O petês e o tucanês
A campanha era a de 1985, aquela em que Jânio Quadros ganhou de Fernando Henrique, depois deste ter sentado na cadeira de prefeito de São Paulo antes da apuração final dos votos.
Para um dos raros comícios na periferia (Jânio, ao lado da esposa Eloá, preferia verberar contra bandidos e sonegadores em despojado programa eleitoral de TV), levou o ex-ministro da Fazenda, Delfim Netto, que assim concluiu sua peroração palanqueira: “A grande causa do processo inflacionário é o déficit orçamentário”.
Após a fala, Jânio puxou Delfim de lado e cochichou: “olhe para a cara daquele sujeito ali. O que você acha que ele entendeu de seu discurso? Ele não sabe o que é processo, não sabe o que é inflacionário, não sabe o que déficit e não tem a menor ideia do que seja orçamentário. Da próxima vez, diga assim: a causa da carestia é a roubalheira do governo”.
O guru da economia, a quem todos hoje recorrem para explicar os sobressaltos que deixam interrogações no ar, passou a reservar seu economês para plateias mais acessíveis ao vocabulário de questões complexas.
O estilo Jânio marcou a história da expressão e do comportamento dos atores políticos. Ele foi o ícone da irreverência. Ponderável parcela da admiração que angariou em todas as faixas da população se deve ao “modo janista de ser”, do qual se extraía um conjunto de valores, entre os quais o da autoridade.
Jânio forjou uma linguagem política, composta pela imagem histriônica e adornada de trejeitos, olhares esbugalhados, roupas mal ajambradas, compassos e pausas que imprimiam força à fonética esganiçada de construções exóticas. Semântica e estética juntavam-se em apelativa performance que, aos olhos e ouvidos dos espectadores, chamava atenção.
Pois bem, puxando a linguagem janista para a atualidade, podemos concluir que petistas e tucanos também desenvolveram seu jeito de ser no campo da verbalização, o que explica maior ou menor penetração e/ou rejeição de uns e outros na esfera dos conjuntos sociais.
O dicionário do PT tem um autor
, Luiz Inácio, responsável pelo que se pode designar como “petês”, dialeto que ecoa bem no ouvido das massas. Já o PSDB criou uma enciclopédia, pontuada pelos dons sociológicos do ex-presidente Fernando Henrique e recitada por uma plêiade de especialistas, dentre os quais economistas de alto coturno. Nela, grupos mais esclarecidos da população têm acesso às mais interrogativas questões da conjuntura.
Por que vale a pena discorrer sobre as linguagens dos principais contendores do pleito deste ano? Pelo que representam no fatiamento eleitoral. Os modos tucano e petista de ser abrem a pista por onde decolarão os candidatos Aécio Neves e Dilma Rousseff. Cada qual usará o arcabouço de uma expressão elaborada ao longo de décadas e, hoje, responsável por projetar as imagens públicas de seus partidos e integrantes.
De pronto, convém observar: o principal desafio do PSDB é fazer chegar sua palavra aos habitantes da base da pirâmide; em contraponto, o desafio do PT é convencer estratos médios sobre a propriedade de um falatório, que, a par do tom popularesco, contém laivos (mesmo atenuados) de luta de classes, pobres contra ricos.
Dentro de sua gramática, Lula embute o ideário petista. Diferente de Jânio (que foi professor de português), Lula não capricha na sintaxe, preferindo mergulhar no oceano de analogias, comparações, causos, historinhas, platitudes e metáforas que, em sua voz rouca, soam como a “voz do povo”. O que explica o fato de o jeitão-lula-de-ser não parecer demagógico? A legitimidade.
Luiz Inácio saiu dos fundões para alçar o patamar mais alto da política. Retirante nordestino, transformou-se em símbolo maior da dinâmica social no país. Suas tiradas podem ser toscas a certos ouvidos, mas as galeras das arquibancadas as aplaudem:
“Já tomei tanta chibatada nesta vida que minhas costas estão mais grossas que casco de tartaruga; não sejam apressados: uma jabuticabeira leva tempo pra dar jabuticaba; uma mulher demora nove meses para dar à luz; no Brasil, alguns comiam a massa e o chantili do bolo mas, para a grande população, ficava aquele chumbinho de enfeite que colocam em cima do bolo."
O verbo pouco refinado frequentou, até, reuniões como a do G-20: “Você não faz negociação com o pé na parede, na base do dá ou desce, existe uma negociação". Lula sabe que a lâmina de suas estocadas gera impacto.
Essa é a arma petista que o arsenal “tucanês” deverá enfrentar. Aécio Neves ou Eduardo Campos (que ainda não compôs um dicionário próprio) terão de fazer chegar ao povão matérias complexas como a crise na Petrobrás e conceitos como recuperação da capacidade de investimento, déficit fiscal, alavancagem da infraestrutura técnica etc.
Campos, por exemplo, sabe que se disser aos compatriotas que o Nordeste sofre de “desconforto hídrico temporário” (seca braba) acabará o discurso sob apupos. Neves carecerá mais que boas aulas de experts tucanos para desvendar engrenagens como “redução compulsória do consumo de energia elétrica (corte de energia), retracionismo na empregabilidade (desemprego) ou compensação pecuniária às distribuidoras pelo déficit que enfrentam devido ao racionamento (aumento de tarifas de energia).
E a presidente Dilma?
Ora, ela se agasalha no abecedário lulista. Perfil técnico, não fica bem para ela desfiar o “petês” do guru. Basta a lábia dele para adoçar o coração das bordas sociais. O comando petista intuiu que os ditos usados e abusados por Lula condizem com ethos das massas, estabelecendo fronteiras com a “verbosidade” dos integrantes dos andares superiores. A guerra política do PT, portanto, valer-se-á da expressão das ruas para laçar a simpatia popular.
Conforme se pode constatar, veremos contundente disputa entre dois estilos, dois modos de descrever a realidade. Numa esquina, a turba grita: “a porca torce o rabo”; na outra, ouve-se um grupo que prefere assim dizer: “a esposa do suíno contorce o tendão caudal”.
Gaudêncio Torquato, jornalista, professor titular da USP, consultor político e de comunicação. Twitter: @gaudtorquato
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