O jogral do Brasil aos cacos esforça-se por convencer a sociedade de que seus pés tateiam o precipício no qual o PT transformou tudo aquilo que um dia já foi uma economia de fundamentos sólidos, um país de vida aprazível.
Dá-se a isso o nome de jornalismo; o resto é ideologia.
A sofreguidão prestativa mistura problemas reais e imaginários em uma escalada arfante destinada a validar nas pesquisas da semana seguinte a crispação denuncista emitida no período anterior.
Vive-se uma circularidade. Soa quase como um bate bola entre amigos.
Esse churrasco de compadres, que se repete com regularidade conveniente, incorporou ao rachão o ambiente carimbado das bolsas de valores.
O jornalismo isento grita fogo; em rodízio disciplinado, institutos de pesquisa perguntam ao eleitor ‘se já sentiu o cheiro de queimado’; as bolsas correm e precificam o rescaldo dando ares de consenso ao incêndio antipetista.
Analistas –todos isentos, ideológicos são os blogueiros que entrevistaram Lula-- cuidam de emprestar à pantomima uma seriedade imiscível com a manipulação cotidiana que jorra de todo o processo.
Não se pode negar alguma eficácia ao jogo corrosivo que tem a seu favor os flancos que a transição de ciclo mundial impõe à economia e ao governo brasileiros.
Enquanto for capaz de manter o debate do desenvolvimento sob a neblina dessa isenção, o conservadorismo terá o mando do campo.
Mas só o terá enquanto durar a omissão do PT e do governo.
Se estes resolverem –enquanto ainda há tempo-- esclarecer à sociedade o custo efetivo das soluções propugnadas pela ortodoxia , o jogo pode mudar.
Trata-se de repor o verdadeiro divisor de águas desta eleição.
O conservadorismo insiste que se trata de um embate entre o precipício petista e a estabilidade que só os candidatos dos livres mercados podem restaurar.
Em primeiro lugar, há que se arejar a moldura.
O Brasil faz parte do mundo. O jogo aqui é o mesmo em curso em outras praças do capitalismo internacional.
A escolha, de fato, consiste em reordenar a economia com o escalpo dos assalariados, como prescreve a restauração neoliberal em curso; ou repactuar o futuro construindo uma democracia social, que sincronize ganhos de produtividade, crescimento e redistribuição da riqueza.
Essa é a encruzilhada do 1º de Maio de 2014.
Aqui e em todas as latitudes do planeta.
É ela também que repõe os termos da luta entre capital e trabalho, entre Estado social e estado mínimo, entre Aécios, Campos & Marinas --tanto faz-- e o campo progressista nas eleições brasileiras de outubro próximo.
Talvez seja o pressentimento dessas massas de forças em conflito que explica por que 72% dos eleitores consideram o governo Dilma entre ótimo, bom e regular (segundo a última CNT), apesar do bombardeio diuturno dos isentos rapazes da mídia.
O governo e o PT precisam ajudar essa intuição com a força do esclarecimento político para que a sociedade tenha a certeza de que existe uma escolha a ser feita .
E que ela pode fazer a diferença entre o Brasil que somos e o que gostaríamos de ser.
O conservadorismo prefere entregar o timão da travessia à mão invisível dos livres mercados.
A escolha predefine o vencedor do embate com base nas regras que lhes são intrínsecas, a saber: desregulação de direitos trabalhistas, choque de juros, arrocho fiscal, liberdade irrestrita aos capitais e privatizações.
A repactuação democrática do desenvolvimento, ao contrário, traz o embate para o delicado campo da negociação política; inclui prazos, sacrifícios e metas a serem pactuados em sintonia com ganhos de produtividade e crescimento que deem coerência macroeconômica ao processo.
Trata-se de promover uma mudança na correlação de forças pós-crise de 2008. E de fazer da campanha de outubro o seu cenário.
A opção conservadora é mais simples e direta.
Desde a estrutura do Estado, aos ventos internacionais, passando pela prontidão plutocrática, até aos aparelhos ideológicos da sociedade, com a prestimosa turma do jornalismo isento à frente, tudo está em linha para deflagrá-la.
O que atrapalha o cortejo é presença contraditória do PT na direção do país desde 2003.
Com as consequências sabidas.
A principal delas sendo a emergência de um novo protagonista representado pela ascensão de 53% dos brasileiros, que, sozinhos, formam hoje o 16º maior mercado popular do mundo.
O que fizeram os governantes das economias desenvolvidas desde os anos 90 — com os aplausos obsequiosos do dispositivo midiático local — foi lubrificar uma espiral inversa.
Essa à qual o conservadorismo pretende alinhar o país, se vencer em outubro.
Tome-se o caso mais ameno dos EUA, para não insistir no funeral econômico promovido na Europa pela rendição socialista, para júbilo da extrema direita.
Nos EUA, ao contrário, há uma recuperação nos indicadores de mercado.
Mas ela não impede que o prestígio de Obama derreta aos olhos da sociedade, que hoje lhe atribui taxa de aprovação equivalente a de Bush nos piores momentos.
Por quê?
Porque a propalada retomada não inclui o resgate dos mais pobres, nem a reincorporação da classe média no comboio dos vencedores.
O grande séquito dos ‘ loosers ‘ norte-americanos não foi obra do improviso.
Desde os anos 70, com as reformas neoliberais, a participação do trabalho na renda mundial declina.
Recente debate promovido pela rádio Brasil Atual mostrou, por exemplo, que 2/3 das nações integrantes da ONU promoveram cortes em direitos trabalhistas nas últimas décadas.
Os EUA foram o palco de uma das decepações mais drásticas.
Hoje, a parcela da renda destinada aos trabalhadores norte-americanos está no nível mais baixo desde 1950.
Os lucros das grandes corporações, em contrapartida, consomem a maior fatia do bolo já registrada desde 1920.
Esse arrocho estrutural --associado a distorções cambiais—explica em boa parte a brutal diferença de custo entre fabricar manufaturados no Brasil e nos EUA.
Em 2004, segundo dados publicados pelo Valor Econômico, o custo da indústria brasileira era 3% menor que o da norte-americana; hoje é 23% maior.
O fato de Obama não ter conseguido até agora reajustar um salário mínimo congelado há 15 anos, diz muito sobre as escolhas de futuro embutidas nessa diferença de competitividade.
Se por um lado ela inclui opções indesejadas, por outro é evidente que a construção de uma democracia social no Brasil exige respaldar seu custo em contrapartidas de produtividade, sem as quais a artificialidade do processo desembocará em uma espiral salários/preços de consequências sabidas.
Restaurar o modelo neoliberal, em contrapartida, como quer o conservadorismo, é repetir o percurso que desembocou justamente no colapso de 2008, e hoje catapulta a extrema direita na Grécia, França, Inglaterra (leia a análise de Marcelo Justo; nesta pág).
Não apenas isso.
Foi sobre uma base de renda e trabalho esfacelados pela transferências de empregos às ‘oficinas asiáticas’, que se instalou a desordem neoliberal.
A asfixia desse arranjo capitalista só não explodiu antes de 2008, graças à válvula de escape do endividamento maciço de governos e famílias, que atingiu patamares insustentáveis na bolha imobiliária norte-americana, espoleta da maior crise do capitalismo desde 1929.
Quando as subprimes gritaram — ‘o rei está nu’, todo o edifício de uma ciranda financeira ancorada no crédito sem poupança (porque sem empregos, sem renda e sem receita fiscal compatível) veio abaixo.
A tentativa atual de ‘limpar o rescaldo’ resgatando apenas seus gargalos financeiros --salvando os bancos e arrochando ainda mais os assalariados e os pobres — é mais uma forma de perpetuar a essência da crise do que de enfrentar as suas causas.
É nessa roleta russa que o conservadorismo quer engatar o futuro do Brasil.
O jogo, portanto, é pesado.
Controlar as finanças desreguladas é um pedaço do caminho para controlar a redistribuição do excedente econômico, ferozmente concentrado nas últimas décadas, na base do morde e assopra – -arrocho de um lado, crédito do outro.
Preservar o modelo, adicionando-lhe a contração do crédito, como se tenta agora, desemboca nas manifestações mórbidas de totalitarismo em curso na Europa.
A produtividade imprescindível à renovação dessa engrenagem requer a construção de um outro percurso. Distinto da compressão dos holerites, do emprego e dos direitos sociais preconizado pelos jornalistas isentos.
A pactuação política de um novo ciclo de expansão da economia certamente é um caminho mais longo que o ajuste instantâneo oferecido pelo ferramental ortodoxo.
Mas o Brasil ainda preserva em seu metabolismo uma estrutura de organização social e sindical que pode e deve ser rejuvenescida com essa finalidade.
Dispõe, ademais de um bloco progressista que mudou, para melhor, a face da sociedade em mais de uma década à frente do Estado.
As eleições de 2014 configuram uma derradeira oportunidade para as duas pontas renovarem seu estoque de força e consentimento na repactuação dessa heresia histórica.
Ou seja, construir um Estado social em uma nação em desenvolvimento.
A alternativa, repita-se, é arrocho.
Editorial da Carta Maior por Saul Leblon
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