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2010 - Bom Ano

 

Nietzsche e a conta corrente

Antonio Delfim Netto | VALOR

Uma das mudanças, de tantas que estão acontecendo na análise da economia brasileira, é o quase consenso sobre o sucesso das nossas políticas fiscal e monetária no enfrentamento da crise financeira que se abateu sobre o mundo. Dependendo da disposição do analista com relação à orientação política do governo, os pecadilhos cometidos na acomodação do superávit primário de 2010 serão “veniais” ou “capitais”. O fato concreto, entretanto, é que devemos terminar 2010 com boas perspectivas internas como se vê na tabela abaixo:
Não é possível negar: 
) que se trata de um ponto de partida positivo; 
) que a situação da economia mundial mudou. Terminou, pelo menos por algum tempo, o vento de cauda externo; e que, 
) temos de nos preparar para enfrentar algumas nuvens escuras escondidas no horizonte.
A mais próxima, mas menos visível, refere-se à política fiscal. Durante o esforço para combater a crise executamos uma política expansiva que não foi, apenas e propriamente, “contracíclica” porque os gastos não terminaram com a volta da economia ao crescimento: assumimos alguns compromissos de despesas permanentes, com receitas não garantidas.
É tempo, agora, de retomarmos o caminho virtuoso que nos trouxe até aqui: produzir um déficit primário da ordem de 3,3% (sem choro nem vela!) capaz de garantir num horizonte visível (se a taxa de juro real for menor do que o crescimento do PIB), uma redução monotônica da relação dívida bruta/PIB para 40%. Mais que isso, é preciso estabelecer uma regra que produza uma taxa de crescimento das despesas do governo (excluídos os investimentos) menor que a do crescimento do PIB. Isso abrirá espaço para a ampliação dos investimentos públicos e aumentará a capacidade do governo de atrair capital privado para parcerias nos empreendimentos de infraestrutura.
A segunda nuvem não está escondida: brilha a ponto de nos cegar. Há pelo menos 25 anos temos a maior taxa de juro real do mundo. Com o compromisso de uma política fiscal firme e crível será possível dar ao Banco Central autônomo o conforto necessário para que, na execução da política monetária, ele a reduza, num horizonte aceitável, à média internacional (qualquer coisa entre 2% e 3%) o que, certamente, terá de ser precedido por uma formulação adequada da remuneração das cadernetas de poupança. Com relação à política monetária é preciso insistir na ideia que “todos os modelos são errados, mas alguns são úteis” e que nenhum deles nos dirá qual a taxa de juro “neutra”, que compatibiliza o pleno uso da capacidade produtiva com a estabilidade da taxa de inflação. Com relação a esta, aliás, também já é tempo de reconhecermos que não há nada errado com a meta inflacionária de 4,5%. Não há a menor evidência empírica de que taxas de inflação menores do que 6% ou 7% tenham qualquer efeito sobre o crescimento do PIB a longo prazo. É claro que quando as condições de pressão e temperatura forem normais, o melhor o e desejável é ter uma taxa de inflação parecida com a dos nossos parceiros internacionais. Por outro lado, é preciso impor um pouco mais de transparência às decisões do Copom, publicando, num prazo de 90 dias, os votos escritos por seus membros para que nos tranquilizemos com sua “ciência”. O “hedge” de todo BC para conquistar “credibilidade” é superestimar a taxa de juro “neutra” e subestimar o famoso “produto potencial”, o que pode ter um custo social inaceitável.

Pecadilhos podem ser “veniais” ou “capitais”

A terceira nuvem no horizonte diz respeito à fantástica supervalorização do real que está corroendo a sofisticada estrutura industrial brasileira. Ninguém razoável pode continuar a acreditar na famosa “Disneylândia”, onde os mercados são perfeitos e os preços são sempre os “certos”. Temos de pensar qual é o Brasil que queremos em 2030, quando teremos de dar emprego de boa qualidade para 150 milhões de brasileiros. Certamente não é este. E a mudança depende de um Estado-indutor inteligente, diligente e firme, que continue a estimular a agricultura e a mineração, mas dê atenção especial à pesquisa, à inovação e aos investimentos nos setores industrial e de serviços, sem esquecer os estímulos à elevação da taxa de poupança.
Não devemos esquecer que, no fim, a competição é o nome do jogo, mas competição em condições isonômicas entre a produção interna e a importação. No “chão da fábrica”, a produtividade do trabalhador brasileiro e do chinês é praticamente a mesma. Perdemos da porta da fábrica para fora, porque o Estado chinês é mais ousado e “eficiente” do que o nosso. É evidente que o déficit em conta corrente de US$ 50 bilhões em 2010 e o estimado (se tudo continuar como está) em qualquer coisa como US$ 70 bilhões, em 2011, festejados como coisa muito boa pelos mercadistas dos preços “certos”, estão preparando o mesmo desastre que já vivemos muitas vezes no passado. Não posso deixar de lembrar Nietzsche, que disse “a grande vantagem da falta de memória é que podemos gozar sempre, pela primeira vez, as mesmas coisas boas”!
Antonio Delfim Netto
contatodelfimnetto@terra.com.br
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