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A fala do corpo, por Silvia Mendonça

O meu corpo é um grande tagarela: fala demais porque sente demais. Tantas vezes percebi-me querendo ser tudo para todos e, então, gritei, irritada: Por que não te calas, ó corpo? Porém, ninguém consegue calar um corpo a não ser com outro corpo: por isso buscamos o amor.

Estou tentando dizer o óbvio, sobre um assunto tão discutido, filosofado, vulgarizado: o corpo fala. Mas há que se ter cuidado com a fala do corpo, pois qualquer gesto mais ousado, mesmo o mais ínfimo, é como um grito. Muitas vezes, grito de desespero, de socorro, de pedido de ajuda. Noutras, de negação, de desistência. Quem presta atenção em nós, se não nós mesmos, deixando-nos levar por um ou outro estado? Depende do gesto, e do intento! A compreensão, quando acontece, vem despida da compaixão. Infelizmente!

Se nem sempre me reconheço em meu próprio espelho, como alguém poderia reconhecer-me, imagem opaca de mim? Também não se deve esperar muito dos outros, pois estes, assim como eu, tem corpos, que falam, gritam - e eu nem sempre ouço, ensurdecida pelos meus próprios gritos. Sinto-me egoísta, incapaz de compartilhar falas, acudir aos gritos que não superam os meus.

Mas o meu corpo não apenas grita: ele dança, e canta a plenos pulmões uma música que só ele conhece. E por mais que eu tente entendê-lo em suas reviravoltas e harmonias, ele me é um ser estranho, bailando em torno do meu espírito - este, sim, o maestro, arranjador e coreógrafo.

É impressionante como o meu espírito consegue dialogar com o meu corpo, sua acolhedora moradia. Então, percebo que o corpo é apenas uma marionete, pois é o espírito que fala. Muitas vezes dos seus desejos, do que necessita para ser compreendido. É o espírito manipulando o corpo, falando de sonhos, de amor, de luta - procurando entender a vida, aos outros, a si próprio.

Tanta reviravolta nos cordéis do corpo, girando-o daqui para lá, de lá para cá, só para dizer que os desejos sexuais são os mais tagarelas. Falam através da força selvagem da libido, mas não apenas como vontade de afirmação do corpo - o espírito, mestre, mais do que o corpo precisa do amor, do aconchego, de sentir-se feliz e amado.

Ouça a fala do meu corpo: podes escutá-la? Ela está cantando a melodia do espírito. Um canto de encantamento, acompanhado por uma harpa mágica, dedilhada pelo coração. Uma fala nem tão compreensível, reconheço, pois vivemos em mundo distintos, mergulhados em nossas diferenças e ousadias. Quem sabe um sentimento "tradutor" possa ajudar-nos na tarefa de tentar que um compreenda a fala do outro, mesmo que a minha seja dialeto; a tua, oficial.

[MENDONÇA, Silvia - 08/07/2008]

O Direito

"Sabem do que são feitos os direitos, meus jovens?

Sentem o seu cheiro?

Os direitos são feitos de suor, de sangue, de carne humana apodrecida nos campos de batalha, queimada em fogueiras!

Quando abro a Constituição no artigo quinto, além dos signos, dos enunciados vertidos em linguagem jurídica, sinto cheiro de sangue velho!

Vejo cabeças rolando de guilhotinas, jovens mutilados, mulheres ardendo nas chamas das fogueiras! Ouço o grito enlouquecido dos empalados.

Deparo-me com crianças famintas, enrijecidas por invernos rigorosos, falecidas às portas das fábricas com os estômagos vazios!

Sufoco-me nas chaminés dos Campos de concentração, expelindo cinzas humanas!
Vejo africanos convulsionando nos porões dos navios negreiros.
Ouço o gemido das mulheres indígenas violentadas.

Os direitos são feitos de fluido vital! Pra se fazer o direito mais elementar, a liberdade,
gastou-se séculos e milhares de vidas foram tragadas, foram moídas na máquina de se fazer direitos, a revolução!

Tu achavas que os direitos foram feitos pelos janotas que têm assento nos parlamentos e tribunais?
Engana-te! O direito é feito com a carne do povo! Quando se revoga um direito, desperdiça-se milhares de vidas ...

Os governantes que usurpam direitos, como abutres, alimentam-se dos restos mortais de todos aqueles que morreram para se converterem em direitos!

Quando se concretiza um direito, meus jovens, eterniza-se essas milhares vidas!
Quando concretizamos direitos, damos um sentido à tragédia humana e à nossa própria existência!

O direito e a arte são as únicas evidências de que a odisseia terrena teve algum significado!"

Texto da Juíza Federal Raquel Domingues do Amaral