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O sagrado, o profano e a alegria

Dos dezessete aos vinte um anos, decidi que me dedicaria a vocação religiosa e fiz um voto secreto de pobreza, humildade e castidade, tal como Francisco de Assis.
Imaginava uma vida monástica fora de um mosteiro e me alegrava com a ideia de dedicar a minha vida — de corpo e alma — para algo que fizesse muito sentido e beneficiasse os outros. O tempo passou, minhas noções de espiritualidade se expandiram e notei que ainda carregava muitos preconceitos e enganos filosóficos sobre contrapontos entre o desejo e a fé.
A ideia de vida monástica acabou e comecei a me relacionar com minha primeira namorada aos 22 anos. Daquele tempo em diante, a noção de espiritualidade seguiu outras direções e comecei a perguntar porque eu havia me disposto a abnegar de prazeres sensoriais para uma maior conexão com o divino.
As respostas não foram fáceis mas instigastes.

O incômodo de se tornar religioso

Existem três tipos de pessoas, no que se refere à religiosidade: os fanáticos-militantes, os aversivos e os indiferentes.
Aqueles que tem aversão não conseguem conceber um tipo de vida restrita ou castrada e sentem a religiosidade como um coito interrompido. A decisão de assumir regras e restrições físicas ou emocionais por causa de uma conversão religiosa pode parecer impensável para algumas pessoas, já para outras é quase um remédio para um sentimento de inadequação ou perturbação pessoal.
Lembro de ter me tornado radical em meus posicionamentos pessoais, chegando a exigir que minha família adotasse certos preceitos sob pena de mau humor ou esfriamento da relação. Em resumo, fiquei muito chato.
Hoje noto que não foi a religião que me deixou irritante, mas minha impertinência que usou da religião para garantir espaço em uma família que estava em crise e eu sentia medo de que tudo se desestruturasse. A força da minha insistência para que meu pai rezasse pela sua doença ou se tornasse alguém menos amargurado era resultado de uma necessidade de controle associada com temor pela sua morte iminente.
De alguma maneira, a minha adequação ao universo religioso era uma forma silenciosa de barganha com a divindade, pois eu queria garantir um lugar especial no coração de Deus e, de quebra, descolar alguns favores especiais com efeito de vida e morte.
Provavelmente é esse tipo de infantilidade a que os aversivos religiosos se apegam para atacar os religiosos, mas talvez esqueçam a quantidade de pessoas desesperadas, sem rumo ou autonomia emocional e moral para conduzir suas próprias vidas.
Eu desenvolvi isso com o tempo e passei a decidir meus dilemas éticos por conta própria e já não me vejo passivo na vida, mas sei que uma grande parcela ainda segue cheia de temores pela ausência de respostas filosóficas da existência humana finita.

O amargor da restrição

Os indiferentes e aversivos da religião têm uma objeção típica que é o da religião se opor ao agir natural delas no que se refere ao estilo de vida. Notam certo amargor nas pessoas que deixam de comer certos alimentos ou praticar algumas atitudes.
É bem verdade que existem muitas pessoas amargas nos ambientes religiosos, mas são aquelas que possuem uma estrutura de personalidade meio obsessivas, mesquinhas e escassas, que encontram na religião um artifício racional ou social para justificar seu moralismo ou rigidez emocional.
Mas sei também que, para algumas pessoas com total descontrole psicológico, a religiosidade tem um papel fundamental para substituir, provisória ou definitivamente, o papel de um sensor moral que não tem introjetado.
Imagine uma pessoa completamente viciada em altas doses etílicas — ou de heroína ou crack — e suas sensações relaxantes e excitantes respectivamente. Como oferecer uma transição menos dolorosa para que se adeguem ao cotidiano cheio de normalidade e muitas vezes nada eufórico?
O êxtase fervoroso ou a ritualística mística vem bem a calhar nesses casos.
Outras pessoas que mal conseguem fazer uma planilha financeira ou se estabilizar em um emprego podem começar a alinhar seus ganhos e gastos por conta de uma indução religiosa e seus dez por cento de contribuição.
Olhando de fora, para quem tem vinte anos planilhados pela frente, pode parecer a maior estupidez ser conivente com algum tipo de pensamento religioso que exploraria a boa vontade dos fracos e oprimidos. Em alguma medida, sim, há abuso, mas da perspectiva de quem tenta se alinhar com sua própria bagunça pessoal, pode parecer proveitoso. Pode ser um “ópio do povo”, mas um ópio menos devastador do que outros tipos.
Justificável ou não, cabe a cada pessoa saber do seu nível de aperto ou maturidade e desenvoltura pessoal, nem tudo é preto no branco.

Coisas de deus vs. coisas do mundo

De todo tipo de expressão religiosa que já transitei ou conheci por proximidade, todas têm — ainda que não declaradamente — uma oposição entre dois clubinhos: àqueles que fazem parte do mesmo time e os demais.
Existe uma função psicológica bem clara nesse senso de comunidade (mais radicais em uns e menos em outros). A existência humana pode parecer muito árida se vivida de modo isolado e existem algumas pessoas que não conseguem ou sabem se inserir em nenhum time.
Uma possibilidade seria seguir caminhando sem rumo e sem um senso de pertencimento sólido, já que foram expulsas dos clubinhos mais populares. Apesar de não terem muito dinheiro, beleza, status ou equilíbrio emocional, essas pessoas querem saber que alguém se importa com elas e que não serão invisíveis.
Só quem já foi invisível sabe o quão doloroso é não ser considerado nem no próprio dia de aniversário. Para muitas dessas (não todas) a religiosidade as insere numa comunidade que usa a mesma língua e tem os mesmos códigos. A socialização surge de cima para baixo, sem grandes esforços e em uma tentativa de integração mínima. No mundo ideal, as muletas deveriam ser deixadas de lado (trabalho como psicólogo para isso), mas, na vida possível e real — que eu defendo — muletas são necessárias e bem-vindas sem nenhum pudor ou heroísmo.
É só de aconchego pessoal que muitas pessoas tentam se cercar quando buscam um clamor fervoroso pelo seu deus exclusivo.

A seriedade da vida religiosa, sem riso, sem sexo

Quando vemos imagens ligadas a religiosidade ou ao sagrado, é possível notar com muita clareza a seriedade sisuda que é envolvida numa aura quase meditativa e desconectara do cotidiano. Claro que isso não cativa muitas pessoas que são movidas de modo sensorial, cinestésico e festivo.
Em contraponto, os apelos de outra ordem — em imagens de putari — glutonaria pode-se reparar na abundância, alegria e até certo êxtase. De alguma maneira, existe uma busca sagrada nessa vida carnal.
Os religiosos fervorosos poderiam se opor a essa afirmação apelando aos textos sagrados e restringindo o êxtase à busca espiritual, mas todo esse discurso ainda assim parece não considerar o tipo de pessoa que não teria a menor predisposição religiosa e ainda assim seria beneficiada por muitos princípios de sabedoria contidos na religião.
Seria possível um tipo de sabedoria recheada de festividade? Em algumas comemorações de povos menos ocidentalizados, parece haver um pouco dessa possibilidade. Algumas tradições africanas possuem esse caráter de alegria espiritual. Mas, de modo geral, parece existir uma indisposição para o riso, o gozo e a fé.

A fé, a putaria e a entrega

Talvez meu raciocínio possa soar radical, mas existe um ponto em comum em uma oração fervorosa e uma suruba. há certo elemento de entrega e rendição muito forte. Cada qual seguindo em direções distintas, a suruba buscando o relaxamento e a conexão com outra pessoa e a oração com uma realidade impalpável e abstrata.
A grande dificuldade de muitas pessoas, principalmente intoxicadas pelo pragmatismo utilitarista ocidental, é relaxar e desarmar suas barreiras pessoais e simplesmente apostarem em algo sem garantias ou resultados matemáticos.
Para elas, a fé é pouco clara, mensurável ou plausível, e podem até achar lindas as cerimônias e ter inveja de quem tem uma fé absoluta. Faltaria a elas essa confiança despretensiosa, que soa quase infantil de quem aposta num aparente impossível e por conta disso acaba vivendo uma profecia autorrealizada positiva.
É aquela convicção que se transforma em uma ação tão empoderada que rompe com qualquer temor habitual.
É plausível que Buda, Jesus, Maomé, Moisés, Confúcio e outros líderes tivessem um discurso tão tomado dessa certeza interna que magnetizaram as pessoas cambaleantes de seu tempo e as conduziram para um bom lugar. Ofereceram um caminho que se mostrou redentor na vida prática e deu sentido para uma existência que se percebia vazia.
No final das contas, para além das comprovações que os céticos avessos exigem, pode existir um lugar de coisas muito ricas e bonitas no meio da religiosidade, assim como bizarrices e exageros, como ocorre em qualquer aglomerado humano. E independente do tipo de partido que você tome ainda me parece mais madura alguma dose de entrega, que não é exclusividade da religiosidade, do que a desconfiança paranóica, que também não é exclusiva dos céticos.
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