A discussão a respeito da legalidade da deposição de Lugo é importante, dado o sumaríssimo ritual observado nesse caso, mas é ainda assim secundária. É preciso lembrar três pontos: (i) nem tudo o que é legal é legítimo do ponto de vista da democracia; (ii) há leis que, embora votadas por representantes democraticamente eleitos, atentam contra a própria essência do princípio da representação popular; (iii) há aplicações da lei que, apesar de inobjetáveis do ponto de vista formal, se traduzem na mera manipulação de instrumentos legais com a finalidade de fraudar a vontade popular livremente expressa nas urnas.
Examinemos cada um desses pontos:
(i) A escravidão certamente era legal no Brasil do século XIX, mas nem mesmo se tivesse sido aprovada pelo mais democraticamente eleito dos parlamentos na mais livre das sociedades estaria de acordo com os princípios básicos da democracia. A democracia não é apenas forma. É também conteúdo. Há leis cujo conteúdo é antidemocrático, e nenhuma democracia pode conviver bem com elas.
(ii) De um ponto de vista puramente formal, um parlamento poderia delegar a um conselho de cidadãos ricos (suponhamos) o direito de depor um presidente democraticamente eleito sem dar a ninguém a razão de seus atos, e sem dar ao governante deposto o direito de se defender. Não é o que diz a lei paraguaia, mas poderia ser. Se fosse, o cumprimento dos requisitos formais não transformaria a deposição num gesto aceitável do ponto de vista dos princípios democráticos. Pelo contrário. Essa seria uma lei profundamente antidemocrática, que atentaria contra o princípio da representação popular. Mais uma vez: formalismo não é tudo.
(iii) É legal e legítimo que o governo cobre impostos dos cidadãos. É legal e legítimo que o governo fiscalize o pagamento dos impostos. No entanto, se um governante usa a Receita Federal para intimidar adversários políticos, por mais que esteja escorado nas leis de seu país, e por mais que essas leis sejam legítimas na forma e no conteúdo, esse uso dos instrumentos legais não é legítimo nem aceitável de um ponto de vista democrático.
No caso de Lugo, tivemos esses três fatores conjugados.
A lei paraguaia é completamente vaga a respeito das razões que podem motivar um processo de impeachment. No fundo, dá ao Legislativo a mais completa liberdade para depor um presidente no contexto de um regime que é presidencialista. No presidencialismo, como o próprio nome já insinua, é na eleição do presidente que a nação se manifesta quanto aos rumos que deseja dar ao país. É ali, acima de tudo, que está depositada a parte mais substantiva da vontade popular. Criar mecanismos que permitam, no presidencialismo, a deposição sumária, sem maiores razões ou justificativas, do presidente da república é equivalente a esvaziar de sentido e de consequência a manifestação central das urnas. A lei paraguaia é, deste ponto de vista, profundamente antidemocrática. Coloca no centro do poder a presidência da república, e ao mesmo tempo cria mecanismos pelos quais a vontade do povo pode ser fraudada a qualquer momento pela decisão discricionária do parlamento. O modo como foi feita a deposição de Lugo - um processo relâmpago, excludente de qualquer discussão mais cuidados na sociedade e de qualquer oportunidade real de defesa - agrava ainda mais a situação, transformando o processo todo numa farsa. Repete-se aqui a mesma situação que tivemos no caso da deposição do presidente palhaço (mas democraticamente eleito) Manuel Zelaya, colocado de pijamas num avião e despachado no meio da noite para a Costa Rica. Há uma lei que não é democrática, aplicada de modo profundamente antidemocrático, e ainda por cima desrespeitando algumas formalidades essenciais. No dia seguinte, os reacionários de sempre estão a postos, brandindo oportunistamente não sei que artigo da constituição do país para dizer - foi legal. A resposta é simples. Não foi, não. E mesmo que tivesse sido, não seria democrático. Se a lei permite esse tipo de coisa, há algo de profundamente errado com as leis do país. Aplicar esse tipo de lei (e aplicá-la desse modo, nessas circunstâncias!) é um gesto profundamente antidemocrático. O feitor que descia o chicote no lombo de um escravo estava respaldado por todos os textos legais do país, e não faltavam pessoas para repetirem, na platéia, que a lei é dura, mas é a lei.
A esquerda, por outro lado, tem que reexaminar sua postura no Brasil ao longo dos anos 90. A campanha "Fora FHC" foi uma campanha golpista, sim, como seria golpista, anos depois, a campanha pelo impeachment do presidente Lula, durante a crise do mensalão. Está na hora, aliás, de reavaliar inclusive o impeachment de Fernando Collor, orquestrado pela Rede Globo e pelos principais órgãos da grande imprensa (os mesmos, diga-se de passagem, que construíram a imagem do "caçador de marajás"), e bobamente apoiado por adolescentes que cultivavam uma negação vazia da política e serviram, por isso mesmo, de massa de manobra ao establishment político ao qual Collor, a seu próprio modo, acabou se contrapondo.
Indo mais longe, precisamos reavaliar Watergate. A deposição de Nixon foi um desses acontecimentos fundantes de uma nova ordem. Foi democrática? De um ponto de vista formal, sim. Mas rompeu-se ali uma barreira perigosa. A partir de Watergate, até mesmo uma chupetinha de uma estagiária na Casa Branca poderia pôr em risco a vontade expressa pelos cidadãos nas urnas, e causar a deposição de um presidente da república. Quem está na presidência sabe desde o primeiro minuto que sua cabeça está a prêmio, e que uma campanha na imprensa poderia depô-lo a qualquer instante. O processo de impeachment só ganha legitimidade, a meu ver, se for reposto a uma distância segura do cotidiano da política. É instrumento excepcionalíssimo, para ser usado uma vez a cada dois séculos, quando a ordem social estiver ameaçando se romper. Só ganha legitimidade em sua ameaça a um governante legitimamente eleito em situações-limite, nas quais nenhum outro mecanismo possa ser acionado. É comparável ao estado de sítio. É um instrumento que está ali para NÃO ser usado, caso haja a mais remota possibilidade de não usá-lo. Só se justifica em situações de ruptura. Fora desse contexto, é simplesmente a institucionalização do golpe. Pode até ser legal. Mas não se torna legítimo em função disso.
por Jotavê