Crônica dominical de Luis Fernando Veríssimo

Othelo
Para quem gosta de cinema, Paris é um banquete. Duvido que outro lugar do mundo tenha tantas salas de exibição, entre cinemões e cineminhas. Além dos últimos lançamentos, estão sempre em cartaz reprises de filmes clássicos e festivais de diretores cultuados.
Um favorito reincidente nestes festivais é Ernst Lubitsch, o judeu alemão que representou como ninguém a efervescência cultural de Berlim entre as duas guerras, e, depois, levou para Hollywood seu humor sofisticado.
Gostos rarefeitos como o por comédias americanas dos anos 30 e 40 com o chamado “toque de Lubitsch” são servidos permanentemente em Paris, em pequenas salas onde as instalações precárias não prejudicam nem o conforto dos fanáticos nem a qualidade da projeção.
Foi num desses cinebutiques que vimos recentemente a colaboração de Shakespeare e Orson Welles em “Othelo”, numa versão restaurada. Eu me lembrava de ter visto o filme no seu lançamento nos Estados Unidos, quase 60 anos atrás. Revi agora com, literalmente, outros olhos, pois, infelizmente, não sou uma versão restaurada de mim mesmo.

Orson Welles em Othelo

Orson Welles é, de certa maneira, um anti-Lubitsch. Enquanto o alemão só teve prestígio e sucesso por toda a vida, Welles precisou brigar para fazer seus filmes, sem contar os que não conseguiu fazer.
O fato de ser o autor do que é universalmente reconhecido como um dos melhores filmes de todos os tempos, “Cidadão Kane”, não o ajudou. “Othelo” levou três anos para ser filmado. Sem produtores dispostos a patrociná-lo, Welles usou o próprio dinheiro, ganho com seu trabalho como ator, para financiá-lo.
O maior problema, quando as filmagens eram retomadas depois de cada interrupção por falta de dinheiro, era conseguir reunir de novo o elenco. O resultado dessa irregularidade só aparece no filme na variação da maquiagem do mouro, que, em certas cenas, está mais escuro do que em outras.
Fora isso, o filme é impressionante. Nunca, com exceção, talvez, do cinema expressionista alemão, ângulos de câmera e enquadramentos insólitos foram usados tão poderosamente para criar um clima de presságio e drama.
Hoje, um estilo de filmagem parecido seria considerado preciosismo, mas a idade deu uma certa respeitabilidade ao exibicionismo de Welles. Você o degusta com prazer.
“Othelo” tem algumas das expressões mais citáveis de Shakespeare. “Pompa e circunstância’’, por exemplo. E a autodefinição de Othelo como “alguém que amou não sabiamente mas demais’’. E sua gratidão à doce Desdêmona por ter recompensado o seu relato de batalhas e sofrimentos com “a world of sighs”, um mundo de suspiros.
Como em todas as versões de Shakespeare no cinema, você sente não poder assisti-la com um glossário do lado, para não perder nada da linguagem. A solução é resignar-se a não entender a metade e gostar de tudo. Ainda mais na voz “tim-maiesca” de Orson Welles.

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