou pronto para dizer.
Em entrevista à revista Época, o sociólogo polonês Zygmunt Bauman foi indagado sobre seu possível pessimismo quanto ao dia a dia de nosso mundo binário. A descascada foi a seguinte:
“A meu ver, os otimistas acreditam que este mundo é o melhor possível, ao passo que os pessimistas suspeitam que os otimistas podem estar certos… Mas acredito que essa classificação binária de atitudes não é exaustiva. Existe uma terceira categoria: pessoas com esperança. Eu me coloco nessa terceira categoria.”
Esperançosos, pessimistas ou otimistas, pouco faz diferença. O que se pode afirmar com mínima lealdade factual é que, por mais contraditório que possa parecer, a galera está na ativa, ainda que estejamos cada vez mais com cara e trejeitos de Theodore, de “Her”.
Nossa rotina não tem carro voador, empregada doméstica robô nem nada que a Hanna Barbera projetou nos Jetsons. Nem por isso deixa de ser um dos períodos mais loucos, intensos, bizarros e apaixonantes da história da vida humana recente.
É bem fodão ter 27 anos e vivenciar tudo que está por aí. O Brasil pagou sua dívida externa – eliminando um trecho importante das aulas de História da quinta série –, um negro foi eleito e reeleito ao cargo eletivo mais fodão do planeta, o Uruguai, un pais muy chiquito, começou a peitar oenorme lobby pela eterna manutenção das drogas como ilegais (Mujica, aquele abraço) e a ciência parece caminhar para um final feliz contra a AIDS. Semana passada, Jason Collins, primeiro atleta profissional a se assumir gay na NBA, entrou em quadra sob aplausos da torcida do Brooklyn Nets. A camisa dele, aliás, é a mais vendida nos Estados Unidos.
Sei lá. Pensando bem, é bem provável que, ao olhar para trás, acabe achando tudo mais bonito. Que sinta saudade da estreia do Tinder, dê risada do pânico que o Lulu causou nos homens ou sinta saudades de achar as filas para os lançamentos da Apple a coisa mais imbecil do universo. E aí, sem perceber, vai ser minha vez de brincar de tiozão do pavê.
Pode apostar.
RAFAEL NARDINI
Tem sobrevivido como jornalista, mas se sente vivo de verdade quando tem os ouvidos conquistados por alguma canção que não conhecia. Torcedor de arquibancada, fake de músico e curioso na cozinha.
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