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Poesia do dia

“Contei meus anos e descobri que terei menos tempo para viver daqui para a frente do que já vivi até agora.
Tenho muito mais passado do que futuro.
Sinto-me como aquele menino que recebeu uma bacia de cerejas.
As primeiras, ele chupou displicente, mas percebendo que faltam poucas, rói o caroço.
Já não tenho tempo para lidar com mediocridades.
Não quero estar em reuniões onde desfilam egos inflamados.
Inquieto-me com invejosos tentando destruir quem eles admiram, cobiçando seus lugares, talentos e sorte.
Já não tenho tempo para conversas intermináveis, para discutir assuntos inúteis sobre vidas alheias que nem fazem parte da minha.
Já não tenho tempo para administrar melindres de pessoas, que apesar da idade cronológica, são imaturos.
Detesto fazer acareação de desafetos que brigaram pelo majestoso cargo de secretário geral do coral.
As pessoas não debatem conteúdos, apenas os rótulos.
Meu tempo tornou-se escasso para debater rótulos, quero a essência, minha alma tem pressa.
Sem muitas cerejas na bacia, quero viver ao lado de gente humana, muito humana; que sabe rir de seus tropeços, não se encanta com triunfos, não se considera eleita antes da hora, não foge de sua mortalidade, quero caminhar perto de coisas e pessoas de verdade.
O essencial faz a vida valer a pena.
E para mim, basta o essencial!"
*Mário de Andrade*



É isso

Criaturas que superaram os Criadores
O sujeito cria alguma coisa e de repente vê que a criatura permanece e o criador ninguém conhece. Some. Dom Quixote? Conheço, claro. E Cervantes? Nunca ouvi falar. E vai por aí. Na literatura de língua portuguesa há exemplos curiosos. Poucos escritores alcançaram o momento supremo da criação definitiva.

Machado de Assis, com a Capitu; Eça de Queiroz, com o Conselheiro Acácio; Camilo Castelo Branco, com Calisto Elói; José de Alencar, com Iracema; Joaquim Manoel de Macedo, com a Moreninha; Lima Barreto, com Policarpo Quaresma; José Lins do Rego, com Vitorino Papa-Rabo; Guimarães Rosa, com Riobaldo; Jorge Amado, com Gabriela; Nélson Rodrigues, com Palhares, o Canalha; Aparício Torelly, com o Barão de Itararé; Sérgio Porto, com o Stanislaw Ponte Preta. Há outros exemplos, que a lista é meio grande, e muitos eu encontrei em citações de Josué Montello, fecundo autor, dizem, de mais de 300 livros.

A Rachel de Queiroz, madrinha de todos nós, chamava seu amigo e colega na ABL, rindo, de "Josueu". Falou muito e nele mesmo. O pessoal da boa leitura sabe desses exemplos e deve acrescentar mais escritores superados pelas personagens que criaram com talento. E os que afirmarem que a lista não é tão grande assim será porque é mais fácil urdir uma narrativa com a sua unidade perfeita, do que criar um tipo que se liberte dessa mesma narrativa.

Poderíamos citar ainda o Juca Mulato, criação de Menotti Del Picchia; Monteiro Lobato, com o Jeca Tatu, e Mário de Andrade, que atingiu o mesmo poder de criação irretocável, com Macunaíma, negro retinto (estou vendo a cara de Grande Otelo), filho do medo da noite.

HÉLIO PASSOS
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