Estou namorando há 1 ano e uns meses e, há algum tempo, decidimos morar juntos.
Depois de boas conversas sobre os rumos do relacionamento, ele se mudou pra minha casa, de mala e cuia. Imediatamente, uma luz vermelha piscou no meu painel de alerta:
“cuidado, isso pode configurar uma união estável”
Pra quem não sabe, juridicamente, uma união estável se assemelha a um casamento de fato e indica uma comunhão de vida e de interesses. Alguns dos requisitos legais da união estável são publicidade e estabilidade da relação, além da existência de um “caráter familiar”. Ainda que a coabitação não seja requisito essencial, é dado relevante usado pelos juízes pra determinar a intenção do casal de construir uma família (affectio societatis familiar).
O instituto é regulado pelo Código Civil – o que implica na regulamentação das relações patrimoniais do casal (divisão de bens) e na existência de regras pertinentes ao direito sucessório (questões relativas à herança).
Além da minha própria consciência, os bons e velhos amigos advogados, ao saberem da notícia, não falharam em lançar baldes de comentários precavidos: “vão fazer contrato de convivência?”, “faz, não custa nada!”, “melhor prevenir do que remediar”, “não preciso nem dizer, você já tomou todas as precauções, né?”, e um dos melhores, “tira isso da frente, Anna”.
Comecei então a pensar no que vou chamar aqui de “acordos afetivos” (como o acordo de união estável e acordos pré nupciais, por exemplo), com outros olhos, outros vieses.
A intenção do texto não é trazer informações jurídicas sobre os institutos, nem dissecar questões importantes relacionadas – como divisão patrimonial e sucessão. A ideia, aqui é trazer à tona outra perspectiva, mais sutil e humana, que também está por detrás dos contratos e é tão importante quanto todo o resto.
Compartilho, então, os estalos que tive.
1. Acordos afetivos são ótimos pra tapar o sol com a peneira
Os contratos são, em sua maioria, garantias. Eles existem para afirmar algo com valor legal, garantir suas cláusulas e exigir-lhes cumprimento caso alguma parte não obedeça o combinado. Ou seja, têm sua pitada de desconfiança, de proteção, de prenúncio da merda.
Nos contratos relacionados à uniões afetivas e casamentos, como o contrato de convivência e o acordo pré nupcial, isso fica ainda mais patente.
Em um acordo pré nupcial, por exemplo, o casal estabelece, por escrito, deveres e direitos de cada um quanto a compromissos legais, patrimônio existente, obrigações com os filhos, entre outros. Ok, bacana. Olhando assim, de relance, a gente tende a achar bom: indica que o casal está informado, sabe das grandes possibilidades do casamento não durar, de existir uma separação conturbada. Logo, um documento facilita os trâmites e desenrola a confusão demorada do divórcio.
Mas o que está por detrás dessas afirmações objetivas? Quais as motivações silenciosas, sutis que nos movem a assinar acordos pré nupciais de 101 páginas?
Será que, ao escolher definir regras, escrevê-las em um contrato e registrar em cartório não estamos, sem pensar, tomando uma boa dose de um placebo e desviando do fato de que precisamos colocar um bom tanto de esforço em cultivar uma relação verdadeiramente aberta, madura, com boas bases de confiança e diálogo?
Em termos práticos, porque é que estamos dizendo: não, imagina, a gente conversa, a gente confia um no outro, e, ao mesmo tempo, despejando um bando de cláusulas e regras em um papel, só para caso se…?
O que está sendo realmente construído pelo casal? Que tipo de relação o contrato está ou não maquiando?
Alguns advogados de família dizem que “contratos reforçam a confiança”. Eu prefiro dizer que “um diálogo aberto e a confiança reforçam a confiança”.
2. Acordos afetivos não criam uma realidade nova
De forma geral, os contratos estão aí para firmar, formalizar, algo que já existe de fato, ou que se pretende factivelmente praticar. Eles também vêm garantir que, caso haja descumprimento, quebra, o pacto seja cumprido à força, executado judicialmente.
Aprendi, à duras penas, que não adianta criar um universo paralelo perfeito, escrever no papel e colher a assinatura de testemunhas se tudo aquilo, de fato, não fizer sentido prático: se não houver real intenção e possibilidades objetivas de concretização.
No caso específico dos acordos afetivos, não faz o menor sentido determinar, formalmente e por escrito, modos de agir, se o casal não estiver, na vida, atento e disposto à cultivar uma boa relação.
Um exemplo de cláusula comum em acordos de união estável:
Será que uma cláusula pode garantir comprometimento, respeito e consideração?
A minha experiência como advogada (e ser humano) diz, com todas as forças, que não.
3. Não faz sentido fazer um contrato, então?
Nada disso.
Não estou dizendo, de jeito nenhum, que os contratos não funcionam, não têm utilidade. Pelo contrário. O questionamento aqui vai um pouco mais fundo, é um bocado mais delicado. E é aí que mora a armadilha.
Um acordo pode (e até deve) ser feito pelos casais que decidirem dividir a mesma casa, casar. Mas sem chutar pra fora do campo de visão tudo o que realmente importa.
A relação vale a pena? Te transforma, pra muito além da esfera do relacionamento? Questiona as estruturas postas de controle, apego, ciúme e desconfiança? Quais as bases que sustentam essa relação? Há uma comunicação minimamente tranquila, aberta e disposta? Quais são os medos, receios, condicionantes e ressalvas que ressoam forte dentro de cada um? Eles estão sendo vistos, colocados na mesa, trucados? Há cultivo de real parceria?
Em resumo, os contratos de convivência não são bons pra todos os casais. Podem vir como muleta para uma estrutura ruim, viciada, cega. Ou, do contrário, pra chancelar e cuidar de algo que já está sendo semeado. Aí sim. Um contrato pode ser bom pra um casal que já cultiva o que os contratos geralmente buscam alcançar.
Por isso, e depois de falarmos bastante sobre o assunto, Guilherme e eu resolvemos firmar, primeiro, um Contrato de União Instável.
ins.ta.bi.li.da.de
sf (lat instabilitate)
ato de variar, mudar
falta de permanência
A ideia por detrás é reconhecer o que já acontece no dia a dia da maioria dos casais. Talvez, botando em cheque as reais bases da nossa própria relação, exista alguma esperança de respondermos as perguntas lá de cima.
E aí, topa o desafio de fazer o mesmo? Para facilitar, disponibilizamos nossa primeira tentativa pra vocês.
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ANNA HADDAD
É advogada faz-tudo. Inventa, planeja, provoca e escreve. Entrou em crise com o mundo dos diplomas e fundou a plataforma de crowdlearning Cinese. Acredita em Deus, no Mário Quintana, no poder de articulação das pessoas e em uma educação livre e desestruturada. Tá por aí, mais nas ruas do que nas redes.