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Os três livros

O monge Tetsugen tinha um sonho: imprimir um livro em japonês, com todos os versículos sagrados. Decidido a transformar este sonho em realidade, começou a viajar pelo país, arrecadando o dinheiro necessário.
Entretanto, assim que conseguiu a quantia para iniciar o trabalho, o rio Uji transbordou, provocando uma catástrofe de proporções gigantescas. Vendo os desabrigados, Tetsugen resolveu gastar todo o dinheiro para aliviar o sofrimento do povo.
Mas logo recomeçou a lutar por seu sonho: bateu de porta em porta, caminhou por diversas ilhas do Japão, e de novo conseguiu o que precisava. Quando voltava - exultante - para Edo, uma epidemia de cólera alastrou-se pelo país. Novamente, o monge usou o dinheiro para curar os doentes e ajudar a família dos mortos.
Perseverante, voltou ao seu projeto original. Colocou-se novamente em campo e, quase 20 anos depois, conseguiu editar 7 mil exemplares dos versículos sagrados.
Dizem que Tetsugen, na realidade, fez três edições dos textos sagrados.
Só que as duas primeiras são invisíveis.
por Paulo Coelho em sua Coluna dominical no Diário do Nordeste

Crônica

O livro sagrado da limonada

Imagine a cena. O pregador pega a pecadora pelas mãos e sapateia sobre os saltos e oferece a salvação: 


por Matheus Picinelli

Em sua misericórdia o sujeito chega à praça com seu terno de domingo, tira a poeira no livro sagrado e começa a espalhar pela região toda a verdade sobre o universo. “Quem tiver ouvidos para ouvir, ouça: os ímpios estão por toda a parte”. “Sodoma e Gomorra será castigada”. “Os cavaleiros do Apocalipse virão montados em charutos cubanos e camisetas do Che Guevara”. “As mulheres são belas, mas nelas reside a perdição: desviai os olhares e centrai as atenções na Palavra de mestre Olavo, cujas ceroulas não vos despertarão a volúpia da lascívia”. “Arrependei-vos de vossos pecados: ofereças em sacrifício o filho de Abraão e de Amarildo, com o punhal para um e a trava da bicicleta para outro”. “Manter-se-ão em vigília, com armas e spray de pimenta: não sabemos quando virá o Senhor, mas ele não ficará satisfeito em saber que transformamos seu templo de vendilhões em palcos para distribuição de renda e concessões à pederastia”. “Vigiai o sagrado direito de ser livre para agredir a tudo o que não vos ensinastes”.
De tanto pregar, o sujeito torna-se verbo. E, como dois e dois são quatro, o verbo torna-se luz. Prega, logo existe e ilumina os candelabros. É não só o obreiro, mas o caminho, a verdade e a vida. Sim, é o verbo escarrado da terra. É o próprio deus. Um deus que sabe os caminhos, que decorou as passagens para a salvação e, por posts e podcasts, consegue separar o joio do trigo, os vilões e os mocinhos, a turma do fundão, pecadora, e da turma da frente, vigilante, CDF, disposta a espalhar o bem aos cidadãos com cajados contra impurezas do corpo, as travas de bicicletas contra o pequeno assaltante e as lâmpadas fosforescentes contra quem não respeita seu direito de não suportar a libertinagem.
Por ser deus, o sujeito tem o monopólio do Verbo. E o Verbo é elástico. Seu livro está na seção da literatura de auto-ajuda, a auto-ajuda que salva e servirá como oráculo, uma espécie de Terceiro Testamento. Nele está o caminho, a verdade, a vida e a dieta da proteína. Nele ensina-se, por exemplo, a guardar domingos e feriados e não comer caviar em dias santos, que são todos. Para entrar em seu reino, é preciso renunciar às iguarias e aos charutos cubanos, ainda que o infiel tenha tanto apreço ao sistema de opressão em ilhas caribenhas quanto pelo Fuleco, o mascote da Copa. Não importa: não é preciso falar em nome do Diabo para ser cooptado por ele: se profanou a ação educativa das travas da bicicleta é porque o infiel, mesmo sem saber, tem o corpo dominado pelo Maligno.
Nos dias atuais, pensa o pregador, para identificar os desordeiros basta uma única régua: quem leu ou não a sua mensagem da Salvação, a sua interpretação sobre a Origem do Mal que se tornou o próprio balizador do Mal. Quem não leu O Livro é, sem apelação, Hipócrita. Ou defensor de ditaduras. Ou um patrocinador do banho de sangue ao qual estamos todos mergulhados.
Mas deus é misericordioso. Espera paciente pelo filho pródigo, o filho que não ouviu a palavra, que fugiu do labor das terras ancestrais e caiu em tentação: gastou toda a sua herança em literatura esquerdista e discursos politicamente corretos, sobretudo relacionados à segurança pública. “Vim para salvar o doente e não o são”, diz o Salvador, e assim ele segue, a Bíblia debaixo dos braços, a pregar nos hospitais, onde encontra-se o rebanho mais vulnerável. Ali, identifica a mulher pecadora, espancada, envergonhada, traumatizada por uma experiência pessoal: uma casa invadida, um assalto a mão armada, a vida da família em perigo. O demônio do politicamente correto diz que qualquer dor merece respeito. E que o tempo e o silêncio não são omissão, mas sinais de deferência.
Mas deus é deus. Pode arrebentar as portas da consideração aos pontapés e se armar com a trombeta da ironia divina para arrebanhar o fiel e a sua alma com base na sua misericórdia e no gracejo de tio da Sukita: “Você, minha ovelha perdida, é muito talentosa e muito bonita. É um desperdício que tenha se desgarrado. Venha. Eu trago limão. Venha fazer uma limonada na casa do Senhor, que é a minha casa”.
Assim, com os olhos roxos e o corpo surrado, a ovelha desgarrada descobre que, tal qual uma Pequena Princesa, ela é responsável por aquilo que cativa. “Sou teu senhor e teu deus e em verdade vos digo: você e todos os que comem caviar são culpados por serem violentados, agredidos, esmurrados”.
Com o cajado ao alto, o pregador sobe no púlpito a perguntar se a mulher voltará a pecar. Desfere o primeiro golpe, uma limonada espremida no olho da pecadora. Tudo para o seu seu bem. “Vou segurar seus braços, mostrar suas feridas, suas chagas e sua cruz para dizer na frente de todos que isso é culpa sua, que não me ouviu e saiu por ai defendendo o regime errado, o regime do caviar, mesmo sabendo que este é o alimento dos ímpios. Vou dizer que suas feridas são resultado da sua falta de consciência. Vou chama-la de bonitinha, mas ordinária e ignorante por não entender os reais problemas do céu e da terra. Mas que o teu sofrimento é a chance de tua salvação”.
E continua, tal qual um professor que se frustra diante da sala ao saber que os alunos não leram o livro do tema da aula. Mas deus, lembremos, é misericordioso e paciente. Sabe que o tempo está próximo e que não há tempo a perder. Saca do manto sagrado o livro sagrado, com uma dedicatória para a ovelha que apanha por nada entender dos reais problemas do seu país. O senhor limpa as mãos e vai a público dar o nome dessas ovelhas desgarradas que protegem o pecador e incentivam o pecado do qual agora são vítimas. E expõe seu nome. Seu nome e sobrenome. Só não dá o endereço dessas ovelhas, embora torça profundamente para que todos os coitadinhos que elas defendem voltem e arrebentem as suas portas para que provem que nesta Terra só há um senhor e que este senhor esteve certo o tempo todo. Mas nunca é tarde para aprender, diz o pregador, nem para tomar a decisão correta. Ele é misericordioso e sabe tirar lições das tragédias pessoais. “O meu livro é a sua limonada, e vou adoçá-lo com pregos e parafusos. Saia das sombras. Levanta-te e anda. Venha para o lado de cá. O lado certo”.
A tentativa de conversão é exibida ao vivo, com intervalos para o autojabá: “a salvação está à venda nas melhores livrarias”. Na plateia, o som das estocadas com a trava sagrada da bicicleta é abafado por aplausos empolgados dos que se admiram da coragem de se dizer não uma verdade, mas A Verdade. Os aplausos são muitos, pois a messe é grande e os operários são uma legião. Não é por menos. Deus, além de misericordioso, é um ótimo vendedor de limão.