À noite, na Praça Roosvelt, em São Paulo. Encontro um garoto de 12 anos que me diz: “Larguei as drogas”. Um garoto de 12 anos que já foi viciado e já largou as drogas e já está em outra vida. 12 anos. Ele vê a escola como o antro do marasmo, um adjetivo resume tudo: “chata”. Ama a igreja e o funk ostentação. O pai é traficante, mora longe. Sua irmã? É uma garota “do mundo”. Aproxima-se um morador de rua que me conta: “Minha vida é frenética. Não adianta eu sair da rua, porque a rua não vai sair de mim”.
Passando perto de uma manifestação do #NãoVaiTerCopa, falo com um policial militar e ele me confessa, pesaroso: “Todo mundo pensa que sou um bicho, estou cansado de pensarem que sou um bicho”. Encontro uma prostituta na Praça da Luz, perto da Estação da Luz. Ela, uma senhora, com uns 60 anos, um sorriso amarrotado no rosto. “Posso escrever um poema para a senhora?”, pergunto. Ela ri alto, me chama de “safadinho”, aceita que eu escreva o poema, e comenta que o que mais gosta é de viajar, que o mundo é o lugar onde a gente aprende, e dou um poema para ela. “Vou colocar esse presente em uma moldura”, afirma. Quanto ela cobra por programa? 30 reais.
Passo numa rua que fica a algumas quadras de onde estou morando hoje em dia e encontro um cortiço que vai ser derrubado para dar lugar a uma padaria, que vai servir às mais de quinhentas famílias que estão chegando na região e vão morar nos prédios que estão sendo erguidos. Erguidos num espaço que antes também era ocupado por outros cortiços. Cortiços apinhados de pessoas que ganham pouco e que trabalham muito construindo prédios onde nunca poderiam morar. E as pessoas que vão morar nos novos prédios vão ter luxo, ah, vão. Não precisarão nem se levantar para apagar a luz. Vão fazer isso por meio do celular, usando um aplicativo que permite até abrir a porta de longe. E quando chegarem em casa, cansadas de um dia atribulado, vão poder descansar numa piscina rasinha, com uns dois palmos de água para esfriar os pés, ou mesmo nadando na piscina semi-olímpica. Falo com o vendedor de apartamentos de um dos prédios e ele me conta que mora em São Miguel Paulista, na periferia de SP. Me diz também que apartamentos de 19m2 vendem como água. Que já existem apartamentos de 6m2 na China ou Japão, não se lembra bem. Me mostra, no iPad, o apartamento decorado. O aplicativo possibilita que eu veja inclusive o chão dos cômodos. Vejo o lustre também, uma parafernália enorme, de “alto nível”.
Ando um pouco mais nessa mesma rua e me arrepio por inteiro. Estou ao lado de um amigo. Olho para ele, ele olha para mim, não falamos uma palavra. À nossa frente, um prédio enorme e com aparência precária, gigante de imenso, com tantas janelas, uau, quantas janelas, e lixo sendo jogado por algumas delas. Ao lado, outro prédio imenso de gigante, inacabado, sem reboco, como se tivessem parado de construir de repente, como se os pedreiros tivessem sido demitidos de surpresa, saído correndo e esquecido metade das ferramentas e andaimes. Uns jovens nos chamam, oferecem drogas. Uma mulher com roupas curtas me olha como se me comesse com as pupilas fatigadas.
Entro no supermercado, passam uns jovens ao meu lado. Eles não têm mais do que 12, 13 anos. “O que vão comprar?”, pergunta o cara no caixa. “Cigarros”, respondem.
Noutra ocasião, saio de uma reunião em um shopping super requintado. Me sento na praça de alimentação com um prato de comida. À minha frente, um homem pede: “Posso me sentar aqui também?”. Ele se senta à minha frente, na mesma mesa, e passa todo o almoço sem falar nada. Eu passo o almoço sem falar nada. Um momento vazio de presente. Estamos na mesma mesa e não conversamos, como se estivéssemos apenas cumprindo mais uma burocracia da vida, como se não houvesse outro ser humano à nossa frente.
Saio de uma outra reunião e resolvo ler um poema para uma pessoa na rua. Pergunto: “Moça, posso ler um poema para você?”. “Não, tô com pressa”. “Então vou ler mesmo assim, ok?”. Sigo ao lado dela, correndo um pouco e lendo um poema do Carlos Drummond de Andrade que anuncia: “O presente é tão grande, não nos afastemos”. Quando termino o poema, ela olha para trás e comenta: “Agora estou mais animada, obrigado”.
Encontro um morador de rua sentado no chão. Ele me mostra algumas folhas: “Não consigo resolver nada da minha vida com esses papéis. Papel é coisa de gente estudada”. Visito uma escola, procuro a diretora. A porta dela está fechada, lá dentro uma mãe grita para a filha de 13 anos: “Não queria que você fosse minha filha, você não devia ter nascido. Nem adianta querer voltar para casa, não volte mais!”. A menina corre pela escola, se esconde. A mãe vai embora sem se preocupar com o paradeiro da garota. Antes de uma reunião numa ONG lá no centro de SP, para mostrar um projeto, uma frase se esgueira pelos corredores da instituição. Alguém lá dentro dizia: “Aquela anta não fez o café?”.
* * *
Todas essas situações são reais, foram vivenciadas nos últimos dias. Todas essas situações e muitas outras (muitas mesmo) que nem gostaria de compartilhar me viram pelo avesso a cada minuto.
Basta abrirmos os olhos (de verdade) para percebermos o absurdo do mundo. E em nós. Sou sempre a pessoa que aponta o lado da abundância, acredito na mudança e estou rodeado por pessoas que têm se esforçado para agir no campo da afirmação de novas possibilidades, mas desta vez quero aprofundar um pouco de um lado obscuro que há em nós.
Esse lado obscuro é a ilusão que vejo por aí e em mim, bem compartilhada, de que a mudança superficial das coisas é suficiente. E não estou dizendo que acreditamos nisso conscientemente, claro. Mas parece sim que passamos tempo demais na superfície e nos aproximamos pouco dos limites da nossa ação. Certos modos de nos acomodarmos ao mundo são muito sutis…
Adianta fazer um cafuné numa pessoa atropelada, que está sangrando na estrada, e achar que isso é suficiente? Nosso mundo foi atropelado. Atropelado por uma série de interesses que tem mais a ver com a morte do entusiasmo do que com a pulsação da vida.
Como fazer com que cada instante em que estou vivo seja uma manifestação potente do que há de mais genuíno em mim?
Entre tantas situações que me reviram tanto, uma questão me pega cada vez mais: nossa ação no mundo ainda não é covarde demais? Não temos sido covardes para lidar com esse turbilhão caótico, despotencializador e ceifador de sonhos?
Numa viagem para a Inglaterra, visitei uma faculdade com um curso que tinha a seguinte pergunta:até que ponto as inovações representam apenas falsos sinais de mudança, mantendo viva no coração do capitalismo a forma intrinsecamente destrutiva das corporações? Pergunto a mim mesmo e a você: até que ponto nós achamos que estamos inovando e na verdade estamos apenas sedimentando e fortalecendo mais ainda esse mundo de máscaras e imagens falsas e selvagens? Não podemos tentar ir mais fundo?
Mais fundo, mais fundo?
O poeta Leminski já sabia que a profundidade das coisas está na cara, mas a gente desaprendeu a ver
No livro “Perto do Coração Selvagem”, Clarice Lispector diz:
“Um dia virá em que todo meu movimento será criação, eu romperei todos os nãos que existem dentro de mim, provarei a mim mesma que nada há a temer”.
Hoje, meu maior esforço está direcionado para lapidar meus movimentos, para que eles sejam mais e mais criação e profundidade, para que eu caia menos em erros antigos, como lembrar do coletivo e esquecer de cuidar do meu microcosmo mais íntimo, não dando atenção para as pessoas que tanto me amam.
Sinto que essa lapidação demanda essencialmente de uma coisa: atenção. Preciso seguir mais atento. Inundando-me com o que há de belo e feio, abrindo meus poros até que eles explodam como fogos de artifício e me provoquem movimentos que vão além do que acho que é o suficiente.
Como diria Brecht, as derrotas de quem está se esforçando por um mundo diferente só provam que ainda há poucos que se esforçam por inteiros nesse caminho. Quanto mais sensíveis ao mundo que nos rodeia e ocupa cada centímetro da nossa pele, mais ativos estaremos nessa realidade que, sim, precisa de mais gente porosa.
Se as coisas estão do jeito que estão, não é só por causa dos outros, mas por causa de mim também, que faço vista grossa a tantos absurdos, que considero normal o abominável. Se há tantos problemas e violência, não somos também cúmplices de tudo isso? Ou percebemos que a responsabilidade pelo que está aí não é só de partidos, bandidos e loucos, mas sim de cada um de nós, ou vamos todos morrer engasgados com nosso próprio umbigo.
O presente é tão grande, não nos afastemos.