Número menor de candidatos não se traduz automaticamente em competição mais qualificada
Os protestos que tomaram as ruas do País no mês de junho introduziram a reforma política na agenda presidencial. O conteúdo dessa reforma, porém, ainda é impreciso e se resume a uma lista de questões a serem expostas à população.
Praticamente todos os setores da classe política e diversos setores da sociedade têm sua fantasia sobre o que e como reformar. E uma das fantasias que mais circula no debate público é a adoção de sistema eleitoral de maioria simples para o Legislativo, conhecido como voto distrital.
Atualmente, em lugar de 513 distritos com uma única cadeira em disputa, temos no Brasil um sistema em que as circunscrições eleitorais são os estados da federação e o número de parlamentares eleitos em cada distrito é proporcional à população de cada estado, variando de 8 a 70.
A proposta do voto distrital tem bastante apelo em virtude das promessas que a acompanham. A mais atraente delas é que a existência de uma única vaga em disputa em cada distrito reduziria o número de competidores viáveis e aproximaria o eleitor dos candidatos e parlamentares eleitos. A proximidade do cidadão com seus representantes facilitaria o atendimento de suas demandas pelo Poder Legislativo, ampliaria o conhecimento dos eleitores sobre os candidatos e dificultaria a eleição de políticos "ficha suja".
A experiência de países federativos que adotam o voto distrital, como Estados Unidos e Índia, indica que essas promessas podem ser falsas. Nos EUA os parlamentares são conhecidos pela manipulação constante das fronteiras geográficas dos distritos e pela construção de verdadeiros feudos eleitorais. Muitos distritos são previsivelmente democratas ou republicanos, com políticos acumulando décadas de mandato. Em um cenário de baixa competitividade, há candidaturas únicas com certa frequência e muitos eleitores vão às urnas sem que seu voto possa influenciar o resultado da eleição. Na verdade, como o voto nos EUA não é obrigatório, muitos nem sequer se interessam em votar.
Evitar a eleição de políticos tradicionais que controlam a burocracia partidária ou dominam politicamente regiões do país - desejo compartilhado por muitos brasileiros - não é uma vantagem do voto distrital em relação a outros sistemas.
Na Índia o cenário eleitoral para o Legislativo tampouco é promissor. Desde 2003, a Corte Suprema da Índia, preocupada com a influência de criminosos na política, publica regularmente o histórico criminal de todos os candidatos, inclusive sobre processos sem julgamento definitivo. No sistema de voto distrital, em teoria, esses candidatos "ficha suja" seriam rapidamente identificados pelos eleitores e derrotados nas urnas.
A realidade, porém, é outra.
Segundo Devesh Tiwari, cientista político da Universidade da Califórnia em San Diego, criminosos indianos possuem chances altas de serem eleitos em comparação com demais políticos. Isso porque eles obtêm mais facilmente recursos para suas campanhas ou são capazes de controlar eleitoralmente determinadas áreas geográficas - seja pela violência, pela concessão de benefícios ou pela intermediação de interesses particulares perante o Estado
Esse fenômeno é particularmente recorrente em regiões da Índia nas quais a população não confia nos partidos políticos para produzir bens públicos. Em vez de competir com os candidatos com histórico criminal, os partidos políticos indianos frequentemente negociam seu apoio ou investem em suas candidaturas.
É difícil acreditar que haja possibilidades reais de conexão entre as demandas do eleitorado e os políticos eleitos onde há eleições pouco competitivas. Número menor de candidatos - consequência provável do voto distrital - não se traduz automaticamente em competição mais qualificada, especialmente se os novos distritos forem demasiadamente grandes.
Se o Brasil fosse dividido em 513 distritos idênticos, cada um teria cerca de 272 mil eleitores aptos. A imagem evocada pelos defensores do voto distrital de que pode haver um estreitamento de laços entre cidadãos e representantes sensíveis às demandas da comunidade local não passa de uma ilusão. Com um número tão grande de eleitores em cada distrito, a eleição de cada deputado federal se pareceria mais com as disputas para prefeito em cidades como Vitória (ES), Aracaju (SE), Florianópolis (SC) ou Macapá (AP) do que com escolha idealizada de líderes locais por um conjunto de eleitores engajados.
Menos competidores também não significa, obrigatoriamente, redução nos custos de campanha, outra promessa atraente e potencialmente falaciosa que acompanha a proposta do voto distrital. Os gastos totais dos partidos nas eleições são definidos sobretudo pela sua capacidade de arrecadação.
Quanto mais recursos disponíveis, mais os partidos gastarão para tornar seus candidatos competitivos. Não importa se a distribuição dos recursos será entre dezenas de candidatos em uma lista, como ocorre no sistema atual, ou entre um punhado de candidatos nos distritos em que o partido tem chances de vitória, como ocorreria hipoteticamente sob o voto distrital. Pode-se gastar muito com poucos candidatos competitivos ou muito com um número grande de candidatos com chances diferentes de vitória. O mais provável é que os custos de campanha se assemelhem em qualquer sistema eleitoral se as regras de financiamento de campanha se mantiverem inalteradas.
É preciso ter cautela com a miríade de propostas que circulam sob o rótulo vago de reforma política. Os efeitos de mudanças nos parâmetros do sistema eleitoral são pouco previsíveis. Ainda que seja fácil apontar os problemas e, eventualmente, as falsas promessas do voto proporcional, é fundamental refletir se alterações na legislação eleitoral atendem às demandas que repentinamente se manifestaram nas ruas. Mais: é preciso conhecer melhor o que se está reivindicando antes de propor uma reforma política. O risco é oferecer respostas equivocadas para problemas mal diagnosticados.
Leonardo Sangali Barone - doutorando em Administração Pública e Governo na FGV-SP