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Sobre a Daspu, o Putas Dei e o respeito que merecemos

Eu estava procurando alumas garotas de programa pra comentar como ficaria o mercado delas durante a Copa. Dezenas de garotas desligaram o telefone na minha cara. Há um medo grande em se assumir puta, em colocar um nome qualquer e em falar como puta, porque puta não tem voz. Tem corpo, mas não tem voz.
Ao contrário de quase todas as outras, a Naty Harper, quis se fazer ouvir e me convidou para o desfile da Daspu. O assunto da Copa ficou pra trás. Sexta feira, 13, era a comemoração do dia das Prostitutas, o Puta Dei. E o desfile não era apenas uma passarela montada pra mostrar novas tendência de roupas curtas e provocantes. O desfile é uma forma de se mostrar prostituta sem vergonha de ser puta.
Quando a apresentadora anuncia o desfile, não se vê aquela fila de mulheres andando em linha reta. Entram todos juntos, mulheres, homens, putas, artistas… A ordem é quebrar a ordem. Quem quis, tirou a roupa. Quem quis, dançou o funk. Quem quis, se divertiu. Eu tive vontade de deixar minha câmera com alguém e ir lá em cima dançar e reforçar o orgulho de liberdade que se via brilhando nas calcinhas, camisetas e seios nus.
Quem fundou a Daspu foi Gabriela Leite, filha, mãe, avó e puta. Uma mulher que não teve medo de dar as caras, que lutou até o último dia da sua vida pelo reconhecimento da profissão. Quem conheceu Gabriela, me falou dela com um brilho no olho. Betânia Melo, puta feliz, conta que sua vida nunca mais foi a mesma depois de Gabriela, que foi com ela que aprendeu a ter orgulho da profissão, parou de se esconder e entrou na briga pelo reconhecimento.
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A falta de respeito e a falta de direitos das putas cruzou comigo na rua, a caminho do desfile. Eu estava ali na Luz, perto da estação Julio Prestes, uma velha área de prostituição. Parei num posto policial pra pedir informação e vi uma senhora de seus 50 anos reclamando pro policial. Ela contava que tinha combinado o programa com o cliente, fez conforme o combinado e logo em seguida ele saiu sem pagar. A mulher ainda ficou com a dívida do motel.
O policial concordava como quem não quer contrariar um louco. Mas não havia o que fazer. Ela não era uma mulher de bem que fora assaltada, ela era um puta. Essas mulheres não tem direitos, é como se ao colocar-se na esquina à procura de clientes, elas abrissem mão de tudo que lhe cabe: a dignidade, a integridade física, e o reconhecimento pelo trabalho feito.
Naquela noite, com as meninas das Daspu, eu aprendi muitas coisas, uma delas é que a puta não vende o corpo. Ela presta serviços sexuais. Essa mudança de vocabulário representa muito porque assegura à mulher que é profissional do sexo, o poder sobre o próprio corpo.
Mesmo que o cara pague, ela ainda é dona do seu corpo e tem poder sobre ele. Ela é uma profissional como qualquer outra e tem direitos. Afinal, trabalhadores não sexuais, como eu, também submetem o corpo a um tipo de serviço, seja ele intelectual ou braçal, para receber o ordenado no final do mês.
O Puta Dei mostra que puta é tão mulher como todas as outras, tão trabalhadora como todas as outras. Betânia fala pra mim, com o queixo pra cima e um sorriso no rosto, que a única diferença é que “nós [prostitutas] temos o ganho que nós mesmas fazemos, nós negociamos o nosso salário. Se você está em um escritório ou em um outro espaço, você não tem toda a liberdade que você tem na prostituição”.
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Quando o time da Daspu sobe no palco pra mostrar sua cara, elas querem reconhecimento, respeito. Naquele momento o verde e amarelo que elas vestiam era o simbolo da briga pelo direito de ser parte do Brasil na Copa.
No Rio, principalmente, o governo tirou garotas de programas do seu local de trabalho e prendeu algumas mulheres, como se o trabalho delas fosse um crime. Não é. Tráfico de pessoas é crime, abuso de menores é crime. Prostituição, não. Quando a mídia e as pessoas criticam o turismo sexual, elas colocam a prostituição no mesmo pacote do abuso sexual. As meninas brigam pelo reconhecimento da profissão, justamente para que elas possam sair dessa margem, desse espaço sempre ligado a crimes, tráfico e abusos.
Enquanto se maquiavam e penteavam os cabelos umas das outras, elas e eles proclamavam seu direito de se prostituir sem  recriminação. “Somos maiores de idade, donas do nosso corpo, e não estamos prejudicando ninguém ao nos prostituir. Temos direito de lucrar como qualquer outro prestador de serviço. Nos deixem trabalhar”. Esse é o resumo de muitas falas.
“Por que a gente é sempre vista como a coitada ou como a pessoa que esta ali pra destruir a sociedade, pra incomodar?” Betânia fala com a ânsia de quem não aguenta mais ficar na sarjeta imaginária das pessoas. As prostitutas foram as primeiras mulheres no mundo a conquistar a independência feminina financeira, a pagar suas próprias contas. Enchendo a boca, a Betânia fala da sua revolta quando ouve as pessoas falarem das prostitutas como coitadas, ou como mulheres prostituídas, que não tiveram outra escolha. “Quem fala isso não é Puta. Meu bem, se você não tá dentro da profissão, então não conta”.
Naquela noite, eu conheci mulheres que tiveram opção. Uma das que estavam lá era Lola Benvenutti, estudante de letras na Universidade Estadual de São Carlos, optou pela prostituição por livre e espontânea vontade e hoje é um dos grandes nomes do mercado.
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Conversando com a Naty, aquela que me chamou pro desfile, ela me conta que se formou em jornalismo, trabalhava com noticias automobilísticas. Naty me apresentou pro seu namorado, “hoje ele veio”. E ainda me falou da sua filha de 14 anos, que sabe da sua profissão e que não tem problemas com isso. “Se for bom pra mim, ta bom pra ela… Tem dia que fica cheio de amiga dela lá em casa me perguntando sobre as coisas.”
“É tudo mulher igual, é tudo mãe, é tudo filha. Tem que parar com isso de achar que é diferente.”Karina Buhr estava no camarim conversando com a gente e, para ela, essa é a mensagem que tem que ficar.
Gabriela já dizia “a prostituta não é uma vagabunda ou então o resultado do capitalismo selvagem, mas sim a linha direta de uma sociedade que morre de medo de mostrar sua sexualidade e consequentemente se sente profundamente ameaçada quanto uma prostituta mostra seu rosto. Como um dia eu mostrei o meu rosto de prostituta, todos ficaram chocados pois perceberam que não era diferente do de outras mulheres.”
Eu confesso que não li o livro de Gabriela Leite Filha, mãe, avó e puta. Mas agora a vontade é inevitável, depois de tantas pessoas falando de Gabriela com o peito erguido, com o orgulho de se saberem privilegiado por terem conhecido essa mulher que lutou tanto pra que a profissão finalmente seja reconhecida no papel e nas ruas.
Ah… Gabriela também não foi puta por falta de opção, ela cursava sociologia na USP e trabalhava em escritório quando largou tudo para viver do próprio corpo.
Mas infelizmente, estando lá, naquele evento incrível, eu senti o que me disse a Naty – que ninguém enxergava o problema delas. Lá, com toda a estrutura, não tinha ninguém de nenhum veículo de mídia. Só eu.
No dia seguinte, muitos veículos soltaram a notícia do acontecimento do desfile, com fotos de arquivo que nem sequer eram do lugar ou do dia do evento. Para o resto das revistas, sites e jornais, o assunto não tinha importância. Pra mim tinha. Talvez  por eu ser uma Gabriela, assim como a Gabriela Leite, assim como a Gabriela Natalia (nome verdadeiro da Lola), veja importância nisso que elas tem pra dizer.
Se eu precisasse resumir em uma frase tudo isso, eu diria apenas que é preciso parar de usar “puta” para ofender, porque essa palavra é um dos melhores adjetivos. “Ela é uma puta mulher, e merece um puta respeito”.
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Gabriella Feola

Estudante de jornalismo da USP, apaixonada por músicas latinas, acredita que 'sexo' deveria ser uma editoria, assim como esporte.


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