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Editorial


A urgência da Esperança não admite mais ilusões
Assim como não calaram Nelson Mandela, não calarão Lula, armado de um projeto social arrebatador de Futuro
golpe jogou a cartada com a qual pretende virar uma página dupla da história brasileira.
 
Encerrar a era Vargas e o ciclo Lula.
 
Estripou os direitos trabalhistas conquistados e defendidos ao longo de 74 anos, desde a criação da CLT, por Getúlio, em 1943; ato contínuo, condenou ao cárcere, por uma década, o maior líder popular brasileiro, Lula, de 71 anos, presidente duas vezes, favorito inconteste nas sondagens eleitorais para 2018.
 
Quis o destino que o conjunto acontecesse na mesma data em que, há 55 anos, Jango criava o 13º salário para os trabalhadores brasileiros, recebido com manchetes aterrorizantes pela mídia que dois anos depois festejaria o golpe de 1964.
 
A apoteose das últimas horas de certa forma esgota o repertório da ‘progressão’ golpista em 2017.
 
O da resistência democrática, ao contrário, pode enrijecer.
 
Longe de ser o fim, a tentativa conservadora de inocular prostração na sociedade, poderá inaugurar uma escalada de mobilizações e impor maior clareza programática no projeto de futuro capaz de unir a frente popular e arrebatar o país.
 
A prefiguração do futuro preconizado pelo golpismo é medonha.
 
Com certa soberba histórica nem se disfarça a pindaíba social reservada à nação brasileira.
 
A sofreguidão reflete de certa forma o escaldado retrospecto das oito vezes em que essa ofensiva foi interrompida, em meio século de luta de classes.
 
Em 1954, pelo levante popular após o suicídio de Vargas; em 1961, na campanha da legalidade pela posse de Jango; em 1984, na luta pelas Diretas Já! -- derrotada, mas que levou à conquista superior da Carta Cidadã, de 1988 e, finalmente, nas quatro vitórias presidenciais sucessivas de Lula e Dilma em 2002, 2006, 2010 e 2014. Era demais o risco de um novo revés em 2018.
 
Derrubar Dilma para inviabilizar Lula fazia parte do ciclo político da tolerância conservadora em nossa história. Erros na condução da crise econômica serviram apenas de lubrificante: a engrenagem já fora acionada quando as urnas de 26 de outubro de 2014 refugaram, pela quarta vez sucessiva, o projeto antissocial e antinacional ora imposto à nação.
 
A ofensiva revanchista culminada nas últimas horas calcifica as representações dos trabalhadores (sindicais e partidárias), sangra sua estrutura financeira, ataca sua credibilidade e busca encarcerar sua principal voz.
 
Se o nome disso não é golpe será preciso inventar um outro para defini-lo.
 
A existência altiva de uma organização de trabalhadores constitui um freio inestimável às arremetidas da barbárie capitalista em qualquer época, em qualquer sociedade.
 
Dispensar à destruição do PT e de Lula uma centralidade equivalente a atribuída pelos mercados à revogação do direitos sociais e trabalhistas explicita a funcionalidade de Moro.
 
O seletivo afinco do juiz da praça de Curitiba em atender à demanda política número um do conservadorismo -- calar a única voz ouvida por aqueles aos quais a Globo gostaria de falar sozinha-- é um requisito para viabilizar a restauração do trabalho avulso diante da coesão patronal.
 
Descortina-se –mesmo aos olhos antes distraídos—a natureza do futuro que se reserva à sociedade brasileira: uma nação feita de gente barata, um país entregue ao abismo da desigualdade abissal, sem laços compartilhados no trabalho, na velhice e no ganha pão.
 
Esse Brasil mexicanizado, de vidas ordinárias, entregues ao arbítrio do mercado e das gangues, mimetiza, num país de carências bíblicas, as incertezas e vicissitudes do voo turbulento do capitalismo global, em um estágio de mutação desordenada.
 
O discernimento do futuro inscrito na apoteose golpista pode gerar no eleitor de 2018 o efeito que se quer prevenir com a eliminação de Lula da urna. É ostensivo o anseio conservador pela condenação ‘célere’ do candidato que lidera as sondagens, como pede o editorial da Folha no dia seguinte à sentença de Moro. 
 
A tentativa da destruição gêmea de Lula e dos direitos sociais e trabalhistas desnuda perigosamente a virulência dos marcos do projeto conservador para o país.
 
A literalidade dos impactos na vida cotidiana, sobretudo dos mais humildes que perdem a proteção da lei e a voz que poderia representa-los pode ser a tocha de uma espiral de conflitos de consequências imprevisíveis.
 
O golpe de 1964 levou quase cincos anos para encontrar um chão ‘institucional’ baseado no terror, na tortura e na censura.
 
A manipulação midiática e a farsa de um parlamento contra o povo não serão suficientes para sustentar a reordenação conservadora atual, se for escancarada a sua âncora de des-emancipação social. 
 
A verdade é que o esgotamento da ordem neoliberal no mundo requisita um poder de coordenação econômica e de planejamento democrático inverso ao que se desenha aqui.
 
Reduzir o país a uma dívida pública paga em dia, a juros suculentos, às custas da agonia falimentar dos serviços públicos, dos direitos, da renda e do emprego só é viável no imaginário de quem já se dissociou até fisicamente do destino da sociedade e da sorte do seu desenvolvimento.
 
Quem? 
 
A minoria rentista que da escada do avião acena recomendações de uma dantesca ‘purga’ na Constituição de 1988 para equilibrar ‘o fiscal’, às favas o povo, esse estorvo da boa finança (leia nesta pág. http://www.cartamaior.com.br/?%2FEditorial%2FBye-bye-Brasil%2F38336).
 
O jogo, portanto, atingiu o ápice da violência de classe.
 
Não é temerário prever um aguçamento do conflito social no período que se abre.
 
Com um agravante.
 
Inabilitadas pela ruptura da legalidade, as instituições mediadoras, a exemplo de uma parte ostensiva do judiciário --sem falar da mídia e da escória parlamentar de despachantes do mercado-- perderam sua credibilidade ao se acumpliciarem na demolição do pacto da sociedade sem consulta-la.
 
Após quatro derrotas presidenciais sucessivas, sendo a última, de outubro de 2014, com seu quadro mais palatável, as elites decidiram queimar as caravelas e os escrúpulos que supostamente ainda carregariam. 
 
Fizeram-no, como se constata na escalada do cerco ao PT e à Carta de 88 convictas de que só escavando um fosso profundo na ordem constitucional teriam o poder necessário para a demolição requerida.
 
Aquela capaz de transformar a construção inconclusa de um Brasil para todos, na recondução da ordem e do progresso para os de sempre. 
 
Não deixam dúvida as encomendas e as entregas: o golpe veio apunhalar a democracia para atingir o interesse popular. 
 
Vem aí um vergalhão de privatizações e abastardamento de serviços essenciais.
 
Reafirma-se a rigidez recorrente da velha fronteira histórica onde acaba a tolerância do dinheiro e do mercado e começam as bases da construção de uma sociedade mais justa na oitava maior economia do planeta.
 
‘A democracia prometeu mais do que o capitalismo pode conceder sem mergulhar a economia em uma crise fiscal desestabilizadora’, martelam diuturnamente os colunistas do jogral midiático que não cogitam jamais de uma reforma que estenda, por exemplo, a coleta de tributos aos R$ 334 bilhões em lucros e dividendos –isentos de IR—apropriados em 2016 por pessoas físicas das faixas de renda mais altas da sociedade.
 
Ao contrário.
 
O que se enxergou do esgotamento de um ciclo de expansão, agravado pela crise econômica global, foi a oportunidade para um acerto de contas capaz de fazer o serviço completo.
 
Cortar o ‘mal’ pela raiz.
 
Explica-se assim a sanha do assalto às fontes originárias da universalização de direitos na sociedade, desde a CLT de 1943, à Constituição Cidadã de 1988 e o partido que deles se tornou o principal promotor.
 
Pode dar errado.
 
Ter um Estado que trata encargos sociais como estorvo do mercado, por mais que gere uma euforia inicial nos donos do dinheiro, não resolverá as grandes pendências nacionais emolduradas por um pano de fundo desafiador.
 
O capitalismo revira os nós de suas tripas em uma transição épica de padrão tecnológico. 
 
O salto da industrialização 4.0 baseada na robótica, na integração e digitalização dos processos vai ralear e atomizar o mundo do trabalho e desse modo toda a sociedade. 
 
A indústria continuará vital como núcleo irradiador de produtividade e tecnologia na sociedade. Mas será cada vez menos o núcleo ordenador do emprego e dos direitos. 
 
A dispersão laboral que a esperteza conservadora quer acelerar aqui com a implosão da CLT e o barateamento da previdência aponta para uma fragmentação social de consequências imponderáveis.
 
Só a ação planejadora da democracia e do Estado pode impedir que isso transborde em anomia conflitiva, violenta e desesperada.
 
Eis o paradoxo da política de estabilização golpista.
 
A coesão social hoje passa a depender cada vez mais –e não menos-- de políticas públicas amplas, massivas, inclusivas que a sabedoria fiscal dos ‘reformistas’ aqui trata de desossar.
 
O modelo atual de previdência social de fato se esfumou num horizonte de emprego instável e escassos vínculos trabalhistas.
 
Mas a miopia ideológica do conservadorismo extrai daí a oportunidade de apagar o incêndio social com o maçarico da exclusão . 
 
A alternativa ao caos existe.
 
A seguridade social do futuro terá que ser financiada com um imposto geral, progressivo, cobrado de toda a sociedade. O contrário é o apartheid da velhice –e não apenas dos pobres, mas também da classe média-- em privação, abandono, desespero familiar e depósitos de barbárie.
 
O mesmo vale para os demais bens e serviços.
 
No dizer do professor Luiz Gonzaga Belluzzo (que recomenda o filme de Roberto Andó, ‘As confissões’, de onde deriva a enunciação de um personagem para adaptá-la à hora do Brasil) --‘Se queremos reaver a esperança, não podemos mais oferecer ilusões’.
 
A esperança capaz de levantar a rua e redimir os laços sociais em nosso tempo não nascerá da nostalgia de um padrão de desenvolvimento irrecuperável.
 
Nem do seu ‘ajuste’ pelas mãos dos alfaiates das crises humanitárias. 
 
A reforma estabilizadora e crível virá de políticas públicas que inovem diante das incertezas sociais e laborais, e respondam com justiça tributária ao desamparo que estilhaça e subordina a sociedade à ganância financeira.
 
Não por acaso, o que mais se evidencia nessa ciclópica transição emendada à crise de 2008, é a falta que faz agora tudo o que foi subtraído do Estado e da democracia no ciclo neoliberal anterior à explosão das subprimes – regulações, direitos, soberania, garantias trabalhistas, tributação da riqueza --que cedeu lugar ao endividamento paralisante do Estado, salários dignos, indução pública do investimento, amparo social enfim, laços de pertencimento e solidariedade fiscal e humana.
 
A virulência anacrônica do golpe brasileiro quer nivelar o país nesses quesitos, implodindo estruturas que o ciclo de governos progressistas preservou e ampliou.
 
Sua vitória pode estar fadada a ornamentar o cemitério da estagnação e o inferno da desigualdade. 
 
A volta da fome ao país, denunciada agora à ONU, é um sinal da combustão social que arde com rapidez assombrosa. O quadro falimentar do estado no Rio de Janeiro velado por uma procissão de corpos que cresce à razão de um assassinato a cada duas horas é outro grito de alarme.
 
A conclusão explode aos olhos de quem não foi contaminado pela cegueira tóxica do jornalismo isento.
 
Falta investimento público, falta demanda, faltam oportunidades, inclusão e sentido de esperança no capitalismo do século XXI. 
 
Esse corner humano e macroeconômico que o golpe mimetiza para barrar reformas e retificações de privilégios --requeridas pelo esgotamento do ciclo anterior de expansão-- é justamente o desafio ao qual o projeto progressista terá que responder com o desassombro histórico. 
 
A resposta conservadora é a ‘noite de São Bartolomeu’ em marcha que instaura a paz salazarista dos cemitérios.
 
Graças ao monopólio midiático, interditou-se o debate das alternativas à delicada transição de ciclo econômico (local e global) para a qual não existe saída fora da repactuação da sociedade em torno de políticas que fortaleçam, não esmaeçam, as dimensões compartilhadas do presente, do futuro e do passado da cidadania.
 
A manipulação midiática logrou assim avalizar ‘soluções’ que na verdade radicalizam a contraposição de interesses unilaterais, privilegiam os mercados e não os cidadãos, impõem uma regressão civilizacional inconciliável com a manutenção do Estado democrático e, por fim, corroem aquilo que tão arduamente se reconquistou, a autoestima brasileira.
 
Sobra o quê? 
 
Uma ruptura mais profunda do que a mera destituição de um Presidente da República.
 
De diferentes ângulos da economia e da sociedade já emergem avisos de saturação estrutural.
 
Em 1964, a transição rural/urbana impulsionada pela ditadura militar abriu uma válvula de mobilidade momentânea –às custas de uma urbanização de periferias conflagradas-- para as contradições violentas de uma sociedade que já não cabia no seu modelo anterior. 
 
Mesmo com essa válvula de escape, a repressão do regime foi brutal. Hoje não há fronteira geográfica ‘virgem’ para amortecer a panela de pressão da nova encruzilhada do desenvolvimento turbinada pela finança e a tecnologia poupadora de empregos e direitos.
 
As legiões que não couberem aí serão escorraçadas, como estão sendo, pela explosiva segregação que se anuncia, atiradas a uma periferia constitucional e, assim, coagidas a reagir de forma explosiva ou perecer.
 
Erra esfericamente quem imagina que esse estirão pode ser mitigado com a maciça entrega do que sobrou do patrimônio público depois do governo do PSDB.
 
Privatizações não agregam força produtiva nem vagas; apenas concentram ainda mais a renda; definham adicionalmente o já enfraquecido poder indutor do investimento público, reduzem o fôlego do Estado com remessas descasadas de receitas exportadoras. 
 
Radicalizam , enfim, o que o país mais precisa superar.
 
A reedição de um novo ‘1964’ exigiria, desse modo, uma octanagem fascista drasticamente superior à original, para prover o aparelho de Estado do poder de coerção necessário à devolução da pasta de dente social a um tubo que na verdade nem existe mais. 
 
Não há uma terceira escolha. 
 
É voltar às urnas na esteira de forte mobilização da sociedade; ou entregar a nação a uma ‘longa noite de exceção’ de desdobramentos incontroláveis.
 
Essa é a disjuntiva. 
 
Moro se empanturrou da ração midiática na qual foi cevado nos últimos anos. 
 
A sentença com a qual pretende ‘limpar esse terreno’, interditando o nome de quem pode barrar a imissão de posse violenta, não vai mudar, nem resolver a encruzilhada estrutural da qual Curitiba é um simples adereço de mão do conservadorismo.
 
A opção à deriva imponderável cabe à resistência democrática progressista --se cumprir certos requisitos. 
 
Ela terá que ser construída nas ruas, a partir de um desassombrado aggiornamento de sua visão de futuro.
 
A esperança capaz de levantar as ruas –repita-se—não admite mais ilusões. 
 
A repactuação do desenvolvimento brasileiro só deixará de ser uma miragem flácida se calcada em amplas políticas de infraestrutura e inclusão social –inclusive dos filhos de uma parte expressiva da classe média que terão que se inserir em sistemas públicos de educação, saúde e lazer. 
 
O novo é o que é público e comum. Assim como as escalas se ampliam na economia das grandes corporações, elas terão que ser magnificadas também na esfera dos acessos e direitos consagrando o bem comum. 
 
Moro não calará Lula, assim como não silenciaram Mandela, se ele se tornar desde já o porta-voz desse arrebatador projeto de futuro compartilhado.
 
Aquele que repactua a nação consigo mesmo e com o século XXI através de políticas públicas e tributárias que viabilizem o que a elite brasileira – e sua escória parlamentar—se empenha em sonegar: o direito de a maioria sair da soleira do lado de fora do país e da civilização para desfrutar da principal riqueza do nosso tempo: direitos, oportunidades, serviços e espaços públicos dignos para todos.

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Editorial - Diretas Já!


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O poder está nas ruas. E a legitimidade idem.
Reestruturar a sociedade a partir de agora é uma tarefa que apenas o Povo pode realizar integralmente, devolvendo-lhe a Democracia através das urnas.
***

O Brasil adormeceu, não sabe as respostas para muitas das perguntas essenciais cobradas pelo passo seguinte de sua história.


Mas a principal delas para ir direto ao ponto --dispensando-se o retrospecto da implosão da frente golpista, com as gravações de pedidos de propinas feitas aos donos do JBS por Aécio Neves e Michel Temer— é saber se a mobilização popular será capaz de preencher o vazio vertiginoso que se abriu agora não apenas na cúpula política, mas na estrutura do poder na sociedade.

As instituições que dão coesão a uma sociedade fundada em conflitos de interesses agudos, como é o caso da brasileira, cujos abismos de desigualdade são sabidos, estão no chão.

Não há legitimidade no parlamento.



Carta Maior - Editorial


Reprodução

Golpe quer apagar lamparina dos desvalidos

A PEC 241/2016 (PEC da Maldade) viola a Constituição de 1988 que sempre foi vista pela alfândega dos abastados como um bote apinhado de gente perigosa

por Saul Leblon

Em cinco de outubro de 1988, a nação que vivia desacolhida dentro do próprio país conquistou um bote para remar seu anseio por pátria e cidadania.
 
Com as virtudes e defeitos sabidos, a Constituição Cidadã, promulgada há 28 anos, esticou o pontão dos direitos sociais --no que tange à lei--  ao ponto mais avançado permitido pela correlação de forças que sucedeu à ditadura. Conduziu-a um impulso gigantesco de ondas políticas sobrepostas. A resistência heroica à ditadura, em primeiro lugar. Mas também os levantes operários surpreendentes registrados no ABC paulista, nos anos 70/80. Metalúrgicos liderados então por uma nova geração de jovens sindicalistas, afrontaram a repressão e o arrocho, paralisaram fábricas, encheram estádios e igrejas, tomaram praças e ruas. 

'A arma deles é a desesperança. Não passarão'

Não se amarrota uma nação dessas na vala comum das economias aleijadas pelos mercados. O destino do país não pode ser se encolher e se entregar.
Por Saul Leblon:
A decana dos economistas brasileiros tem se recusado a dar entrevistas, a participar de conferências ou debates.

A parcimônia obedece a um diagnóstico. 

Maria da Conceição Tavares, um feixe de 85 anos de argúcia intelectual, inquietação metabólica e vivência histórica enciclopédica depara-se com um problema singular, mesmo para quem acumula longa trajetória de engajamento apaixonado na luta pela construção da nação brasileira.

O país vive uma nova encruzilhada do seu desenvolvimento.

Mais uma das tantas das quais essa portuguesa de nascimento participou, desde que desembarcou aqui no ano em que Getúlio Vargas, com um único tiro, impôs uma década de protelação ao golpe que a coalizão empresarial-militar só lograria desfechar em 1964.

Conceição militou ativamente no esforço progressista de dilatar o tempo histórico e empurrar a roda do desenvolvimento até o ponto em que ele se tornasse autossustentado pelas forças por ele favorecidas.

Em 1964 não deu.

O percurso interrompido, da forma como se sabe, seria parcialmente resgatado nos anos 80, com a derrubada do regime militar e a tentativa frustrada do Cruzado –da qual participaria diretamente também; esforço interrompido com a ascensão neoliberal nos anos 90.

A agenda da construção de uma democracia social na oitava maior economia da terra seria resgatada com a vitória presidencial do metalúrgico, e amigo, Luís Inácio Lula da Silva, em 2002.

Editorial de Saul Leblon

Dilma, o sonho dos vivos e dos mortos

A emoção da Presidenta Dilma na cerimônia de entrega do Relatório da Comissão da Verdade, nesta 4ª feira, condensa camadas de angústia de quem conheceu de perto o horror de ser mastigada por forças incontroláveis.


O chão tinto de sangue do banheiro onde foi jogada após as sessões de tortura ficou impregnado na memória da jovem ativista de 19 anos.


Presa em 1970, ela foi manuseada por quase três anos na máquina de sadismo que matou 434 pessoas no Brasil, perseguiu milhares de outras, submeteu a sociedade a um regime de arrocho, terror, censura e medo.


As lágrimas incontidas desta 4ª feira, miravam o passado dos que foram supliciados como ela; o eterno presente dos familiares dos desaparecidos, ‘que sofrem como se eles morressem de novo, e sempre, a cada dia’; mas também, é muito provável, carregavam a angústia da chefe da nação diante da encruzilhada brasileira atual.


O sonho dos vivos e dos mortos desafia a mulher madura que hoje se prepara para assumir o segundo mandato presidencial e sabe o quanto é imperativo manter uma nação a salvo de forças incontroláveis.


Sabe, sobretudo, que elas não se manifestam mais apenas na forma do totalitarismo policial.


A supremacia do poder financeiro no século XXI pode sequestrar o destino de uma nação através de fluxos financeiros à paisana.


E impor a sua vontade, interditos históricos, e os mesmos custos sociais de um Estado ditatorial.


O passado, o presente e o futuro se entrecruzam nesse momento a evidenciar que o Brasil vive um divisor nessa história.

Um ciclo de expansão se esgotou, um outro pede para ser construído.


Pendências novas e antigas se misturam em meio a um cenário mundial adverso.


A variável determinante passa pela velocidade imprevista da transição chinesa.


A sensação de que tudo está despencando não é fora de propósito.


É como se o mastro que ancorava a lona da economia global de repente afundasse.


O motor asiático investia, em média, cerca de 45% do PIB e importava outros 10% em matérias-primas para saciar sua fornalha.


O velocímetro do seu crescimento recuou de 11% para perto de 7% ao ano.


O ritmo da freada sugere que poderá recuar ainda mais.


O tranco derruba as cotações das commodities nos cinco continentes.


As agrícolas estão em média 15% abaixo do piso declinante de 2013. O custo barril de petróleo ficou 40% mais barato desde junho.


Caiu mais um pouco nesta 4ª feira.


O freio de arrumação vai desativar poços ineficientes que flutuavam sobre uma demanda a US$ 120/barril.


O canal externo da economia nos países exportadores de óleo, metais e alimentos foi comprimido;


Em muitos deles, estreitou-se a margem de manobra de políticas associadas a um projeto de desenvolvimento com repartição de renda.


A descrição se encaixa nas características do modelo em curso na América Latina, pilotado por um colar de governos progressistas que mudou a geopolítica regional.


Em 2014, pela primeira vez em dez anos, segundo a OCDE, o PIB médio da região terá um crescimento inferior à expansão, já medíocre, prevista para as economias ricas: poderá situar-se abaixo de 1,5%.


O Brasil será atingido pela queda nas cotações e no volume dos embarques de minérios e grãos. Mas também de produtos manufaturados vendidos a parceiros latino-americanos em idêntico apuro.


O raciocínio não vale para o caso da Petrobrás.


Sobretudo, não vale para o pré-sal, que opera com tecnologia de ponta e risco zero em cada poço, sendo viável a partir de um barril em torno de  U$45/50.


A escala gigantesca das reservas é outro diferencial quando cálculos de amortização de custos tem que ser refeitos.


O número mais comedido estima em 45 bilhões de barris o total recuperável das reservas descobertas a seis mil metros da superfície, no fundo do oceano. Estimativas não descabidas falam em algo como o dobro disso.


O fato é que o pré-sal oferece o melhor horizonte de desenvolvimento para a indústria de petróleo no mundo.


A taxa que mede isso mostra que ele garante 88% de óleo recuperável sobre o total existente, contra 75% na Arábia Saudita, 65% na Rússia e 55% nos EUA.


O avanço do xisto norte-americano mexe com a demanda mundial, mas não altera o trunfo das vantagens comparativas, que inclui o domínio brasileiro da tecnologia de ponta em águas profundas.


O conjunto compõe o chão firme sobre o qual se desenvolve o maior projeto de investimento empresarial do planeta na atualidade.


Repita-se: o maior plano de investimento em curso no século XXI, feito por uma única corporação, é o da Petrobras.


Algo em torno de U$ 200 bilhões de dólares serão aplicados pela estatal em exploração e produção, entre 2014 e 2018.


Cerca de US$ 12 bilhões de dólares terão que ser financiados no mercado internacional.


Caso o mergulho das commodities ganhe a parceria de uma elevação nas taxas de juros nos EUA, o custo desse financiamento poderá impor algum freio no ritmo da exploração.


Mas não a ponto de inviabilizar as suas referências estratégicas de longo prazo.


Entre elas inclua-se a insubstituível necessidade de uma oferta estável de petróleo para que a humanidade possa realizar a transição rumo a energias renováveis, sem atropelos de abastecimento ou explosão de custos.


O pré-sal e o seu modelo de regulação soberana, acoplado à exigência de conteúdo nacional, continuam a figurar como o bilhete premiado do desenvolvimento brasileiro.


Mais que isso.


Talvez representem o derradeiro impulso industrializante capaz de rejuvenescer a sua base competitiva, garantindo o excedente necessário à finalidade social do crescimento.


O tesouro não contradiz, antes explica a angústia que talvez tenha contribuído para a demonstração incomum de emotividade da Presidenta da República na cerimônia da Comissão da Verdade.


A exploração conservadora dos casos de corrupção dentro da empresa pode inviabilizar esse trunfo contracíclico no momento em que a China desacelera, a Europa deflaciona e a recuperação norte-americana se faz com elevada desigualdade social.


Fomentar uma crise de confiança no país para atingir o governo Dilma é a estratégia do terceiro turno em marcha.


Desqualificar a Petrobrás, e o projeto de desenvolvimento que ela pilota, é a pedra basilar do mutirão graúdo.


Não se mira a lisura na gestão do dinheiro público.


Fosse isso o clamor da faxina viria associado à defesa da reforma política, do pré-sal e do que ele significa para o crescimento, a educação e a saúde.


O alvo é outro.


Trata-se de usar o pé-de-cabra da corrupção para derrubar um governo, e escancarar portas que permitam ao capital estrangeiro servir-se do pré-sal como um banco de sangue na transfusão requerida pela riqueza papeleira.


A angústia estampada no rosto crispado da Presidenta da República nesta quarta-feira refletia o desfile dos vivos e dos mortos; mas também do sonho brasileiro que os mobilizou.


O risco de vê-lo escapar é real.


A curetagem conservadora pode anular a alma de uma nação se conseguir convencê-la a rastejar por debaixo de suas possibilidades históricas.


A Petrobras sozinha representa mais de 10% de todo o investimento brasileiro em 2014, estimado em insuficientes 18,5% do PIB.


As empreiteiras associadas ao esquema de corrupção da estatal, segundo cálculos rápidos do economista Luiz Gonzaga Belluzzo, estariam ligadas a um conjunto de obras em diferentes setores que somariam quase a metade da taxa de investimento prevista para o ano.


‘É importante o rigor com os envolvidos na corrupção; mas as empresas, a exemplo da Petrobras, e assim como se faz nos EUA, não podem ser inviabilizadas. Há um risco real de paralisar o país’, diz Belluzzo que discorda da orientação ministerial de sua amiga, ex-aluna e Presidenta da República.


Um aperto fiscal e monetário agora, pondera o economista, reforça a ameaçadora dinâmica do estrangulamento recessivo: ‘Tínhamos que reagir com um forte investimento público, mas cedemos ao senso comum’, diz com desacordo: ‘É como se coisas movessem os humanos e não o contrário. A hierarquia só será recomposta quando o desemprego bater nas ruas’.


O conservadorismo opera diuturnamente para reforçar essa coisificação da economia e assim sepultar qualquer disposição para enfrentar dogmas e interditos.


O matadouro é visível até a um bife a Camões.


Trata-se de espremer Dilma e tanger o  PT, obrigando-os a pensar pequeno.


Pensar um futuro menor que o país.


Uma segunda gestão de Dilma menor que as possibilidades e urgências da Nação.


Com um programa menor que a ponte necessária para saltar da prostração ao discernimento de um pacto feito de prazos, salvaguardas, reformas e metas críveis de crescimento.


Se pensar pequeno, o Brasil corre o risco de caber no projeto conservador.


E emergir do outro lado na lista dos desaparecidos da Comissão da Verdade, com um adendo:


‘O sonho da democracia social brasileira’.


Não é impossível que a Presidenta Dilma tenha vislumbrado esse risco na cerimônia de hoje.


A ver.