Disse a você que cabia um mundo dentro de qualquer pequena coisa, um simples objeto do dia-a-dia.
A caneta estava à mão e – que malandragem a minha! – a escolhi como tema.
Caneta é fácil!
Inda se fosse um prego, uma tampa de lata, um pedaço de biscoito, talvez precisasse ser poeta. Mas caneta?
Caneta cabe um infinito dentro!
Mas a se a caneta é fácil, não é óbvia.
Não é uma caneta e pronto!
Um pedaço de plástico, com um canudo também de plástico por dentro, cheio de tinta, com uma ponta roliça – feita daquele palavrão, tungstênio – e uma tampa, é claro, pra tampar.
Não, isso seria fazer pouco caso da caneta, como quem olha uma pessoa e diz: olha, lá estão cabeça, tronco e membros!
Caneta tem jeitos, intimidades, profundezas.
Está vendo esta da qual falamos?
Aparentemente transparente? Pois ali dentro estão terras e mares, pessoas e bichos, amores, ódios, tristezas e sorrisos, como numa Arca de Noé onde sobrevivem à nossa falta de tempo.
Estão ali apertados, presos, olhando invisíveis, como que nos pedindo para que os libertemos, para voltar a ser m-a-r, a ser g-a-t-o, a ser c-ã-o, a serem os nomes que se confundem com eles próprios.
Veja aquela coluna azul, esta atmosfera de tinta onde estão estes viventes dos três reinos (quem disse que pedra e água não vivem?) .
Para que eles sobrevivam, a caneta deve ser azul como um céu carregado de ar profundo.
Caneta que não é azul, é arremedo de caneta. Perde a vida profusa que toda ela deve conter.
Caneta preta? Cor de máquina, de computador, de letra de forma pré-moldada, de documentos e jornais, de verdades absolutas que não querem resposta, contestação. Preto é letra de forma, certa demais.
Vermelho é o contrário, cor de coisa errada, de nota baixa, condenação de nosso próprio escrito.
Roxo? Verde? Funéreo, um e plácido o outro, ambos demais. Já imaginou uma declaração de amor, um carinho, em roxo? Uma saudade, um adeus, em verde claro?
Azul, tem de ser azul a minha caneta, azul profundo e discreto, para que quem brilhe e chame a atenção seja a palavra escrita.
Além da cor, é importante para a boa expressão o estado da tinta. Como ensinam os professores de física, todo líquido toma a forma daquilo que o contém.
E o que contém a tinta deitada sobre o papel é a palavra, se amoldando, líquida, ao que se quer dizer, sem faltar pedaços ou se derramar pelas bordas, deitada ou de pé conforme o talho do escrevinhador.
Além do estado físico adequado, deve a tinta gozar de bom estado de nervos.
Fria e esquecida nas gavetas, ela resseca; quente demais, tem o mau hábito de estourar, de preferência no bolso das camisas novas, de vez que canetas devem ser conduzidas sempre perto do coração.
Agora tratemos das vantagens da caneta sobre o lápis na escrita, na qual reina absoluta, deixando ao seu primo o império dos desenhos.
A tinta é indelével, como diziam as embalagens engraçadas dos tinteiros de antigamente, enquanto o grafite se apaga com a borracha.
De um lado, isso condena o arrependimento e o erro com a punição do rabisco evidente, envergonhante.
De outro, dá-nos a sensação de eternidade: risco na pedra, entalhe na árvore, destinados a sobreviver ao escritor e seus sentimentos.
Todos nós queremos ser vistos, queremos ser lembrados. Quem não quer uma máquina fotográfica, uma filmadora? E como, por nascimento ou idade, uma certa hora acabamos sendo mais bonitos por dentro que por fora, a caneta acaba nos dando os melhores retratos, os mais expressivos, os mais verdadeiros.
Canetas têm múltiplas utilidades. Além de escrever, servem para tirar cera do ouvido, emprestam suas tampinhas para esgravatar a sujeira das unhas e transmudam-se em zarabatanas para os moleques atirarem bolinhas de papel na nuca dos professores. Mas, além disso, já foram – ainda são – tantas outras coisas…
Já foram espadas, flechas de Cupido, cetros de reis sábios, chicotes de tiranos, serviram de grades de prisão, alfanjes no pescoço dos condenados, chaves para algemas de presos, tanta coisa…
São objetos poderosíssimos que, com um ajuste ali, outro aqui, vêm desafiando os séculos.
Dizem até que são encantadas, varinhas de condão detentoras do poder misterioso de materializar os nossos sonhos.
Termino aqui esta minha ode à caneta, que escrevi com uma delas, no ônibus, e passo a limpo no computador. Corrijo, assim, discretamente, as vacilações da mente e a insegurança da mão humanas.
É que a caneta, ela sim, é uma máquina perfeita, delicada demais para um bruto como eu.