E então me dá uma sensação ambígua depois de todas as lembranças nascidas dos 50 anos do golpe.
Nunca falamos tanto de tanta gente.
“Janguei”, por exemplo. Cresceu em mim a admiração por João Goulart, o presidente deposto em 1964 e depois, por tantos anos, exposto a uma terrível propaganda caluniosa e infame.
(“Jangar” era o verbo usado na música de Jango nas eleições de 1961. O cantor dizia que ia “jangar”, votar em Jango.)
Tanta coisa foi silenciada em torno de Jango. Soubemos agora que ele era um presidente altamente popular quando foi derrubado. Era o primeiro nas preferências dos eleitores para as eleições de 65, bem à frente de seu carrasco, Lacerda, o Corvo.
Soubemos também que ele planejava dar voto aos analfabetos, na época cerca de 30% dos brasileiros. Só muitos anos depois os analfabetos foram libertados da exclusão eleitoral.
Também vimos que ele criou coisas como o 13.o salário, que na primeira página o Globo definiu como uma calamidade.
Como ministro do Trabalho de Getúlio, no começo da década de 1950, foi Jango quem fez os empresários aceitarem que greve não era coisa de polícia. Ele forçou as negociações entre as partes e mudou a história do sindicalismo no país.
Jango preferiu perder o poder a trair seus amigos sindicalistas. Em sua última conversa com o general sem cujo apoio os golpistas não teriam sucesso, Jango ouviu que poderia permanecer no poder desde que rompesse com os sindicalistas.
Não rompeu.
Soubemos, ainda, que numa entrevista inédita concedida a um brasilianista poucos anos depois da queda, ele argutamente identificou como um dos fatores chaves para Março de 64 a brutal guerra comandada pela mídia para desmoralizá-lo.
Foi bom reencontrar um Jango tão diferente daquele que nos habituamos a ver em anos de desinformação da ditadura.
É como se ele tivesse sido, enfim, reabilitado.
Mas o que mais me tocou foi o reencontro fugaz com os jovens idealistas que tombaram na busca de um Brasil melhor.
Foram capturados, foram torturados, foram mortos. Mas não foram derrotados porque seu sonho vive em todos os que rejeitam uma sociedade tão iníqua, tão injusta, tão cheia de privilégios para uns poucos.
Gabeira, numa entrevista à Folha, disse uma tolice. Afirmou que eles lutaram pela ditadura do proletariado, e não pela democracia.
Os anos parecem ter tirado a visão de Gabeira, ele próprio um militante da luta armada.
A luta dos jovens idealistas era, simplesmente, por um Brasil justo. Viveram para isso, e morreram por isso.
Foram, durante anos, satanizados por aqueles que favelizaram e sangraram o Brasil. Eram terroristas sanguinários, segundo as autoridades e a mídia.
Como Jango, também eles foram simbolicamente enfim reabilitados nestes 50 anos de golpe.
Eram os melhores de sua geração, os mais sensíveis aos horrores sociais promovidos pela ditadura, os mais generosos, e os mais dispostos a imensos sacrifícios.
Nos últimos meses, mergulhei na vida de muitos deles em livros, artigos, documentários. Dodora. Beto. Tito. Ana K. Aurora. Soledad. Tantos.
Encerrados os eventos em torno dos 50 anos do golpe, é tempo de deixá-los, enfim, em paz.
Eles saem agora do palco para o qual foram trazidos, do jeito certo, nos últimos meses.
Como que me acostumei à presença deles, e vou sentir a falta deles, como se fossem amigos que partem, eles, aqueles jovens brasileiros que ousaram enfrentar a ditadura e os homens maus que a mantinham.
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